A vida humana como coadjuvante diante do protagonismo da técnica. Entrevista especial com Marcus Vinicius De Matos

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26 Abril 2015

"Na sociedade técnica, todo tipo de atividade seria sujeita a essa racionalização utilitarista" afirma o pesquisdor. 

Foto: tradingone.com.br
Para Jacques Ellul, a técnica foi o conceito mais fundamental do século XX. Ao pensar sobre a técnica, o teórico não a reduzia à noção instrumental do termo, mas, sim, à forma como a sociedade se organiza em torno do tema. “Ele sustenta que a técnica, no século XX, assume as mesmas qualidades e a importância daquilo que Marx descreveu como o capital, no século anterior. Ou seja, vivemos em uma civilização que se desenvolve em torno da técnica”, esclarece Marcus Vinicius De Matos, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “E essa sociedade técnica é uma sociedade onde o Estado vai, inevitavelmente, aumentar seu controle sobre as pessoas”, complementa.

Ao pensar no âmbito da produção do conhecimento, Marcus argumenta que se houvesse uma balança para medir o equilíbrio entre as descobertas científicas e o preço humano de sua aplicação, o primeiro dado sempre seria o preponderante. “Na sociedade técnica, todo tipo de atividade seria sujeita a essa racionalização utilitarista. (...) A posição ‘científica’ passaria a ser, às vezes, simplesmente negar a existência do que não depende de método científico — negar a existência de tudo aquilo que não pode ser quantificado, ou que não é quantificável”, provoca.

Discutir a técnica, segundo a interpretação de Ellul, parece ser menos o debate sobre seus efeitos puramente instrumentais e mais acerca de seus efeitos na produção de subjetividades. “Para Ellul, entretanto, esta relação é inversa: é a técnica, aplicada como princípio organizador da vida humana, que determina a organização da vida social, econômica ou administrativa”, sustenta o entrevistado. “Acho que o Ellul explica isso dizendo que a técnica não persegue nenhum fim — como justiça, por exemplo. Ela é puramente causal, e tem uma moral própria nos lançando ao que ele denomina de domínio da causalidade integral”, destaca.

Marcus Vinicius A. B. De Matos é doutorando em Direito pelo Birkbeck College (University of London), bolsista CAPES de Doutorado Pleno no Exterior, e professor substituto na School of Law da mesma instituição, onde leciona Legal Methods and Legal Systems. É mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e pesquisador do Grupo de Pesquisas sobre Jacques Ellul. Desde 2010, colabora com a realização dos Seminários Brasileiros Jacques Ellul, tendo sido coordenador da 4ª edição do seminário, realizado na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. Sua mais recente publicação é Direito, Técnica, Imagem: os limites e os fundamentos do humano, livro organizado em parceria com Jorge Barrientos-Parra, e publicado pela Editora Unesp.

Confira a entrevista.

Foto: Plataforma Lattes
IHU On-Line - Jacques Ellul parece ter despertado o interesse da Academia no Brasil nos últimos cinco anos. Na sua opinião, quais as razões para o interesse tardio na obra do autor?

Marcus Vinicius De Matos - É curioso, mas a obra do Ellul passou quase que despercebida pela Academia no Brasil, até bem recentemente. Eu mesmo ouvi falar do autor, pela primeira vez, em um evento em São Paulo, em 2006, numa palestra sobre Ecologia e Ativismo Cristão. E esse exemplo talvez explique uma das razões para esse interesse tardio: é muito difícil colocar a obra de Jacques Ellul toda dentro de um mesmo campo disciplinar, pela própria dimensão do pensamento do autor, e isso de certa maneira desafia o tipo de conhecimento que se produz no meio acadêmico que, no Brasil, é extremamente disciplinar, tanto pela questão de aderência às áreas de avaliação da pesquisa e da pós-graduação quanto em relação à própria forma de ingresso na carreira. Basta lembrar que a maior parte dos concursos públicos hoje fecham as áreas em si próprias, exigindo dos candidatos título de graduação, mestrado e doutorado específico naquela área do conhecimento.

Então, se pensarmos na própria trajetória do Ellul, essa impossibilidade de aderência a um campo acadêmico específico fica clara: ele começa sua carreira no Direito, quando produz uma tese de doutorado sobre o instituto do Mancipium no Direito Romano — a possibilidade do pater familias vender aqueles que estavam sob seu poder como escravos — e depois vem a guerra, quando ele entra para a Resistência francesa, organiza camponeses e estudantes, e estuda teologia. A partir daí ele escreve muita coisa sobre teologia, anarquismo e marxismo. E essa talvez seja a parte do seu trabalho que é mais conhecida, resgatada hoje por teólogos e estudantes e muito difundida por grupos cristãos e movimentos anarquistas — alguns dos quais disponibilizam obras como “Anarquia e Cristianismo” na internet.

Agora, a parte da obra dele que talvez seja a mais interessante para a Academia, para a Universidade, é a terceira — que geralmente se encaixa como Sociologia. Essa parte é que tem despertado mais interesse recentemente, sobretudo nas áreas da Comunicação e do Direito. Mas, mesmo assim, fora dos limites disciplinares. Para se ter ideia, quando comecei a ler a obra dele fui procurar por A Técnica e o Desafio do Século (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968), sua obra mais famosa, e não havia nem na biblioteca do Direito nem da de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ onde fiz meu mestrado. Tive que ir buscar no sistema e achei uma edição publicada no Brasil em 1968, pela editora Paz e Terra, na biblioteca do curso de Matemática! E, pior, parece que eu fui o terceiro ou o quarto leitor a retirar da estante.

IHU On-Line - Quais são as críticas fundamentais de Jacques Ellul ao controle estabelecido pela sociedade tecnicista? Nesse sentido, qual a importância da obra A técnica e o desafio do século no conjunto do pensamento de Ellul?

Marcus Vinicius De Matos - Em primeiro lugar, talvez seja importante explicar o que Ellul entende como técnica. Para ele, a técnica é o conceito mais fundamental, mais importante no século XX. É algo que transcende a noção do tecnológico, a base sobre a qual nossa sociedade se organiza. Ele sustenta que a técnica, no século XX, assume as mesmas qualidades e importância daquilo que Marx descreveu como o capital, no século anterior. Ou seja, vivemos em uma civilização que se desenvolve em torno da técnica. E isso tem implicações tanto no campo da racionalidade quanto no da ética e da cultura: a ciência e as instituições modernas vão passar a funcionar com os valores da técnica, digamos, principalmente a eficácia e a eficiência.

E a técnica também altera a própria forma como a humanidade compreende a si própria, se relaciona com a natureza, com o ambiente, e com sua própria história — tudo isso passa a ser diferente. E essa sociedade técnica é uma sociedade onde o Estado vai, inevitavelmente, aumentar seu controle sobre as pessoas. Nesse sentido, “A Técnica e o Desafio do Século” levanta muitas questões sobre controle e Estado que vão ser desenvolvidas depois, por autores como Michel Foucault e Gilles Deleuze . E isso é de certa forma intrigante, já que ambos conheciam Ellul, pelo menos como professor da Universidade de Bordeaux, porém não o citam — pelo menos não nos seus textos mais famosos.

"A técnica, no século XX, assume as mesmas qualidades e a importância daquilo que Marx descreveu como o capital, no século anterior"

IHU On-Line - Em que medida os mesmos tipos de racionalidades e processos utilitaristas perpassam todos os campos das ciências modernas?

Marcus Vinicius De Matos - Tomando a noção de técnica no sentido que Ellul emprega, é possível ver como a racionalidade técnica vai passar a ser a base em cima da qual a ciência moderna se desenvolve. Na caracterização que ele faz da técnica há não apenas uma racionalidade própria, como também o predomínio da artificialidade, do automatismo, do autocrescimento e da autonomia da técnica.

Ele constata isso ao comparar o tempo em que as técnicas levavam para ser empregadas depois de uma nova descoberta científica: esse tempo diminui drasticamente na virada do século XIX para o XX, e continua diminuído, aparentemente. Se houvesse uma balança em que se pesasse a descoberta científica de um lado, e o preço humano de sua aplicação, do outro, seria como se o primeiro lado sempre fosse determinante. A técnica é empregada porque existe. E ponto. Ou seja, o que ele descreve é quase que um triunfo da utilidade e da racionalidade técnica sobre qualquer possibilidade de humanização da ciência. Até porque, para que a própria técnica se desenvolva, a ciência precisa também ser organizada de maneira técnica, de forma a produzir mais e de maneira sempre mais eficiente.

Na sociedade técnica, todo tipo de atividade seria sujeita a essa racionalização utilitarista. Um exemplo claro e custoso disso seria a sujeição da própria ciência à técnica: para fugir de supostos arbítrios e subjetividades, para escapar de julgamentos éticos, na ciência moderna é preciso reduzir tudo ao número. A posição ‘científica’, passaria a ser, às vezes, simplesmente negar a existência do que não depende de método científico — negar a existência de tudo aquilo que não pode ser quantificado, ou que não é quantificável.

IHU On-Line - Quais são os nexos entre a evolução da técnica e os paradigmas da sociedade de risco e do estado de exceção?

Marcus Vinicius De Matos - A noção de sociedade de risco foi bastante popular no meio acadêmico no final do século passado, principalmente devido aos trabalhos de sociólogos como Anthony Giddens e Ulrich Beck — e mesmo antes deles, por exemplo, no trabalho de Hermínio Martins. Eu penso que é uma noção que, em termos de corpo teórico, agora já é bastante questionada — pela própria limitação de tempo histórico em que os autores a situavam, um período de aproximadamente 30 anos, na virada do século XX para o XXI. Assim, a sociedade do risco seria uma sociedade em que a ciência, os riscos dos avanços científicos e industriais teriam se tornado incalculáveis, imprevisíveis e globais — escapando ao controle do Estado Nacional e suas instituições. Essa é uma caracterização da sociedade que depende fundamentalmente da divisão da modernidade em duas: uma primeira, industrial, nacional; e uma segunda modernidade, ou pós-modernidade, quando os avanços tecnológicos empurram a humanidade para dentro do que se convencionou chamar de Globalização.

Para Ellul, entretanto, esta relação é inversa: é a técnica, aplicada como princípio organizador da vida humana, que determina a organização da vida social, econômica ou administrativa. A técnica funciona como indeterminador dos riscos e da responsabilidade. Penso que talvez a relação fique mais clara no próprio exemplo que o autor usa: a construção de uma represa que, depois de pronta, racha e inunda um município próximo. De quem é a culpa, a responsabilidade? Do político que decidiu pela construção naquele local? Dos engenheiros que planejaram a obra? Ou dos trabalhadores que a executaram? Os especialistas vão tentar encontrar, através de critérios supostamente técnicos, os indícios de responsabilidade.

Mas essa é precisamente uma característica da técnica: ela torna impossível encontrar um responsável. Ou então, se pensarmos nos softwares de computador: ao iniciá-los, às vezes há uma quantidade tão grande de scripts, dados em processamento e operação de outros softwares, que se torna extremamente difícil determinar qual dos processos é o responsável por um problema que eventualmente ocorra — assim como fica enorme a possiblidade de ocorrer um problema qualquer. Mas hoje penso que a discussão fica mais interessante quando aproximamos a concepção de Ellul de sociedade técnica daquela que descreve o estado de exceção.

IHU On-Line - Qual a relação entre o pensamento de Ellul e o de Giorgio Agamben , sobretudo no conceito de estado de exceção?

Marcus Vinicius De Matos - Essa é uma relação que eu tentei traçar na minha pesquisa de mestrado. Penso que são dois autores que desconfiam da política moderna, capitalista, e que demonstraram o porquê dessa desconfiança através de modelos e do uso de alegoria. O Ellul propõe observar, no âmbito do Direito, uma relação entre o emprego de medidas de controle e exceção e a supressão das liberdades, que se desenvolveria dentro de um paradoxo: quanto maior o aperfeiçoamento dos métodos técnicos da polícia — de pesquisa e de ação —, maior o controle sobre a sociedade, restringindo qualquer forma de liberdade; porém, maior a proteção contra os criminosos, e maior a sensação de liberdade das pessoas. E é aí que ele usa, de maneira alegórica, o modelo do campo de concentração.

Na visão dele o campo não foi uma invenção tipicamente fascista e nazista: ele existiu também na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas - URSS, na Polônia, na Bulgária; e do outro lado, existiu na França (na terceira república), na Inglaterra (durante a guerra dos Boers) e nos EUA. Para ele o campo de concentração tem um sentido mesmo administrativo: decorre de uma concepção técnica de polícia que leva à prisão preventiva e à reeducação. As técnicas policiais se desenvolveriam, na visão dele, ao ponto de que todos seriam vigiados — e os avanços técnicos tornariam isso possível. Por outro lado, isso só funcionaria com apoio da população, e através de técnicas que pouco se fizessem sentir, com métodos aperfeiçoados de controle.

Já em Agamben, que desenvolve provavelmente a pesquisa mais interessante sobre o dispositivo do estado de exceção — que é a possibilidade de se suspender os direitos e garantias constitucionais dos cidadãos para garantir a ordem e a própria constituição — o campo aparece como um modelo de referencia, como uma zona de anomia — ou de indistinção — entre o Direito e a Política. E é interessante observar que, para o segundo, o estado de exceção também não é uma prática de ditaduras absolutistas, mas de regimes democráticos. E, nesses regimes, o autor demonstra que as decisões técnicas tomaram o lugar das discussões políticas nos parlamentos — especialmente nos casos das decisões relacionadas à segurança e economia — e se refletiram em uma visão tecnicista da Política e do Direito, contribuindo para a consolidação do Estado de Exceção como técnica de governo.

Estado de exceção

O Estado de Exceção seria a forma jurídica do controle biopolítico promovido pelos meios técnicos. Finalmente é interessante observar que ambos os autores vêm de uma reflexão teológica sobre a questão: Agamben, filósofo e pesquisador medievalista, aborda o problema do estado de exceção lançando-se sobre o “direito canônico”; de maneira semelhante, Jacques Ellul — jurista, sociólogo e teólogo — parte do direito romano para construir o que descreve como sendo a “sociedade técnica” e adota uma visão crítica da racionalidade técnica que dominaria a política e o direito na modernidade, calcando-se em arcabouço teológico dialético. Se a preocupação de Agamben é um Estado de Exceção viabilizado por meios técnicos que se encontram entre o político e o jurídico, para Ellul, são os próprios meios técnicos que indeterminam a Política e o Direito, constituindo o Estado de Exceção.

 

"E essa sociedade técnica é uma sociedade onde o Estado vai, inevitavelmente, aumentar seu controle sobre as pessoas"

IHU On-Line - De que maneira a perspectiva de Ellul nos ajuda a pensar as técnicas de controle e vigilância utilizados pela polícia e pelo poder Judiciário no Brasil?

Marcus Vinicius De Matos - Penso que, sem medo de errar, a gente pode dizer que as técnicas de controle e vigilância estão em expansão. No caso do Brasil, talvez seja possível situar uma virada já no século XXI, dentro do que seria o nosso período democrático recente. Talvez o ano de 2008 tenha sido paradigmático nesse sentido. Foi nesse ano que nós tivemos a discussão sobre o uso indiscriminado de escutas telefônicas — os “grampos” — feitos pela Polícia Federal - PF e pela Agência Brasileira de Inteligência - Abin em cima do próprio Poder Judiciário, que seria justamente quem geralmente autoriza ou não essas medidas. Eu me refiro aqui a um dos mais graves episódios, quando descobriram as escutas telefônicas no gabinete do Presidente do Supremo Tribunal Federal – STF, que então era o Ministro Gilmar Mendes. No mesmo ano, temos ainda dois episódios marcantes: o primeiro foi o início da utilização de pulseiras e braceletes eletrônicos para o controle de presos em regime de progressão de pena e liberdade condicional, que foi colocada em fase de teste no estado de Minas Gerais — sem, contudo, aprovação parlamentar.

O segundo foi a proposta de instalação massiva de câmeras na segunda maior cidade do país, o Rio de Janeiro. Na campanha eleitoral municipal daquele ano, lembro que quatro dentre os cinco principais candidatos apontados como favoritos nas pesquisas eleitorais incluíam em suas propostas de governo a instalação de um amplo sistema de vigilância na cidade, que ia desde a instalação de dezenas de milhares de câmeras, até a compra de avião não tripulado Israelense — os famosos drones — para monitorar favelas.

Questionamento

Creio que a obra do Ellul nos desafia a tomar uma posição de questionamento desse impulso técnico. Tanto no caso das escutas telefônicas quanto no da implantação dos sistemas de vigilância, ou ainda, na utilização dos braceletes eletrônicos em prisioneiros, o que chama a atenção não é a falta de um debate político público sobre o tema. O que parece absolutamente inusitado — sob a perspectiva da expansão e da unicidade da técnica na sociedade moderna — é a completa aceitação dessas propostas de vigilância para garantir o controle e a segurança, quase sem nenhuma oposição visível.

Um exemplo mais recente sobre o quão é necessário fazer a discussão diz respeito ao caso da prisão preventiva dos ativistas que iam fazer protestos durante o jogo final da Copa do Mundo, no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul. A polícia monitora as pessoas por redes sociais e pelo uso de celulares e gadgets, e, de repente, um grupo que organizava um protesto — que poderia ou não ser violento — é preso antes da realização do evento. E esse caso fica ainda mais curioso, quando um morador de rua — que aparentemente nada tinha que ver com aquilo — também é preso, mas no caso dele, em flagrante, ali na hora. Assim, depois de revogada a prisão preventiva de todo mundo, fica preso o morador de rua, Rafael Braga Vieira, porque simplesmente estava lá, com material de limpeza na mão — que a polícia considerou como inflamável, mas a perícia alegou que era diluído, para limpeza mesmo, sem possibilidade de incendiar qualquer coisa.

Esse é o tipo de caso que revela um intrincado problema: quase não há prisão fruto de investigação no Brasil, a maior parte das prisões é resultado de flagrante. E daí, como vai se solucionar isso? Nossa própria solução vai ser acreditar na polícia científica como forma de legitimar o sistema? É isso que vai resolver todos os problemas? E quando a perícia se mostra ineficiente, como nesse caso? Vai funcionar? São perguntas que revelam esse problema da técnica como um meio que elimina os fins, e se torna ela mesma o fim. Acho que o Ellul explica isso dizendo que a técnica não persegue nenhum fim — como justiça, por exemplo. Ela é puramente causal, e tem uma moral própria nos lançando ao que ele denomina de domínio da causalidade integral.

"Na sociedade técnica, todo tipo de atividade seria sujeita a essa racionalização utilitarista"

IHU On-Line - Em que sentido as ideias desse autor podem ajudar a estabelecer uma crítica sobre os problemas do Direito brasileiro?

Marcus Vinicius De Matos - Há perspectivas muito ingênuas de soluções técnicas e tecnológicas para problemas essenciais do Direito, e penso que o trabalho do Ellul é importante para contrapor essas concepções.

Uma delas é essa de que já falamos, que é o emprego de técnica e da tecnologia pela polícia que vai acabar com as práticas inquisitoriais, e que na verdade acaba por nos entregar a uma expansão das medidas de exceção, que se tornaram cotidianas na atividade policial. O outro é a ilusão de que o emprego da tecnologia vai resolver a burocracia e a morosidade do judiciário e, com isso, produzir mais justiça. Essa é uma posição que eleva a técnica — e também a tecnologia — àquele lugar transcendental, quase sagrado, capaz de resolver de maneira eficaz aquilo que aparentemente não tem solução prática. Ou melhor, dar soluções práticas a problemas que são complexos e teóricos, éticos.

Isso fica muito claro, por exemplo, se aproximarmos a noção de sociedade técnica do Ellul com o trabalho de pesquisa empírica do Fernando Fontainha da FGV-Rio, que propõe a figura do “juiz moderno”, empreendedor, observando discursos de juízes que propõem a informatização do judiciário e dos tribunais quase que como solução final — e única — para a burocracia e morosidade da justiça. Porque se acredita que os problemas são essencialmente técnicos, e por isso só pode haver uma solução técnica. Essa é bem a essência da nossa civilização, na visão do Ellul.

Por Andriolli Costa e Ricardo Machado

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A vida humana como coadjuvante diante do protagonismo da técnica. Entrevista especial com Marcus Vinicius De Matos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU