Uma mutação antropológica. Controle total sobre a natureza e sobre o corpo humano. Entrevista especial com Maria Paula Sibilia

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25 Mai 2008

Sob a influência das novas tecnologias, o “corpo humano parece estar deixando de ser pensado como uma máquina orgânica à moda antiga”. Ele está se encaminhando para a era da informática. A posição é defendida pela pesquisadora argentina Maria Paula Sibilia. Em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail, ela afirma que as pesquisas científicas têm suscitado “uma série de convulsões epistemológicas capazes de redefinir os limites da condição humana”. No mundo pós-humano, explica, “a natureza deixou de ter limites fixos e rígidos”. Entre as inovações deste novo mundo, acrescenta a pesquisadora, existe a possibilidade de “desprogramar as doenças e o envelhecimento, visando atingir a imortalidade”. Para ela, o fato de cada indivíduo poder decidir “se deseja ou não alterar sua programação genética ou a informação que circula pela sua rede neural, é um sinal de até que ponto tem avançado a cultura do individualismo e nossa fé no credo da individualidade”.

Maria Paula Sibilia é graduada em Ciências da Comunicação pela Universidade de Buenos Aires (UBA), mestre na mesma área pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutora em Saúde Coletiva, pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente, é professora no Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF). De suas obras, destacamos O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Com a tecnociência surge um novo conceito de ser humano? Como a senhora descreve o sujeito dessa nova era?

Maria Paula Sibilia - As pesquisas e descobertas das novas “ciências da vida” suscitam uma série de convulsões epistemológicas capazes de redefinir os limites da condição humana. Isso ocorre porque as definições de vida e morte, natural e artificial, normal e patológico, também estão sofrendo convulsões, e os projetos tecnocientíficos constituem um importante vetor nestas transformações. Nas últimas décadas, sob a influência destes novos saberes, o corpo humano parece estar deixando de ser pensado como uma máquina orgânica à moda antiga - isto é, um conjunto de peças ensambladas para seu bom funcionamento mecânico e insufladas por uma misteriosa energia vital -, como revela a famosa imagem do robô ou do homem-máquina, uma metáfora que foi primordial ao longo da era industrial. Por toda parte surgem, com uma insistência crescente, outros tipos de imagens e metáforas, que levam a pensar no corpo humano como um outro tipo de artefato. Um dispositivo que não é mais mecânico à moda antiga, porém informático. A noção de “código genético” seria um bom exemplo dessa mutação, pois a popularização dessa idéia leva a pensar nos organismos como uma espécie de máquina mais complexa, cujo hardware é comandado por uma espécie de software do programa genético: um código informático cujas instruções mantêm esse corpo vivo e o levam a ser o que ele é.

IHU On-Line - Podemos dizer que, com o avanço das nanotecnologias, o ser humano se encaminha para uma mutação antropológica?

Maria Paula Sibilia - As nanotecnologias fazem parte desse novo campo de saber, constituído na segunda metade do século XX e cuja potência tem se intensificado notavelmente em anos recentes. Trata-se de um conjunto de explicações teóricas e ferramentas técnicas que tratam o corpo humano não mais como um velho artefato da era industrial — puro hardware insuflado por uma essência misteriosa que é inacessível ao conhecimento humano — mas como uma máquina compatível com nossos artefatos de ponta. Isto é, um organismo cujas “essências” estão deixando de ser enigmáticas porque podem ser convertidas em dados. Esse núcleo vital de cada um de nós pode ser traduzido em informação digitalizável e, portanto, apresenta-se como perfeitamente compatível com as nossas máquinas. Esse cerne informático que cifra o âmago de cada indivíduo e da espécie humana em seu conjunto pode ser (ou logo poderá ser) lido e inclusive editado, usando diversos dispositivos técnicos que já estão (ou que logo estarão) à nossa disposição. Tais como os seqüenciadores de ADN, por exemplo, que são capazes de decifrar os genomas de qualquer organismo a partir de uma de suas moléculas, ou os aparelhos de ressonância magnética que mapeiam em vistosas imagens pixeladas os cérebros que escaneiam. Essa informação assim extraída é compatível com as nossas máquinas e pode ser não apenas decodificada, mas também — e, talvez, sobretudo — ela pode ser editada. Eis a mutação antropológica que se anuncia: a natureza humana deixou de ter limites fixos e rígidos. Agora é possível “reprogramar” suas características e funções, abrindo um horizonte para além do que costumávamos conhecer como “humano”. Os limites dessa definição estão sendo desafiados, com pesquisas que se propõem a “desprogramar” as doenças e o envelhecimento, por exemplo, visando a atingir a imortalidade. É assim como se abre um novo horizonte à nossa frente, inaugura-se uma era que alguns denominam pós-orgânica, pós-biológica ou, inclusive, pós-humana.

IHU On-Line - Como esse momento deve ser encarado?

Maria Paula Sibilia - Eu considero que seja necessário, antes de mais nada, pensar sobre isso. Não se esquivar do problema, argumentando que se trata de meros avanços técnicos que nada mais fazem do que prolongar o projeto científico que inaugurou a era moderna. Esta visão que estou apresentando detecta, pelo contrário, uma verdadeira ruptura nas propostas mais recentes das novas “ciências da vida”, e seu objetivo é justamente esse: chamar a atenção para a novidade desse projeto histórico, sublinhar sua radical descontinuidade com relação às tentativas prévias de intervir tecnicamente nos organismos vivos. Acredito que, para além das evidentes continuidades com essas práticas e saberes mais antigos, existem verdadeiras redefinições e descontinuidades, rupturas que devem ser pensadas e merecem discussão. Por conta de sua magnitude e dos efeitos que pode provocar, esse rompimento no tecido histórico não deveria permanecer impensado.

IHU On-Line - A que a senhora atribui as mudanças ocorridas na vida contemporânea? Como compreender as reconfigurações da natureza humana?

Maria Paula Sibilia - Os processos que contribuíram para a gestação destas reconfigurações na natureza humana, na redefinição da vida como informação e na formulação de um ideal “pós-humano”, são múltiplos e extremamente complexos. Fatores econômicos, políticos, sociais, culturais e inclusive morais e éticos confluem neste movimento. Trata-se de uma série de mudanças grandes e pequenas, desencadeadas em todos os âmbitos e níveis, que foram se delineando na segunda metade do século XX, especialmente nas últimas décadas, com uma intensificação particularmente veloz nos anos mais recentes: nestes inícios do século XXI. Caberia incluir, nesse conjunto de vetores, uma reorganização do capitalismo que desloca suas bases firmemente assentadas na produção industrial de mercadorias (e na produção de sujeitos produtores, corpos especialmente equipados para saciar as demandas dessas engrenagens industriais) para privilegiar a produção de sujeitos consumidores — e, com eles, o desenvolvimento do marketing, dos serviços e das finanças como suas pilastras fundamentais. Os corpos e subjetividades que a sociedade contemporânea precisa para poder funcionar com maior eficácia não são os mesmos que necessitava o capitalismo industrial do século XIX e da primeira metade do XX. Assim, estes sujeitos, que hoje se definem como “pós-humanos” porque devem ser constantemente “aditivados” com adereços e recursos técnicos capazes de ultrapassar seu limitado equipamento orgânico original, são mais úteis ao projeto de mundo no qual vivemos. Em muitos sentidos, estes corpos recebem pressões dos mais diversos tipos para que cada um de nós seja funcional e compatível com o ambiente no qual vivemos. Daí a necessidade de fazermos upgrades e atualizações constantes de nosso hardware orgânico, que é flagrantemente insuficiente e condenado à obsolescência por definição. Para além dos imprevistos e dos eventuais efeitos colaterais indesejados, longe de ser um empecilho ao desenvolvimento, esse estímulo à reciclagem constante de nossos corpos e subjetividades não cessa de alimentar os circuitos integrados deste reluzente capitalismo do século XXI.

IHU On-Line - Além da influência do capital, que outros motivos nos fizeram ingressar numa era mecanizada?

Maria Paula Sibilia – As ferramentas que são cada vez mais compatíveis com nossos corpos e que pretendem extrair seus dados vitais para, eventualmente, efetuar as correções e ajustes considerados necessários, não se propõem a “mecanizar” o mundo. Em vez disso, seu objetivo é “digitalizar” a vida, transformando suas essências em informação compatível com nossos artefatos técnicos. O papel do capital nestes processos é evidente, pois os produtos e serviços capazes de operar essas leituras e alterações são vendidos aos consumidores interessados em sua utilização. Trata-se, portanto, de uma questão de mercado e não de cidadania. Mas existem, sem dúvida, outros fatores, que não são apenas de índole estritamente econômica, mas respondem a uma multiplicidade de interesses políticos, sociais e culturais. O fato de que cada um de nós possa decidir se deseja ou não alterar sua programação genética ou a informação que circula pela sua rede neural, por exemplo, é um sinal de até que ponto tem avançado a cultura do individualismo e nossa fé no credo da individualidade. Nesse fenômeno, confluem elementos que ultrapassam as meras regras econômicas do capitalismo para dar conta de toda uma visão do mundo, de um denso tecido de valores e crenças que constituem as nossas “verdades” e alimentam nossos desejos e medos, nossos sonhos e pesadelos.

IHU On-Line - Quais são as implicações da natureza programável? Por que o homem manifesta o desejo de controlar a própria espécie?

Maria Paula Sibilia - Essa vontade de exercer um controle total sobre a natureza em geral e sobre o corpo humano em particular tem uma raiz fortemente fincada no projeto científico que fundou a era moderna. Até algum tempo atrás, porém, pareciam existir certos limites intransponíveis para consumar esse controle: existiam coisas que não só não era possível fazer (porque era tecnicamente inviável), mas que também não deviam ser realizadas, em virtude de interdições que excediam a racionalidade científica e que provinham de âmbitos como a religião, a moral e a ética. Ou seja, havia algo além, seja da ordem do sagrado, do divino ou do acaso natural, que não podia (e nem devia) ser submetido aos desígnios meramente humanos. O segredo da vida, por exemplo, estava fora do domínio humano — e acreditava-se que assim permaneceria para sempre, porque era assim que as coisas eram e como elas deviam ser. A partir desta ruptura que eu estou assinalando, esses limites estão sendo desafiados e há uma promessa de ultrapassagem. Agora sim podemos, ou logo poderemos exercer um controle total sobre a natureza e o corpo humano, assumindo (ou não) todos os riscos que esse projeto “fáustico” pode implicar.

IHU On-Line - A senhora está desenvolvendo uma pesquisa em que analisa o estatuto do corpo humano na sociedade contemporânea. Como percebe a influência das mídias na construção de experiências corporais?

Maria Paula Sibilia - Considero que o estatuto do corpo humano na sociedade contemporânea é realmente complexo e, sem dúvida, merece ser indagado. Por um lado, hoje o corpo ocupa o centro da cena, inspirando todos os cuidados que implica a devoção às “boas formas” e ao bem-estar corporal. Por outro lado, também é inegável que esse mesmo corpo se vê incrivelmente constrangido por um conjunto de crenças e valores dos mais tirânicos, tais como os mitos da beleza, da magreza e da juventude. Ou seja, um ideário bem contemporâneo que obriga todos os corpos a se submeterem prazerosamente a esses imperativos da aparência tida por bela, magra, jovem e saudável. O papel dos meios de comunicação nestes processos é fundamental, pois o turbilhão de imagens e discursos midiáticos que cotidianamente nos bombardeia contribui para a disseminação desses padrões do “corpo perfeito”, além de divulgar o catálogo de técnicas, produtos e serviços disponíveis para atingi-los. Há, então, um aparente paradoxo no estatuto do corpo humano na contemporaneidade, que, ao mesmo tempo, é adorado como imagem e rejeitado em sua materialidade fatalmente orgânica. Tudo isso não faz mais do que alimentar as demandas por soluções técnicas alinhadas no paradigma do “pós-humano”, visando a construir um tipo de corpo “pós-orgânico”; ou seja, um corpo que deseja ardentemente se livrar dos constrangimentos provocados pela sua indigna condição carnal. No sucesso desse projeto, confluem não apenas a tecnociência e o mercado, mas outro aliado imprescindível dessa empreitada que afeta fortemente as experiências corporais contemporâneas é, sem dúvida, a mídia.

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