“A Igreja foi moldada simultaneamente por uma forte presença de padres homossexuais e por um discurso muito heteronormativo”. Entrevista com Josselin Tricou

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02 Outubro 2021

 

“Ao sacralizar o padre, a Igreja fez dele um ser à parte, sem gênero e dessexualizado”, observa Josselin Tricou. Em seu livro “Batinas e homens”, o sociólogo analisa a masculinidade atípica daqueles que a Igreja Católica coloca no topo de sua hierarquia.

 

Celibato percebido como tóxico, violências sexuais silenciadas pela Igreja, condenação da homossexualidade, recusa em ordenar mulheres... Durante várias décadas, muitos motivos foram apresentados para questionar a figura do padre, que não parece ser um homem como os demais.

 

A entrevista é de Luc Chatel, publicada por Le Monde des Religions, 27-09-2021. A tradução é de André Langer.

 

Professor assistente de sociologia das religiões na Universidade de Lausanne (Suíça), doutor em ciências políticas e estudos de gênero, Josselin Tricou é autor do livro Des soutanes et des hommes. Enquête sur la masculinité des prêtres catholiques, Editora PUF, 472 páginas (Batinas e homens. Pesquisa sobre a masculinidade dos padres católicos). Ele analisa esta construção de uma masculinidade atípica do clero pela Igreja e suas consequências, tanto do ponto de vista histórico, sociológico como político.

 

Eis a entrevista.

 

Como nasceu o seu projeto de tese sobre a masculinidade dos padres na Igreja Católica, tese que acaba de ser publicada em forma de livro?

 

Como ator comprometido, vi o aumento das tensões dentro do catolicismo, desde antes de 2012 e das grandes mobilizações contra o “casamento para todos”, em torno das questões de gênero, principalmente entre os padres católicos.

 

Como sociólogo, fiquei intrigado com um enigma: o fato de a Igreja Católica ter instituído um sistema de gênero em descompasso com o sistema das sociedades que a englobam. Na verdade, este sistema não comporta dois, mas três gêneros: o leigo, a leiga e o clérigo. O que chamei no livro de “movimento” católico do gênero, como chamamos um desfoque deliberado na fotografia.

 

No entanto, esse sistema é paradoxal. Por um lado, a Igreja Católica desenvolve um discurso naturalizante e binário, segundo o qual existe uma natureza masculina e uma natureza feminina, com uma diferença intransponível entre as duas, baseada na necessária complementaridade dos sexos e na heterossexualidade obrigatória. Por outro lado, ela estabelece uma organização interna completamente diferente. Com efeito, a masculinidade que a Igreja coloca no topo da sua hierarquia de gênero, a dos sacerdotes e dos religiosos, é uma construção atípica: ao sacralizar o sacerdote, a Igreja fez dele um ser separado, sem gênero e dessexualizado.

 

 

Se a questão da masculinidade na Igreja Católica é imprescindível para a compreensão da sua doutrina e da organização, o senhor nota que ela dificilmente foi objeto de estudos aprofundados de historiadores ou de sociólogos do catolicismo. Por que isso é impensado?

 

Em nossas sociedades ocidentais, a masculinidade durante muito tempo foi algo sobre o qual não se pensava porque era a norma. Como tal, era onipresente, evidente. Isso foi muito bem demonstrado por pesquisadoras feministas das décadas de 1970 e 1980, notadamente Nicole-Claude Mathieu (1937-2014). Além disso, enquanto os padres eram levados a sério pela população – especialmente por serem vistos como notáveis –, não se suspeitava de sua masculinidade atípica, sem gênero e dessexualizada e, portanto, não era questionada como tal.

 

Melhor ainda, essa construção multissecular é tão poderosa que muitos pesquisadores interessados no catolicismo – do qual muitas vezes procedem –, eles mesmos a internalizaram. Mas creio que haja também uma explicação ligada à estruturação do campo acadêmico: os recentes estudos sobre gênero e sexualidade se desenvolveram distantes das pesquisas sobre as religiões, mais antigas e legítimas, embora em declínio.

 

Desde então, houve, e sem dúvida ainda há, percepções de ambos os lados. Muitos pesquisadores da religião consideraram as elaborações emergentes sobre o gênero muito militantes, enquanto nos estudos de gênero havia uma percepção da religião como sendo conservadora e contrária aos valores que as fundamentam.

 

O senhor frisa o fato de que a Igreja Católica, apesar de um discurso de condenação, durante muito tempo foi uma espécie de refúgio para os homossexuais...

 

Ao estabelecer esse “movimento” de gênero e a ideia de que os fiéis estão condenados ao casamento heterossexual ou à vida consagrada celibatária, a Igreja Católica restringiu o horizonte de possibilidades para homens e mulheres que não se sentiam atraídos pelo casamento heterossexual: é o sacerdócio ou a vida religiosa.

 

Dito isso, o clero tem sido em determinados lugares e em determinados momentos um espaço protetor em um mundo marcado por uma homofobia generalizada. Paradoxalmente, podemos até dizer que a Igreja conseguiu estabelecer um dispositivo de acompanhamento e de cuidado de si, como diria Michel Foucault, quase libertador para aquelas e aqueles que chamo de “outramente sexualizados”.

 

Este dispositivo passa especialmente pela direção de consciência. O diretor de consciência é aquele que o ouve e orienta, e que está obrigado a guardar o sigilo. Para um certo número de seminaristas e jovens religiosos, o intercâmbio com o diretor de consciência era um espaço onde podiam expressar seus desejos, até mesmo suas práticas, sem risco de represálias.

 

Deve-se notar também que, para muitos padres e religiosos, o fato de serem homossexuais, se é que conseguem verbalizá-lo, não parece tão grave em si, pois a Igreja os obriga à abstinência – à ausência de sexualidade –, seja qual for sua orientação sexual.

 

Uma das condições que permitiu a manutenção desse sistema era a obrigação desses padres e religiosos de manter em segredo a sua homossexualidade, escreve. E o senhor usa a metáfora do “armário” a esse respeito...

 

Tomo esta metáfora da cultura de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queer, intersexuadas (LGBTQI) para quem “estar no armário” significa, para os gays e as lésbicas, moldar-se na presunção da heterossexualidade que pesa sobre todos a fim de se proteger da homofobia ambiente. O que pressupõe discrição e dissimulação.

 

A Igreja, portanto, foi moldada durante séculos simultaneamente por uma forte presença de padres homossexuais e por um discurso muito heteronormativo. Os padres homossexuais organizaram suas vidas neste espaço de relativa proteção e realização, e às vezes até de ascensão social, coisa que a sociedade não lhes teria proporcionado.

 

 

Da mesma forma, os conventos de religiosas foram, no século XIX, lugares de realização para as mulheres que queriam escapar do casamento heterossexual, da dominação masculina dentro da vivência a dois ou da maternidade. Elas podiam até ter acesso a responsabilidades que nunca teriam na sociedade, como ser diretoras de escolas ou missionárias na África.

 

Havia uma forma paradoxal de emancipação dos homossexuais dentro do clero, para usar o conceito proposto pelo historiador Claude Langlois em relação às religiosas.

 

Como então explicar o vigor do discurso de denúncia da homossexualidade da Igreja Católica nos últimos anos?

 

À medida que a Igreja foi perdendo a sua influência sobre as sociedades na Europa, havia dentro dela todo um movimento de reação a partir dos anos 1970-1980 que se concentrava nas questões de gênero e sexualidade, a última área em que a norma secular ainda copiava a norma religiosa. Basicamente, é uma tentativa desesperada de impedir o movimento de secularização das normas de gênero e sexualidade, a fim de manter as condições de plausibilidade do discurso religioso.

 

Mas, sem sempre admitir para si mesmas, as autoridades eclesiais temeram também a possível “saída do armário” de seus sacerdotes, em um mundo onde a norma está irremediavelmente distante do discurso religioso. Um mundo onde agora se pode, sob certas condições, assumir-se publicamente como homossexual e onde existe uma certa cultura gay legítima.

 

Um dos objetivos da cruzada contra o gênero do Vaticano é, em minha opinião, silenciar seus padres e religiosos homossexuais para que não se saiba publicamente que o sacerdócio também serve como um armário. Isso se tornou ainda mais necessário porque a partir da década de 1960 o padre perdeu sua notoriedade, o que favoreceu o recrutamento massivo e popular, e desde a década de 1970 muitos padres e religiosos heterossexuais atraídos pelo casamento desertaram da Igreja. A função de “armário” permanece, portanto, um dos últimos mecanismos sociais de atração do sacerdócio que ainda funciona, particularmente nos círculos burgueses conservadores, onde ainda é impossível para um jovem gay se imaginar como tal.

 

 

Mas o “armário eclesial” está em crise hoje. Isso se tornou transparente aos olhos dos próprios clérigos e também de alguns fiéis. Assim, padres e religiosos que encontrei durante a minha pesquisa falaram longamente sobre esses perfis de padres de batina que eram conhecidos no mundo clerical como “grandes maricas de sacristia”, para usar a expressão usada neste ambiente, e que gritavam slogans homofóbicos nos desfiles da La Manif pour tous.

 

Na opinião do senhor, os movimentos de oposição ao casamento para todos teriam sido incentivados pela Igreja não por questões de moral, mas de organização da instituição...

 

Pelas duas razões, na verdade, e isso não é incompatível. O que muitos observadores da La Manif pour tous não viram, de fato, é que o extraordinário sucesso desse movimento também resultou do fato de que ele respondeu aos problemas internos da Igreja Católica. A Manif pour tous e o clima que ela criou dentro do catolicismo exerceu uma pressão muito forte sobre os padres e religiosos homossexuais.

 

Essa pressão foi tanto mais efetiva porque, graças à mobilização dos fiéis, foi exercida por aqueles e aquelas que esses padres são obrigados a instruir e a orientar no dia a dia – e não por seus superiores hierárquicos –, obrigando-os a adotar posturas de hipervigilância e uma hipercorreção doutrinal.

 

Somente o acúmulo de escândalos em torno da pedocriminalidade clerical que se seguiu a essa sequência, em particular o julgamento de Preynat-Barbarin em Lyon, relaxou essa pressão conservadora que, de outra forma, poderia espartilhar a Igreja da França ainda por um longo tempo.

 

Pesquisei durante dois anos em nome da comissão independente de abusos sexuais na Igreja. Dada a dimensão do fenômeno, nem a instituição nem qualquer grupo católico de pressão podem ainda dar aulas de moral sexual para as pessoas LGBTQI, como o episcopado e a La Manif pour tous fizeram durante as mobilizações de 2012-2013. E, especialmente, não em nome da proteção da infância.

 

Muitos fiéis tomaram consciência desta enésima perda de credibilidade e hoje exigem responsabilidade e mais humildade por parte de sua Igreja. Algumas questões “cornérisées” como “progressistas” pelo polo conservador voltam à estaca zero – a da ordenação de mulheres, por exemplo. O fato é que a Igreja Católica, especialmente em comparação com as Igrejas Protestantes, fez de seu sistema tão particular de gênero uma de suas assinaturas e dificilmente pode se imaginar o contrário.

 

 

“Batinas e homens”

 

O sociólogo Josselin Tricou nos convida a uma formidável exploração neste livro, resultado de um projeto de pesquisa de dez anos sobre “a subjetivação de gênero e as políticas da masculinidade dentro do clero católico francês desde a década de 1980”. Um assunto que, em suas palavras, “desperta constrangimentos no fronte interno e fantasias no fronte externo”.

 

Constrangimentos, porque esse tema se sobrepõe ao da homossexualidade na Igreja Católica, tanto superrepresentada quanto objeto de incitamento ao silêncio. Daí o desejo de todos os padres, religiosos e seminaristas citados (exceto um) de permanecer anônimos. Sem dúvida, sua experiência anterior como religioso ajudou Josselin Tricou a obter esses testemunhos inéditos. Fantasias, porque esse assunto até agora despertou entre os observadores externos operações de “outings” espetaculares e teorias em torno dos supostos “lobbies gays” católicos (ver o livro Sodoma, de Frédéric Martel, Robert Laffont, 2019).

 

Josselin Tricou nos dá as chaves para compreender esta construção de uma masculinidade atípica do clero pela Igreja e das suas consequências, tanto do ponto de vista histórico, sociológico como político.

 

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