Laborem Exercens: 40 anos! Trabalho e dignidade humana!

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27 Agosto 2021

 

"A princípio, os direitos dos trabalhadores estão conectados ao “mandamento de Deus, da própria natureza humana e do respeito devido ao próximo” (LE 16 a b). E o primeiro dos direitos é o direito ao trabalho", escreve Pe. Gilberto Orácio de Aguiar, em resenha crítica sobre a Carta Encíclica Laborem Exercens (O trabalho humano) - 1981, de autoria do Papa João Paulo II (In: LESSA, Luiz Carlos. Dicionário de Doutrina Social da Igreja: Doutrina Social da Igreja de A a Z. São Paulo: LTr, 2004)

 

Pe. Gilberto Orácio de Aguiar, é doutor em Ciências Sociais (Antropologia) pela PUC/SP, com Mestrado em Ciências da Religião pela PUC/GO. Possui ainda especializações em: Teologia e História (EST/RS); Hermenêutica Contextualizada (Claretianos/SP); Espiritualidade (UNISAL); Doutrina Social da Igreja (PUC/GO em andamento). Entre outras atividades, trabalha como pregador de retiro, acompanhante espiritual, professor de teologia em escolas de Teologia Pastoral e escritor sazonal da Editora Vozes (“Meditações para o dia a dia”).

 

Eis o artigo.

 

Desde o Evangelho social de Jesus, a “Doutrina” Social da Igreja é a norma fundamental da comunidade cristã seguidora dos passos de Jesus. Isto de modo que, qualquer escrito, sobre fé e sociedade, deverá saber conjugar a realidade social da qual se falará e o ser humano localizado naquele contexto. Desde que começamos a sistematizar os textos para termos o que hoje chamamos de Doutrina Social da Igreja (DSI), a preocupação principal é expressar o olhar sobre o mundo ao redor do ser humano. E investigar, tal realidade coloca-se a serviço da vida humana. Para a DSI só existe uma preocupação: defender a dignidade vulnerável e ferida do homem e da mulher.

 

Em todos os escritos da DSI a linha mestra é a dignidade humana como identidade do ser imagem e semelhança de Deus. Somente muda o contexto histórico de cada documento. No caso da Laborem Exercens (LE), do Papa São João Paulo II, comemorando os 90 anos da Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, o olhar se concentra na premissa: “o trabalho foi feito para o homem e não o homem para o trabalho”.

 

...Embora seja verdade que o homem está destinado e é chamado ao trabalho, contudo, antes de mais nada o trabalho é “para o homem” e não o homem “para o trabalho” [...] Independentemente do trabalho que faz cada um dos homens e supondo que ele constitui uma finalidade não possui por si mesma uma significado definitivo. De fato, em última análise, a finalidade do trabalho, de todo e qualquer trabalho realizado pelo homem – ainda que seja o trabalho mais humilde de um “serviço” e o mais monótono na escala de modo comum de apreciação e até o mais marginalizador – permanece sempre o mesmo homem (LE 6f).

 

Isto é, o dono do trabalho não é nenhuma empresa ou outro tipo de poder onipresente controlador das forças dominadoras contra o trabalhador. Mas, o sujeito trabalhador, este é o dono do trabalho. Então, é deste ponto nevrálgico que entendemos a relação sadia e verdadeiramente produtiva do ser humano com as atividades laborais. Daí que a DSI tem como características analisar e denunciar com voz profética, as atividades de cada época que não estão em sintonia com a Sagrada Escritura e o pensamento da igreja em relação à dignidade humana não respeitada.

 

Mas, o que é o trabalho?

 

Partindo do texto da Encíclica que define o trabalho como “ação realizada pelo homem” (LE Introd.) e “atividade transitiva” (LE4c), podemos traçar algumas características do mesmo: “atividade transitiva (que o sujeito não realiza sobre si mesmo), própria e exclusiva do ser humano, pela qual cumpre o mandamento divino de dominar a terra, e por meio da qual satisfaz as suas necessidades e se realiza como ser humano e como criatura feita à imagem de Deus. Poder-se-ia dizer, portanto, que o tema da encíclica não é tanto o trabalho quanto o homem em uma dimensão essencial de sua existência, qual seja, o trabalho” (CAMACHO, 1995, p. 399).

 

De modo geral podemos afirmar que a encíclica LE possui uma antropologia e teologia de seu tempo e não um retrocesso ao século XIX. O presente documento traz consigo uma memória forte do contexto geográfico em que vivera o Papa São João Paulo II, principalmente quando faz uma contemplação dos “dois sistemas econômicos, capitalismo e coletivismo”. Parece que retornam ao texto os problemas comuns do período industrial, mas existe uma percepção de avanço nas reflexões quando se analisa esse período tendo o distanciamento histórico possível. E ainda, que não existe um rompimento em relação a Paulo VI (CAMACHO, 1995, p. 391)

 

Mas, temos que admitir o texto da LE não é de fácil leitura e nem de fácil compreensão.

 

Sem dúvida, dentre todos [os documentos pontifícios] que integram o rico arsenal da DSI [até aqui], este é o mais difícil de ler. O estilo é duro e pouco conciso; a linha de pensamento, sobretudo em sua parte central, não é clara pela abundância de repetições e incisos que fazem o leitor perder o fio condutor das idéias [...] A encíclica encontra-se inequivocamente marcada pela personalidade do papa e por sua dupla experiência pessoal: sua juventude de trabalhador e seu contato com um regime de filiação marxista (CAMACHO, 1995, p. 395).

 

A questão antropológica discutida pela LE encontra-se no verdadeiro sentido do trabalho. Falta à sociedade uma percepção que centralize o ser humano e dele cuide para que não perca a sua dignidade. Entretanto, o que a Igreja percebe em sua doutrina acerca do trabalho e a sua relação com o ser humano, é que este foi reduzido à coisa. O ser humano foi alienado resultando na sobreposição do ‘capital’ sobre o trabalho (GASDA, 2021, p. 657).

 

Na LE o que se utiliza para se fundamentar a dignidade e sobrepô-la ao trabalho é retirado da Sagrada Escritura. O livro do Gênesis em seu início nos apresenta as bases para o entendimento da lógica normativa que põe o ser humano como quem domina o trabalho e não é dominado por ele. Isto nos esclarece que o ser humano está acima de todo meio de produção. E também é uma contestação à ‘dominação do homem sobre outros homens’ (GASDA, 2021, p. 662).

 

Deste contexto bíblico podemos retirar uma visão ética que nos permite compreender o trabalho partindo de duas distinções: o sentido objetivo do trabalho (uso da técnica pelo ser humano) e o sentido subjetivo (a tomada de ação racional do ser humano como imagem de Deus decidindo sobre si).

 

O homem deve submeter a terra, deve dominá-la, porque, como “imagem de Deus” é uma pessoa; isto é, um ser dotado de subjetividade, capaz de agir de maneira programada e racional, capaz de decidir por si mesmo e tendente a realizar-se a si mesmo. É como pessoa, pois, que o homem é sujeito do trabalho. É como pessoa que ele trabalha e realiza diversas ações que fazem parte do processo do trabalho; estas independentemente do seu conteúdo objetivo, devem servir todas para a realização da sua humanidade e para o cumprimento da vocação a ser pessoa, que lhe é própria em razão da sua mesma humanidade [...] E assim aquele “domínio” de que fala o texto bíblico, sobre o qual estamos meditando agora, não se refere só à dimensão objetiva do trabalho, mas introduz-nos, ao mesmo tempo, na compreensão da sua dimensão subjetiva. O trabalho entendido como processo, mediante o qual o homem e o gênero humano submetem a terra, não corresponderá a este conceito fundamental da Bíblia senão enquanto, em todo esse processo o homem, ao mesmo tempo se manifestar e se confirmar como aquele que “domina”. Este domínio, em certo sentido, refere-se à dimensão subjetiva ainda mais do que à objetiva: esta dimensão condiciona a mesma natureza ética do trabalho. Não dúvida nenhuma, realmente, de que o trabalho humano tem o seu valor ético, o qual, sem meios- termos, permanece diretamente ligado ao fato de aquele que o realiza ser uma pessoa, um sujeito consciente e livre, isto é, um sujeito que decide por si mesmo (LE 6 b c).

 

O que se espera dessa relação é a priorização do aspecto subjetivo sobre o objetivo. Ou seja, espera-se que o ser humano faça bom uso da sua razão sobre a criação, como cooperador na obra do Criador, administrando a exploração dos bens da terra.

 

Existem dois conceitos que caminham juntos na composição de um problema sério contra a dignidade do ser humano, quando se encontram mal relacionados: capital e trabalho. O capital é fruto do trabalho. Por capital entendemos os elementos de trabalho, os meios de produção, desde o início até às tecnologias atuais. Aqui a preocupação da Igreja é que o capital sirva às pessoas e não, as pessoas se tornem escravas do capital (LE 14 a = Capital – Trabalho - Propriedade) (GASDA, 2021, p. 664).

 

Relacionada ao trabalho, está também a propriedade e seu uso em benefício da dignidade do ser humano. Toda propriedade privada ou pública está subordinada à melhor maneira de dar ao ser humano, o melhor que existe para subsistência da sua família. A propriedade, mesmo que seja meio de produção, existe em função do ser humano, para servi-lo, para fazê-lo alcançar o seu ápice nos desígnios do Criador em relação à sua dignidade. “Qualquer sistema de propriedade deve servir ao destino universal dos bens” (CAMACHO, 1995, p. 409).

 

O direito à propriedade privada subordina-se ao princípio da destinação universal dos bens e não deve constituir motivo de impedimento ao trabalho e ao crescimento de outrem. A propriedade, que se adquire antes de tudo através do trabalho, deve servir ao trabalho. Isto vale de modo particular no que diz respeito à posse dos meios de produção; mas tal princípio concerne também aos bens próprios do mundo financeiro, técnico, intelectual, pessoal. (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 282).

 

E quais são os direitos do homem no mundo do trabalho?

 

A princípio, os direitos dos trabalhadores estão conectados ao “mandamento de Deus, da própria natureza humana e do respeito devido ao próximo” (LE 16 a b). E o primeiro dos direitos é o direito ao trabalho.

 

Mas esse direito não depende apenas do sujeito que trabalha. Pressupõe outro termo da relação: o empresário, que é aquele que oferece o emprego. Pois bem, a Laborem Exercens não se contenta com o conceito comum de empresário. Ao falar do direito ao trabalho, concentra sua atenção sobre o empresário indireto, que contrapõe ao empresário direto. O conceito de empresário indireto é [uma] contribuição original desta encíclica [...] O conceito de empresário indireto pode ser aplicado a toda a sociedade e, em primeiro lugar, ao Estado (LE 17b). Toda a sociedade influi sobre as relações de trabalho, mas nelas o Estado desempenha um papel determinante [...] No final das contas, o empresário indireto pode ser definido como ‘o conjunto de instâncias, em escala nacional e internacional, responsáveis por todo o ordenamento da política trabalhista’ (LE 18a) (CAMACHO, 1995, p. 414).

 

Os direitos dos trabalhadores elencados na encíclica formam o contexto da época, fim do século XIX (LE 16 – 23) e que hoje ainda são necessários serem conquistados. Podemos elencá-los: emprego, salário justo, seguridade social, descanso, greve, sindicalização [1], direitos da mulher trabalhadora, promoção do trabalho agrícola, direito do trabalhador com necessidades especiais. São direitos inalienáveis e fundamentais em uma sociedade do trabalho assentada na relação salarial. Entretanto, a necessidade de ornar eticamente a sociedade segundo o princípio do primado do trabalho sobre o capital exige que se avance na busca de um modelo econômico que melhor responda a esse princípio. Enquanto subsistam as relações atuais entre “capital” e “trabalho”, os direitos enumerados devem ser assegurados e ampliados (GASDA, 2021, p. 666).

 

No que diz respeito a uma espiritualidade do trabalho, o Papa São João Paulo II se esforçou em manter durante todo o texto da encíclica dois polos: o racional e o teológico. O texto reúne elementos que caracterizam o chamado “evangelho do trabalho” (LE 25c; 26adg). E este termo sinaliza para o entendimento que a Igreja possui enquanto ‘Boa Nova’ sobre a atividade humana do trabalho, o significado que o trabalho humano tem aos olhos de Deus e a importância do trabalho no plano da salvação (LE 24a). A expressão ‘evangelho do trabalho’ encontra-se apoiada sobre duas colunas: a criação (LE 4) e a redenção (LE 26 – 27). Ainda podemos salientar que para desenvolver esta teologia do trabalho o papa apoia-se sobre três eixos: “o homem, criado à imagem de Deus e partícipe de sua obra criadora: este é ‘em certo sentido o evangelho do trabalho’” (LE 25cbde); “o exemplo de Cristo, que dá sentido às tarefas de cada dia” (LE 26abcdf); “o trabalho e a fadiga unidos, recebem seu último sentido da morte e da ressurreição de Jesus” (LE 27abg). (CAMACHO, 1995, p. 417 – 419).

 

É bom termos presente que a DSI não é mero compêndio para leituras ou meditações aleatórias sobre a sociedade e suas questões relacionadas ao ser humano. Mas, deve servir-nos de impulso à missão evangelizadora. Para isto, devemos estar com a atenção focada nas palavras e gestos de Jesus. É sua missão que iluminará as nossas tarefas de discípulos missionários por onde formos e onde estivermos. E nesta vivência devemos estar atentos aos apelos dos nossos irmãos/ãs mais frágeis que invadem nossos sentidos com a pergunta que vem lá do livro do Gênesis: “onde está o teu irmão?” (Gn. 4, 9). Ao encontrarmos os nossos irmãos/ãs, devemos ver como estão e como podemos socorrê-los a partir da compaixão, da misericórdia, da solidariedade... do amor.

 

Notas

[1] “A LE não esconde seu interesse pelo sindicalismo. Sabemos das reservas em relação aos sindicatos mantidos durante anos pela Doutrina Social. Mesmo reconhecendo que sua origem tem muito a ver com as corporações de artesãos medievais, João Paulo II destaca a novidade dos sindicatos modernos, que se desenvolveram sobre a base da luta dos trabalhadores, especialmente os operários industriais, para a tutela de seus direitos perante os empresários e proprietários dos meios de produção. Neste sentido, os sindicatos devem ser considerados como “elementos indispensáveis da vida social”” (LE 20 a c) (CAMACHO, 1995, p. 416) E ainda, “é também necessário [...] provocar ações que favoreçam o respeito, a promoção e a defesa dos princípios e direitos fundamentais no trabalho; promover a liberdade sindical, a negociação coletiva e o diálogo social; criar projetos de luta contra o trabalho infantil; promover oportunidades educativas para meninos e meninas e projetos de acolhida adequada aos migrantes” (VÁSQUEZ, 2018, p. 130).

 

Referências Bibliográficas

CAMACHO, Ildefonso. Doutrina Social da Igreja: abordagem histórica. São Paulo: Edições Loyola, 1995.

COMPÊNDIO DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA / PONTIFÍCIO CONSELHO/ “JUSTIÇA E PAZ”. 7 edição. São Paulo: Paulinas, 2011.

GASDA, Élio Estanislau. O trabalho aos olhos de Deus: Laborem Exercens faz 30 anos. Disponível aqui. Acessado em: 18/06/2021.

JOÃO PAULO II, Papa. Carta Encíclica Laborem Exercens (O trabalho humano). In: LESSA, Luiz Carlos. Dicionário de Doutrina Social da Igreja: Doutrina Social da Igreja de A a Z. São Paulo: LTr, 2004.

VÁSQUEZ, Guillermo Sandoval. O trabalho escravo em nossos tempos. In: ZACHARIAS, Ronaldo e MANZINI, Rosana (Orgs.). A Doutrina Social da Igreja e o cuidado com os mais frágeis. São Paulo: Paulinas, 2018.

 

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