“Hoje, estamos na presença de uma elite que se autoperpetua no tempo”. Entrevista com Branko Milanović

Fonte: PxFuel

02 Setembro 2021

 

Branko Milanović é um dos especialistas mais proeminentes em nível mundial em matéria de desigualdade econômica, tema ao qual se dedicou a estudar por toda a sua vida. Como apontado no título, em seu último livro Capitalismo sem rivais (Todavia, 2020), Milanović argumenta que esse sistema se impôs como absoluto vencedor em nível mundial. Nele, analisa e contrapõe os dois modelos de capitalismo, o meritocrático liberal (cujo maior expoente seria os Estados Unidos) e o capitalismo político (representado fundamentalmente pela China).

 

A entrevista é de Juan Manuel Telechea, publicada originalmente por Le Monde Diplomatique e reproduzida por Rebelión, 01-09-2021. A tradução é do Cepat.

 

Eis a entrevista.

 

Iniciemos com esse conceito, que é uma das bases de seu livro. O que significa um capitalismo meritocrático liberal?

Para responder, convém dividir o conceito em duas partes, porque por um lado temos o componente liberal, que obedece a questões da esfera política e, por outro, o capitalismo, vinculado à organização econômica da sociedade. Começo por este último, que me parece o mais adequado para fins expositivos.

Defino capitalismo do modo como Marx e Weber faziam, ou seja, como um sistema onde a maioria da produção é realizada pelo setor privado, onde esse capital contrata força de trabalho livre (do ponto de vista jurídico) e cuja coordenação está descentralizada.

Os termos meritocrático e liberal provêm das definições de diversas formas de igualdade que John Rawls expõe em seu livro Uma teoria da justiça. Assim, a igualdade meritocrática se refere a um sistema onde o nível de renda das pessoas e o lugar onde estão na pirâmide de distribuição de renda depende exclusivamente de seu talento e dedicação. Ou seja, não existem obstáculos legais que impeçam os indivíduos alcançar uma determinada posição na sociedade. Mas, por outro lado, admite a total transmissão da riqueza de uma geração à outra.

A igualdade liberal, ao contrário, é mais equitativa porque corrige, em parte, a transmissão de tal riqueza impondo elevados impostos às heranças e inclui a educação gratuita como mecanismo para igualar oportunidades e, assim, reduzir a transferência intergeracional de vantagens e privilégios.

Desse modo, esse sistema levanta a questão de como são produzidos e intercambiados os bens e serviços (“capitalismo”), como são distribuídos entre os indivíduos (“meritocrático”) e o quanto de mobilidade social existe (“liberal”).

 

 

Em seu livro, você identifica uma série de transformações que esse sistema sofreu nas últimas décadas. Em particular, chamou muito a minha atenção o surgimento do que você denomina “homoplutia”.

Sim, isso para mim é uma das grandes mudanças que ocorreram nos últimos anos. Nas sociedades de meados do século passado, quando se analisava o estrato dos 10% mais ricos da população, encontrava-se rentistas e proprietários de grandes explorações industriais, ou seja, indivíduos que não eram contratados por ninguém e, portanto, sua renda não provinha do trabalho.

Atualmente, uma porcentagem significativa desses 10% são pessoas que ocupam cargos diretivos em grandes empresas, dedicam-se à medicina, a ramos vinculados à tecnologia ou a outras profissões pelas quais recebem um salário em troca de seus serviços. Essas mesmas pessoas, seja por herança ou porque pouparam dinheiro suficiente ao longo de sua vida de trabalho, acumularam uma alta quantidade de riqueza que está investida em ativos financeiros que geram uma renda e que se complementa com seus salários.

Ao analisar os dados para os Estados Unidos, observa-se que em 1980 apenas 15% dos indivíduos incluídos no decil mais alto da escala por sua renda do capital também ocupavam o decil mais alto da renda do trabalho, e vice-versa. Essa porcentagem dobrou nos últimos trinta e sete anos.

 

E aí surge outra questão muito importante que você estuda em seu livro, que é a dos casamentos entre essas mesmas pessoas que fazem parte dos 10% mais ricos.

Sim, alegra-me que você tenha mencionado essa questão porque, junto com a homoplutia, esse são dois temas nos quais venho prestando especial atenção, após publicar o livro. O interessante desses dois elementos é que, se os consideramos individualmente, não parecem ser mudanças negativas para a sociedade, mas ao combiná-los trazem novas causas para explicar o aumento da desigualdade.

A homoplutia leva a uma menor estratificação social, ou seja, diferente do passado, hoje, não temos essa divisão tão nítida entre a classe trabalhadora e a empresarial. Por outro lado, o fato de que, atualmente, se observe que aumentaram os casamentos entre pessoas dos 10% mais ricos é resultado do maior acesso das mulheres a melhores níveis de educação e maior inserção laboral em postos melhor remunerados. Sendo assim, cada uma dessas questões, quando consideradas individualmente, é positiva para a sociedade. E mais, também reflete maior liberdade para escolher seu par.

Não obstante, isso também se traduz em uma tendência a escolher uma parceira com um nível de educação e de renda semelhante, e isso contribui para o aumento da desigualdade na distribuição da renda. Nos anos 1950, os homens tendiam a se casar com mulheres de um status similar ao seu, mas quanto mais rico fosse o marido, menos era provável que a mulher trabalhasse e que tivesse sua própria renda.

Atualmente, os homens mais ricos e com maiores níveis de formação costumam se casar com mulheres de renda e nível educacional semelhantes, quem mantêm seu trabalho. Sendo assim, hoje, nesses lares, você tem duas fontes de geração de renda muito altas (quando no passado você tinha apenas uma). Cerca de um terço do aumento da desigualdade nos Estados Unidos, entre 1967 e 2007, pode ser explicado por esse “casamento seletivo”.

 

Os elementos mencionados servem para compreender os mecanismos que geram desigualdade em um dado momento, mas em seu livro você identifica um processo de aumento da desigualdade que se transmite de geração em geração, certo?

Sim, eu acredito que a parte dinâmica desse processo é sumamente relevante, porque se você parte da homoplutia e do casamento seletivo e combina isso com a substancial soma de dinheiro que esses casais investem em seus filhos/as em termos de educação, observa uma transmissão dessas vantagens de uma geração para outra.

Para se ter uma ideia, Daniel Markovits, em seu livro The Meritocracy trap, estima que um casal gaste de 5 a 10 milhões de dólares nessa formação. Ocorre que esse investimento permite que acessem as melhores escolas e universidades, o que, por sua vez, depois, lhes dá acesso a melhores postos de trabalho e a rendas mais altas.

 

E a tudo isso também é preciso acrescentar outro componente: a desigualdade na geração de riqueza.

Uma das motivações por trás do livro era identificar as forças que podem levar à criação de uma elite que se autoperpetue no tempo. Dentro desse processo, outro elemento central é a diferença nos rendimentos da riqueza acumulada. Em termos gerais, a riqueza é acumulada com ativos financeiros e em imóveis.

Os 5% mais ricos da população mantêm a maioria de suas economias em ativos financeiros. Isso não significa que não tenham grandes casas cujo valor de mercado é altíssimo, mas em comparação ao total de sua riqueza representa uma parte menor. Ao contrário, para o resto da população com capacidade de poupar, sua moradia representa a maior parte de seu patrimônio.

Ao estudar o que aconteceu com o rendimento médio, nesses dois tipos de ativos, verifica-se um canal adicional de aumento da desigualdade. Durante os trinta anos transcorridos entre 1983 e 2013, as famílias estadunidenses com maior patrimônio se enriqueceram mais porque os ativos financeiros deram maiores lucros que a moradia. A rentabilidade média anual (em termos reais) dos ativos financeiros foi de 6,3%, ao passo que a da moradia foi de um mero 0,6%.

Mais ainda, se a sua moradia é o principal bem de seu patrimônio, mesmo que o preço gere um “efeito riqueza” em termos de valorização bem, na realidade, isso não se traduz em maior renda, dado que não gera juros, ao passo que, para o caso dos ativos financeiros, sim.

 

 

E aí aparece o último elo de todo esse processo: a capacidade dessa elite de modificar as leis e regulamentos a seu favor.

Esse ponto é crucial, o controle do processo político. Por meio do financiamento e as doações para campanhas, essa elite consegue controlar boa parte da agenda política. Basicamente, o que acontece é que o dinheiro dessas pessoas vai para os candidatos que apoiam seus interesses.

O controle político é um componente indispensável para a existência de uma classe alta que consegue se manter ao longo do tempo.

Diferentes trabalhos dos cientistas políticos Martin Gilens, Benjamin Page, Christopher Achen e Larry Bartels forneceram, pela primeira vez na história, a confirmação empírica de que os ricos têm mais peso político e de que o sistema estadunidense passou de uma democracia a uma oligarquia. Para se ter uma ideia do volume de dinheiro, nas eleições estadunidenses de 2016, 0,01% dos mais ricos contribuíram com 40% do total das doações de campanha.

Outra questão que também está presente nesses trabalhos é que é muito mais alta a probabilidade de que nas câmaras sejam debatidos e legislados temas de interesses para os estratos mais ricos, como, por exemplo, reduções nas alíquotas mais altas do imposto sobre os lucros ou menores regulações sobre as empresas, do que aqueles temas que interessam mais aos setores médios e baixos. Desse modo, o controle político é um componente indispensável para a existência de uma classe alta que consegue se manter ao longo do tempo.

 

Outra questão que achei muito interessante é a parte onde você destaca o poder discursivo dessa nova fase do capitalismo. Por exemplo, é muito difícil ir contra a ideia de mérito ou de que as mulheres tenham uma participação muito mais ativa no mercado de trabalho. Parafraseando Gramsci, esse sistema também domina o senso comum.

Sim, certamente é assim. E não só com nessas questões, mas também, por exemplo, com o tema dos impostos ou com a recusa em aumentar o investimento na educação. As pessoas mais endinheiradas utilizam cada vez menos a educação pública, então, seu raciocínio é que não deveriam pagar cada vez mais impostos por algo que não utilizam. Isso leva a uma redução da qualidade do sistema educacional público, reforçando o seu raciocínio. Desse modo, gera-se uma “profecia autorrealizável” que se torna muito difícil de combater.

 

Passemos para a outra parte de seu livro, onde analisa e compara o sistema “meritocrático liberal” com o “capitalismo político” da China.

Sim, na verdade, tomo a China como exemplo por ser o caso paradigmático, mas existem outros países que também poderiam ser agrupados dentro desse sistema. Esses casos não apenas se encaixam dentro desse sistema, mas também em sua gênese. No livro, analiso qual foi, em minha perspectiva, o papel global e histórico do comunismo.

Nesse sentido, para mim, o comunismo foi uma ferramenta que permitiu aos países subdesenvolvidos e às colônias se livrar de seus colonizadores e da estrutura semifeudal de suas sociedades. Isto permitiu à China realizar uma transformação de todo o sistema político e econômico, que também poderia ser chamado de “capitalismo estatal”.

No livro, apresento várias estatísticas que respaldam essa afirmação, sobretudo o fato de que hoje, na China, está vigente um modo de produção capitalista, mas com o Estado tendo um papel de protagonista. Isso significa que na China o Estado tem autonomia, algo que não acontece nos países ocidentais.

Sendo muito simplista, o ponto seria que nos países ocidentais o Estado é controlado pela classe alta endinheirada, ou a burguesia, ao passo que na China tem autonomia. Isso não é necessariamente algo positivo, sabemos que existem sérios problemas de corrupção, mas lhe confere uma capacidade de ação e intervenção na economia muito mais rápida e efetiva.

 

E quais são as tensões que você nota nesse sistema? São as mesmas dos países ocidentais?

Não, não acredito que sejam as mesmas. Na China, a tensão maior está entre a necessidade de ter uma burocracia eficiente, mas que, ao mesmo tempo, seja regida pela lei. No capitalismo político (e aqui podemos incluir a Rússia), a lei se aplica de forma discricionária. O Estado pode utilizar a lei a favor – ou contra – um determinado grupo econômico, por exemplo. Isso incentiva a corrupção, porque a maneira de evitar que o Estado tome medidas contra você se dá por meio de subornos ou questões desse tipo. Sendo assim, a corrupção é inerente ao sistema.

Fazendo um paralelo, é semelhante ao modo como a classe endinheirada nos sistemas meritocráticos liberais manipula o sistema a seu favor. A corrupção nesses países é menos evidente porque é praticada como parte do sistema, ao passo que na China é muito mais evidente porque inevitavelmente você precisa subornar os políticos para obter um benefício em troca.

 

Voltando ao sistema meritocrático liberal, é possível replicar essa categorização para os países latino-americanos, como a Argentina?

Não acredito que a mesma dinâmica seja observada nesses países. Justamente a Argentina me parece o melhor exemplo para mostrar por que não acredito que se aplique aqui. A questão é que nesses países se observa uma desigualdade muito alta que é estrutural e que, sobretudo, no caso argentino, não responde a outras clivagens (como pode ser o tema étnico, na Europa, ou a cor da pele, no Brasil).

Portanto, a Argentina é um caso muito “puro”, onde vejo uma desigualdade muito alta na distribuição de renda, que é a raiz dos ciclos políticos e econômicos observados desde meados do século passado, ou mesmo antes, entre governos de esquerda e de direita. Agora, a pergunta então é quando e como termina com esse ciclo. Na minha opinião, termina quando são alcançados níveis de renda mais altos que permitem reduzir a desigualdade de modo permanente.

 

E como é possível romper esses ciclos?

Eu acredito que as diferenças entre as preferências políticas e os partidos em países como Argentina são muito grandes, justamente porque a estrutura subjacente é muito desigual. Se você tem dois grandes grupos sociais muito distantes entre si, isso fará com que as políticas econômicas que sejam reivindicadas e representadas por seus partidos políticos também estejam muito distantes. Ao contrário, quando a distribuição de renda é mais equitativa, os grupos – ou classes – sociais se assemelham mais entre si, o que reflete em políticas públicas menos distantes entre as diferentes facções políticas.

Sendo assim, uma maneira de romper com esses ciclos é tendo um governo (ou vários) que se mantenha no poder por um tempo suficiente, digamos 20 anos, e que consiga um crescimento sustentado da economia, combinado com políticas que levem a uma permanente redução da desigualdade. Essa transformação socioeconômica permitiria aproximar os polos, conseguindo que na alternância política não sejam observadas mudanças tão bruscas nas políticas econômicas.

 

 

E qual avalia que deveria ser a agenda, em termos de políticas econômicas, para se chegar a isso?

Eu acredito que a base dessas políticas deveria almejar alcançar a igualdade de oportunidades. Esse deveria ser o eixo orientador das políticas. Isso significa equiparar as probabilidades de “subir” na pirâmide social, que todas as pessoas tenham as mesmas possibilidades, algo que hoje evidentemente não acontece. A igualdade de oportunidades levaria à redução da desigualdade na distribuição da renda.

Mas, aqui, também aparece outro círculo vicioso porque, como vimos, a (desigual) distribuição de renda afeta as probabilidades de acesso a melhores salários. Então, para alcançar isso, é preciso começar corrigindo as disparidades atuais com impostos sobre a riqueza, a herança e as rendas altas.

Não obstante, não se deve ficar apenas nos impostos, porque são uma ferramenta limitada e que causa muita resistência na sociedade, obviamente nas pessoas mais endinheiradas, mas também na classe média. Por isso, deveria ser complementado com outras políticas, como, por exemplo, um alto investimento em educação pública e a regulamentação do financiamento das campanhas eleitorais (em particular, no caso dos Estados Unidos).

Em relação à educação, e pensando em países de renda média e alta, como a Argentina, a questão primordial não é tanto o acesso à educação, mas alcançar maior qualidade e igualar a remuneração obtida pelas pessoas com o mesmo nível educacional. Hoje em dia, as desigualdades salariais não se devem apenas às diferenças nos anos de escolaridade (elas vêm diminuindo sustentadamente), mas também à diferença na qualidade das escolas e as universidades, públicas e privadas. Portanto, o gasto em investimento público não apenas requer garantir o acesso de toda a população, mas aumentar a qualidade da educação pública ao mesmo nível da privada.

 

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