Sagas de vida de Karapiru, o Awa Guajá, sobrevivente dos traumas de seu povo falecido de Covid-19

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28 Julho 2021

 

Falecido no Maranhão, Karapiru protagonizou um memorável reencontro com seu filho após dez anos de caminhada silenciosa, fruto da trágica experiência com fazendeiros que dizimaram seus parentes.

A reportagem foi publicada por Instituto Socioambiental - ISA, 26-07-2021.

 

Imagem: Kapiruna | Foto: André Toral

 

Karapiru e um de seus filhos são os sobreviventes de uma emboscada de fazendeiros nos anos 1970, em que foram vitimados todos seus familiares – mãe, esposa, filhos e irmãos -, sendo os únicos sobreviventes o seu filho, capturado pelos invasores, e ele, que fugiu, levando cravada nas costas a bala ardente de uma das armas de fogo usadas no ataque. Durante dez anos, ele acreditou ser o único sobrevivente da sua família e refugiou-se nas matas (entre 1978-1988), percorrendo várias regiões, flechando porcos, dormindo no alto das árvores, visitando esporadicamente fazendas e conversando consigo mesmo. Até que decidiu entrar em contato com moradores de uma pequena cidade no noroeste da Bahia, ao final dos anos 1980, a mil quilômetros do ponto de partida.

O episódio deste contato foi um surpreendente reencontro: um dos intérpretes levados pela Funai para mediar contatos com Karapiru, falando-lhe em sua língua, e vendo as “marcas de chumbo” nas suas costas, reconheceu que aquele era, em verdade, o seu pai, do qual havia sido separado há mais de uma década antes! Até então, sequer sabiam de qual povo aquele homem misterioso e resiliente poderia ser. Levado novamente ao convívio dos Awa em uma aldeia em TI demarcada pela Funai, e em companhia do filho, Karapiru fora recebido com festa, passando a viver em uma das comunidades com atuais familiares. Dentre eles, foi um presente guerreiro na luta pela defesa dos territórios indígenas e pela proteção dos grupos Awa isolados. Sua história foi eternizada no filme “Serras da Desordem”, de Andrea Tonacci, lançado em 2006.

 

 

“Os karai [não indígenas] mataram a minha esposa e meu filho. Eles atiraram neles na mata. Atiraram com arma de fogo feita de ferro. Eu era o pai. Quem morreu foi um antigo filho meu. Os karai o mataram com arma de fogo. Nós corremos e eles foram atrás de nós e os mataram. Os karai matam até crianças Awa! Mataram meu filho! Eu andei muito pela mata. Às vezes era muito calor e sentia sede. De longe eu ficava observando os karai. Via suas plantações de mandioca e milho. E pensava que um dia ia matá-los. Andava muito pela floresta: a floresta é grande! Muitas vezes eu estava tão perto dos karai que escutava o galo cantar. Por vezes eu passava fome”.

Os Awa Guajá, estimados em 520 pessoas falantes de uma língua tupi-guarani, são um povo que sempre privilegiou o convívio em pequenos grupos numa distribuição por territórios abrangentes, pelas imediações dos rios Pindaré e Gurupi, na porção oriental da Amazônia, e habitantes de diversas aldeias compreendidas atualmente na TI Awa, TI Alto Turiaçu, TI Caru e TI Araribóia, onde compartilham territórios com famílias dos povos Ka’apor, Tembé e Tenetehara (Guajajara), alguns dos quais com presença de grupos isolados, no Maranhão.

Tanto os Awa quanto os Avá-Canoeiro são povos sobreviventes de sucessivos massacres por fazendeiros e colonos do Brasil central, nas regiões dos estados de Maranhão, Goiás, e depois, Tocantins, e tem hoje diversos grupos isolados, em decorrência de dispersão e fuga, tendo percorrido longas distâncias, pelos estados de Goiás, Bahia e Minas Gerais, há mais de 2 séculos.

Para os Awa, a “vida na floresta” é fundamental, e os seus conhecimentos dela, de seus animais e plantas, correspondem a diversas atividades, de subsistência, como a caça, coleta e cultivos, e também cerimoniais, como rituais xamânicos e de cura, entre outras práticas culturais, além da importância para a conservação destes seus últimos refúgios de floresta amazônica no Maranhão frente à sua exploração predatória e destruição, intensificadas ao longo das décadas, especialmente com a ocupação econômica da Amazônia deflagrada na década de 1960.

Os territórios dos Awa, últimas parcelas de floresta tropical preservada no Maranhão e objeto de conflitos, formam um corredor verde junto com a Reserva Biológica (Rebio) do Gurupi. Hoje, são fortemente impactados por invasões de madeireiros, que já causaram desmatamento e degradação de cerca de 90% da floresta remanescente. Historicamente, a área é marcada pelos efeitos de fluxos migratórios e o estabelecimento de atividades minerária e agropecuária, além da exploração madeireira, e por obras de infraestrutura realizadas no contexto da ocupação econômica da Amazônia pela ditadura, como a rodovia BR-222 e a Estrada de Ferro Carajás, entre as décadas de 1960 e 1980, que incidiram decisivamente nos territórios e modos de vida dos povos indígenas, com desdobramentos políticos, jurídicos e sociais persistentes.

Sobreviventes de ataques e massacres por invasores desde pelo menos o século XIX, e testemunhas do assassinato de suas próprias famílias nos conflitos contemporâneos em torno das Terras Indígenas, Karapiru e os Awa viveram para ver aquela região do estado maranhense seguir sendo palco de violência até o século XXI, contando agora com um dos maiores números de assassinatos de lideranças indígenas no país apenas no último período, como é a situação alarmante da TI Araribóia, do povo Guajajara, e que recentemente ampliou-se numa escalada de mortes violentas.

Durante a pandemia, apesar de todos os cuidados tomados pelos Awa e demais povos com medidas de isolamento, inclusive com a instalação de barreiras sanitárias nas TIs e adesão à vacinação, o novo coronavírus não foi impedido de entrar no território e alcançar a comunidade indígena, assim como não foram inibidas as invasões para roubo de madeira. Foi já em estado grave de covid-19 que, em julho de 2021, Karapiru foi levado à cidade de Santa Inês (MA) para atendimento hospitalar, onde, como dizem os Awa quando alguém morre: foi para o iwa (“céu”).

 

Imagem: Karapiru | Foto: Andrea Tonacci

 

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