Aindaa que seja inevitável que a economia brasileira sofra com essa crise, ela tem boas condições para enfrentá-la. Entrevista especial com Simone de Deos

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17 Outubro 2008

Para a economista Simone de Deos, “nos últimos 25 ou 30 anos houve uma transformação acelerada nos sistemas financeiros que tornou o velho modelo de regulação bancária obsoleto”. No entanto, continua, “o modelo que acabou por substituí-lo é falho em vários aspectos”. Em entrevista à IHU On-Line, realizada por e-mail, Simone analisa a atual crise financeira e aponta Hyman Minsky como um autor essencial para compreendermos o centro deste problema. A economista também avalia as regras que devem ser adotadas para conter a crise e as conseqüências das intervenções feitas pelos países que mais sofrem com o problema, principalmente, o Brasil. “Mas acho importante frisar que, ainda que seja inevitável que a economia brasileira sofra com essa crise – e alguns canais de contágio eu já apontei – ela tem boas condições para enfrentá-la. Temos um sistema financeiro que não foi contaminado pelos ativos de baixa qualidade, relacionados aos empréstimos subprime. E temos um conjunto expressivo de bancos públicos que pode liderar uma ação anticíclica, o que é fundamental nesse momento”, disse ela.

Simone Silva de Deos é graduada em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde também realizou mestrado em Economia. Na Universidade Estadual de Campinas, onde obteve o título de doutora em Ciências Econômicas, é hoje professora do Instituto de Economia.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Para a senhora, a partir de qual pensamento econômico podemos compreender essa crise financeira que abalou o mercado mundial?

Simone de Deos - Minsky é um autor essencial porque aponta para o fato de que as economias capitalistas têm um comportamento cíclico e estão sujeitas à recorrente instabilidade em função das complexas relações financeiras que estão no coração do sistema econômico. Talvez pareça estranho para os não economistas isso que vou dizer, mas o fato é que grande parte da teoria econômica mais amplamente difundida – quer nas escolas de economia, quer na imprensa – menospreza, para não dizer ignora, essa simbiose entre o mundo produtivo e o mundo financeiro.

E o que Minsky diz, com todas as letras, é que deve se partir dessa simbiose para compreender o funcionamento da economia e para poder intervir adequadamente sobre ela.  Para o autor, não é possível erradicar a tendência à maior fragilidade, porque ela é conseqüência inevitável da busca incessante por maiores lucros no sistema, o que faz com que se tolere maiores níveis de risco. Mas é possível minimizar a fragilidade a fim de reduzir suas conseqüências danosas.

IHU On-Line - Que regras, em sua opinião, são necessárias para que os mercados financeiros possam conter essa instabilidade e elevar novamente os níveis de confiança?

Simone de Deos - Minsky aponta que a instabilidade financeira é resultante do período de prosperidade. Para entendermos bem esse ponto, é preciso compreender que os gastos que são efetuados nas economias capitalistas são, em grande medida, financiados. E que durante uma fase de prosperidade as margens de segurança requeridas nos financiamentos, tanto pelos devedores quanto pelos credores, naturalmente se reduzem, o que leva não só a um volume maior de endividamento, mas também, progressivamente, a estruturas de endividamento mais arriscadas.

Regras sobre o sistema financeiro são cruciais para uma maior estabilidade porque é ele que financia os gastos, ao mesmo tempo em que centraliza o sistema de pagamentos. Mas para que o arcabouço regulatório leve, de fato, a uma maior estabilidade, deve partir-se do pressuposto de que o sistema financeiro é parte fundamental dessa engrenagem que, nas fases de prosperidade, aceita maiores riscos. Isto é, não devemos imaginar que ele vai trabalhar para minimizar os riscos.

O que aconteceu nos últimos 25 ou 30 anos foi uma transformação acelerada nos sistemas financeiros que tornou o velho modelo de regulação bancária obsoleto. Mas o modelo que acabou por substituí-lo é falho em vários aspectos. Primeiro, porque ele deixou de fora o que tem sido chamado mais recentemente de shadow financial system – um conjunto de instituições financeiras tais com bancos de investimento, fundos de investimento, hedge funds, seguradoras – e que, no fundo, age de maneira conjugada com o sistema bancário.  Segundo, porque, no que tange à regulação sobre o sistema de bancos comerciais, ela desconsidera esse comportamento pró-cíclico dos bancos no que diz respeito à assunção de maiores riscos e foi baseada na tese de que o volume de capital detido pelas instituições daria um colchão de segurança para o sistema, permitindo absorver perdas. Como ficou muito claro agora, o capital que deveria dar sustentação às instituições se deteriorou, junto com a imensa desvalorização de ativos a que assistimos.

IHU On-Line – Que tipos de conseqüências poderemos ver na economia a partir das intervenções de países como Estados Unidos e Inglaterra para salvar instituições prestes a falir?

Simone de Deos - O quadro mais estrutural de grande fragilidade, apontando para um risco sistêmico, foi armado ao longo das últimas décadas, nas quais as idéias de que os mercados são perfeitos e podem se auto-regular foram dominantes. Mas, no que diz respeito ao aprofundamento da crise que assistimos nas últimas semanas, a demora e a fraqueza – ou falta de coerência - das intervenções dos Estados aprofundou os danos. E isso vale tanto para o fato de terem permitido a quebra de importantes instituições financeiras – o caso da Lehman Brothers é emblemático aí – quanto para a demora na aprovação do pacote nos EUA. Todos esses acontecimentos foram deteriorando o cenário e agravando a espiral deflacionista e a crise de crédito, em âmbito internacional. A estatização do sistema financeiro que foi anunciada era a única medida possível – e, portanto, correta – a ser tomada, dada a deterioração da base de capital dos bancos, o aprofundamento da crise e a completa incapacidade dos mercados de responderem às outras medidas.

IHU On-Line – Como a economia brasileira ficará em relação a essa instabilidade financeira?

Simone de Deos - Há que se considerar vários mecanismos de contágio. Vou apontar alguns, mas sem sugerir uma hierarquia entre eles. Em primeiro lugar, há os efeitos da retração do crescimento da economia mundial sobre a economia brasileira. O canal do comércio internacional tem um papel aí. Outro ponto é a redução da liquidez internacional, que dificulta o acesso a fontes de financiamento externas. Há também os efeitos relacionados à depreciação cambial. De um lado, há que se considerar os possíveis efeitos de tal depreciação sobre os preços e, tão importante quanto, a ação do nosso Banco Central diante dessa possibilidade.

Um excesso de conservadorismo do Banco Central em um momento como esse, de desaceleração no ritmo de crescimento, pode ser desastroso. De outro lado, e esse é um ponto que vem se discutindo muito nos últimos dias, o que se viu é que há um conjunto de empresas que apresentou perdas importantes em função de operações com derivativos de câmbio – uma vez que elas não contavam com a depreciação. Ainda não se sabe com detalhes o impacto dessas perdas sobre as empresas e a capacidade que elas terão de refinanciar suas dívidas. Isso dependerá, também, das condições de crédito internas.

Mas acho importante frisar que, ainda que seja inevitável que a economia brasileira sofra com essa crise – e alguns canais de contágio eu já apontei – ela tem boas condições para enfrentá-la. Temos um sistema financeiro que não foi contaminado pelos ativos de baixa qualidade – relacionados aos empréstimos subprime – e temos um expressivo conjunto de bancos públicos que pode liderar uma ação anticíclica, o que é fundamental nesse momento.

IHU On-Line – Em sua opinião, a forma como a economia foi tratada até hoje deve mudar com essa crise?

Simone de Deos - Uma coisa que deve mudar é o padrão de regulação dos mercados financeiros. Ficou evidente que num ambiente em que volumes enormes de ativos financeiros não estão diretamente nos balanços dos bancos comerciais – que são mais regulados – mas nas instituições que, na sombra, absorvem maiores riscos, é preciso mudar, ou ampliar, o foco da regulação. Também parece claro que nesse ambiente em que os bancos comerciais tendem a vender suas carteiras de crédito (o que se chama de securitização), eles passam a ser menos rigorosos na avaliação dos riscos, posto que não esperam carregá-los em seus balanços. Ou seja, mudanças estruturais importantes tornaram o sistema mais frágil. Penso também que o sentido em que caminhava a regulação bancária, que era o de mais e mais apoiar-se na leitura que o mercado fazia da qualidade dos ativos detidos pelas instituições, sendo assim uma regulação pró-cíclica, também deve ser alterado.

IHU On-Line – Que razões impediram que a instabilidade crônica das economias de mercado se traduzissem por tanto tempo nesta queda profunda do nível da atividade econômica?

Simone de Deos - Ainda não estamos vendo uma queda profunda no nível de atividade. Os dados apontam para uma retração nas economias centrais – no caso da Europa já apontavam para isso, mesmo antes do aprofundamento da crise que ocorreu nas últimas semanas – mas não dá para saber qual a magnitude. Para Minsky, a instabilidade crônica não se traduziu em depressões de grande vulto – tal como aconteceu na década de 30 do século passado – exatamente porque os estados impediram. O peso crescente dos estados na economia opera como uma espécie de estabilizador automático.

IHU On-Line – Estamos caminhando rumo a uma depressão econômica?

Simone de Deos - Os dados mais recentes com relação ao nível de atividade na Europa e nos EUA apontam para uma contração. Mas o resultado final depende de vários fatores – inclusive, como já apontei, da ação efetiva dos estados. Um apego ferrenho às idéias liberais e ao “mantra” do equilíbrio fiscal será desastroso. Num ambiente em que o mercado está extremamente retraído e com uma percepção de risco exacerbada, é o Estado que tem que gastar. Essa entidade Minsky chamou de Big Government. É ele quem pode impedir uma grande depressão com suas trágicas conseqüências no âmbito social.

 

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Aindaa que seja inevitável que a economia brasileira sofra com essa crise, ela tem boas condições para enfrentá-la. Entrevista especial com Simone de Deos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU