Conhecimento científico e compromisso com a justiça social: propostas para melhorar a vida das mulheres na pandemia

Foto: Andrea Rego Barros | Prefeitura de Recife

Por: Patricia Fachin | 21 Mai 2021

 

A condição de vida das mulheres durante a pandemia de Covid-19 é múltipla e diversa, assim como são as mulheres e suas realidades. Apesar da diversidade, elas estão entre os estratos sociais mais atingidos pela crise pandêmica, seja pelo aumento da carga de trabalho, do desemprego, da pobreza ou da violência doméstica.

 

Elas são maioria nas chamadas "profissões essenciais" e, portanto, também estão mais expostas ao novo coronavírus: ocupam 70% dos cargos em hospitais, escolas, farmácias, supermercados, cuidados domiciliares e trabalhos de limpeza. Na França, segundo reportagem da revista francesa Alternatives Économiques, reproduzida pelo sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU em março deste ano, "é nesses setores não devidamente valorizados e mal pagos (muitas vezes o salário mínimo) que a carga e o tempo de trabalho aumentaram mais com a chegada do vírus, conforme indica um estudo publicado pela Ugict-CGT. E isso é verdade em outras partes do mundo".

 

A reportagem acentua que um dos setores mais afetados pelo isolamento social em 2020 foi o emprego doméstico. "Os 67 milhões de trabalhadores deste setor no mundo, 80% deles são mulheres, viveram o auge da crise no final de junho de 2020: 72% deles sofreram redução da jornada de trabalho ou perderam o emprego, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Na sua maioria não declarados, esses trabalhadores não tinham direito a qualquer renda de substituição".

 

 

Com o fechamento das escolas e creches em decorrência da crise sanitária, a presença das crianças em casa em tempo integral também impactou diretamente a vida e a rotina de trabalho das mulheres. "Nos Estados Unidos, a participação das mães no mercado de trabalho caiu 3%, contra 1,2% dos pais. Na França, em sete de cada dez casos são as mães que faltam por doença para cuidar dos filhos. A decisão de se licenciar foi obviamente imposta às famílias monoparentais, que são mulheres em 70% dos casos nos Estados Unidos e 85% na França. Mas, do outro lado do Atlântico, onde essas licenças não são indenizadas, muitas mães solteiras tiveram de abandonar totalmente o emprego", informa a Alternatives Économiques.

 

De acordo com a Fundação Europeia para a Melhoria das Condições de Vida e de Trabalho (Eurofound), "o teletrabalho revelou-se ser um fardo a gerenciar para muitas mães, fazendo malabarismos com sua profissão, educação em casa para os filhos e tarefas familiares, tudo no mesmo espaço reduzido”.

 

 

Neste contexto em que as mulheres são amplamente afetadas pela crise atual, as estimativas realizadas pela ONU Mulheres e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) é de que a crise sanitária "deva mergulhar 47 milhões de mulheres a mais na pobreza extrema neste ano, elevando seu total global para 435 milhões. Antes da pandemia, a taxa de pobreza deveria ter diminuído 2,7% entre 2019 e 2021, mas aumenta 9,1% e um retorno ao nível pré-pandêmico não é previsível antes de 2030".

 

Outra reportagem da Alternatives Économiques ressalta "o risco de as mulheres perderem alguns ganhos das últimas décadas e de agravar as desigualdades entre homens e mulheres no mercado de trabalho" em decorrência dos efeitos da pandemia. Em junho de 2020, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) "soou o alarme, constatando que a crise da Covid-19 afeta desproporcionalmente as trabalhadoras”.

 

Cenário brasileiro

 

As desigualdades sociais e a informalidade no mercado de trabalho brasileiro tornam o dia a dia das mulheres que vivem nas periferias e favelas do país ainda mais precário: a possibilidade de se protegerem do novo coronavírus é dificultada por causa da falta de recursos básicos, como água encanada, moradia adequada e, mais recentemente, o aumento da insegurança alimentar. A reportagem "Na linha de frente contra a Covid-19, mulheres lutam para se apoiar em favelas do Brasil", publicada pela Agência Pública e reproduzida no sítio do IHU, atualiza os dados sobre o número de brasileiros que vivem nessa condição. "Hoje, cerca de 13,6 milhões de pessoas vivem em favelas e periferias, segundo pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva. E dentre os mais afetados pela pandemia nesses locais estão as mulheres, que chefiam quase metade dos lares brasileiros. Segundo a pesquisa, mais de 5,2 milhões dos moradores de favelas e periferias são mães, e mais de 92% dessas mulheres revelaram que tiveram ou terão dificuldade para comprar itens básicos de sobrevivência e de garantir o sustento e alimentação de suas famílias".

 

 

De acordo com Cláudia Raphael, vice-presidente nacional da Central Única das Favelas (CUFA), entrevistada pela reportagem, "a pandemia trouxe à tona toda a precariedade do sistema sanitário e urbano das favelas. A favela nasceu da necessidade de suprir a falta de habitação e ela cresceu desordenada. Então, quando a gente tem um vírus que chega pela roupa, pelo ar, pela respiração, pelo toque, pela saliva, dentro de um lugar que não tem ar, circulação, que a luz não chega, o risco de contaminação é muito maior. Somando a isso tem a densidade demográfica, às vezes na favela você tem nove pessoas em um cômodo, uma família inteira em um cômodo. Isso é muito injusto, não tem isolamento social na favela. É por isso que as pessoas não ficaram isoladas e se mantiveram na rua, por uma necessidade de sobrevivência mesmo".

 

 

Preto Zezé, presidente global da Central Única das Favelas (Cufa), em entrevista ao IHU ressaltou as dificuldades enfrentadas pelas mulheres nas favelas brasileiras no ano passado. "Se a favela é a mais atingida, mulheres da favela são as mais atingidas dentro desse contexto e as mães solteiras são as que mais sofrerão. Hoje, por exemplo, 85% das mães que têm o filho em casa não conseguem sair na rua para batalhar renda, para trazer comida para dentro de casa; 87% já não vão ter como honrar as contas fixas no fim do mês. Ao mesmo tempo, reside nelas a capacidade de reação, porque quando chega essa transferência de renda, é ela que é capaz de fazer a melhor gestão".

 

Em suas análises, o ObservaSinos, programa do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, tem acompanhado a realidade socioeconômica na região metropolitana de Porto Alegre. No texto publicado em março deste ano sobre o aumento do desalento - pessoas que desistiram de procurar trabalho - na região, destaca-se a situação das mulheres. "Na Região Metropolitana de Porto Alegre, houve um aumento de 123,1% no número de pessoas nessa situação de 2019 para 2020. Antes da pandemia, eram 19 mil pessoas desalentas na região. Com os dados mais recentes, do quarto trimestre de 2020, o número disparou para 42,2 mil pessoas desalentadas", informa a análise. De acordo com ObservaSinos, "desde 2012, quando a PNAD começou a ser realizada, as mulheres foram a maioria das desalentadas na Região Metropolitana de Porto Alegre, representando 60,7% em 2020. No primeiro ano da pandemia, houve um crescimento de 170,1% em relação ao ano de 2019. Enquanto isso, para os homens, o aumento foi de 75,8% em um ano".

 

 

Outra questão que tem se agravado na pandemia é a violência contra as mulheres em suas próprias residências. Em entrevista ao IHU, Renata Moreno, da SOF Sempreviva Organização Feminista e a Rede Economia e Feminismo, destacou que "mais uma vez, ficou evidente que a casa não é um espaço seguro para muitas mulheres, e muitas meninas, crianças, que vivem relações abusivas. E é fundamental destacar que o poder público, de modo geral, não construiu estratégias para enfrentar essa situação de forma coletiva. Isso é um dos fatores que fazem inclusive com que seja difícil mensurar a violência neste contexto, ou seja, quais são os canais de denúncia, quais são os mecanismos de proteção das mulheres e das crianças?"

 

No ano passado, nos primeiros meses da pandemia, a socióloga Jacqueline Pitanguy mencionou, em entrevista ao IHU, que "houve um aumento de 15% no aumento de registros de violência atendidos pela Polícia Militar no Paraná. No Rio de Janeiro, os números chegaram a crescer 50%”. Na avaliação dela, a violência no caso brasileiro contém um agravante por causa do uso de armas de fogo. “Se a casa sempre foi perigosa, e desde a década de 1980 isso ficou evidente, esse perigo se exacerbou muitíssimo em 2019, com o decreto presidencial que permite que se tenha até quatro armas de fogo dentro de casa”, afirma. E adverte: “Isso está tornando a casa não só perigosa, mas também letal. Estamos passando de um estágio de tapas e empurrões, das agressões físicas, para a morte e os assassinatos”.

 

Em entrevista ao IHU, Flávia Melo, professora da Universidade Federal do Amazonas - Ufam, comenta os casos de violência registrados no Amazonas e a dificuldade de garantir assistência às mulheres neste período. "O fato é que com a pandemia a rede tradicional, o sistema de apoio público-estatal foi tremendamente afetado. É importante que se diga que não estamos falando de uma rede de proteção e de serviços públicos que funcionavam plenamente antes da pandemia, mas mesmo nesses serviços, ainda que precários, o acesso pelas pessoas se tornou mais complicado", relata.

 

Na avaliação de Flávia Biroli, professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília - UnB, "as mulheres são as principais vítimas" das "múltiplas crises" que afetam a sociedade hoje. "As mulheres são atingidas de maneira específica por essas crises. Vou dar alguns exemplos. A resposta inadequada à pandemia e o que tem sido descrito por especialistas como estratégia de propagação do vírus pelo governo brasileiro já ceifou [mais] de 400 mil vidas. Também produziu uma taxa de desemprego recorde, de 14,4% segundo os dados mais recentes. Entre as mulheres, ela chegou a 17%. A participação das mulheres na força de trabalho remunerada retrocedeu 30 anos", assegura.

 

 

Em entrevista concedida ao IHU neste mês, Flávia chamou atenção para outra consequência da crise sanitária e socioeconômica no lares brasileiros: o aumento da insegurança alimentar e da fome. "Sem esgotar o conjunto de problemas que atingem de maneira específica as mulheres, não poderia deixar de citar o fato de que a insegurança alimentar – a fome e a desnutrição, para dar nome de maneira mais clara à catástrofe – avança entre os lares mais empobrecidos, eles são justamente aqueles chefiados por mulheres negras. Diante das evidências existentes dos efeitos conjuntos das múltiplas crises sobre as mulheres, é urgente construir respostas que evitem a reprodução e ampliação de desigualdades e injustiças no futuro próximo".

 

Flávia Biroli é uma das organizadoras da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas - RBMC, que propõe, através da realização de pesquisas científicas nas universidades, atuar em defesa das mulheres, auxiliando gestores públicos na formulação de políticas púbicas. A RBMC, fundada no mês passado, explica, "começou com uma reunião entre cerca de dez mulheres cientistas, de diferentes áreas de conhecimento, a partir de conversas iniciais provocadas pela colega Vanessa Elias de Oliveira, cientista política, pesquisadora na área de políticas públicas, professora da Universidade Federal do ABC - UFABC. A motivação principal para essa primeira reunião e para as articulações que a seguiram foi trazer de maneira mais destacada ao debate público os efeitos da pandemia sobre as mulheres, dando visibilidade a pesquisas e iniciativas que podem colaborar para respostas públicas mais adequadas".

 

As respostas à crise, especialmente em relação à elaboração de políticas públicas propositivas para a atual situação das mulheres, frisa, "serão mais eficazes e justas se forem pautadas, ao mesmo tempo, pelo conhecimento científico e pelo compromisso com a igualdade e a justiça social. Somos hoje mais de três mil cientistas, de diferentes áreas de conhecimento e regiões do país. Nosso compromisso é com a saúde da população, com a construção de paradigmas de desenvolvimento mais justos, com a produção de respostas para as múltiplas crises que enfrentamos pautadas pela ciência".

 

 

Professoras e pesquisadoras do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unisinos também participam da RBMC. Segundo a coordenadora do curso, Monika Dowbor, "a rede se mobiliza para propor e acompanhar ações coletivas e políticas públicas voltadas para as mulheres, visando se posicionar pela equidade de gênero e chamar a atenção das instituições responsáveis e da sociedade em geral". Outra proposta da RBMC, menciona, é dialogar com os gestores municipais, estaduais e federal sobre a importância da implementação de políticas públicas específicas para as mulheres. "Para isso, a Rede vai construir um banco de dados das políticas já bem sucedidas nesse sentido bem como das práticas sociais direcionadas para melhorar a condição de vida das mulheres que podem servir de referência e inspiração para aqueles e aquelas gestoras que entendem a dramática situação das mulheres, especialmente negras e de baixa renda", diz.

 

 

Marilia Verissimo Veronese, professora do PPG em Ciências Sociais da Unisinos e integrante da RBMC, pontua que os modos distintos como diferentes grupos sociais são atingidos pela crise sanitária requerem a elaboração de políticas públicas que possam atender as especificidades sociais. "Há vulnerabilidades que agravam os problemas causados pela emergência sanitária, especialmente em contextos de ausência de políticas públicas eficientes, como tem sido o caso do Brasil, desde março de 2020. As mulheres, por acumularem funções de trabalho fora de casa e em casa, nas tarefas de cuidado (com crianças, velhos, deficientes) e por estarem mais sujeitas à violência doméstica, acabam sendo penalizadas com os efeitos deletérios da situação causada pela pandemia. A rede se mobiliza para propor e acompanhar ações coletivas e políticas públicas voltadas para as mulheres, visando se posicionar pela equidade de gênero e chamar a atenção das instituições responsáveis e da sociedade em geral", afirma.

 

Em suas pesquisas interdisciplinares, Marilia investiga a inserção sociolaboral de populações vulneráveis, como usuários da rede de atenção à saúde mental, avalia as condições de saúde mental dos profissionais que atuam na linha de frente e a aceitação da população do Rio Grande do Sul à vacina de Covid-19. "Através dessas pesquisas, tenho trabalhado com oficinas e eventos para formação dos usuários da saúde mental em economia solidária, e na área da saúde planejamos elaborar cartilhas e apresentações com conteúdo acessível, a partir dos resultados, para esclarecer sobre a importância das vacinas e dos cuidados em saúde mental", explica.

 

Monika destaca ainda que "o PPG em Ciências Sociais tem no seu âmago de pesquisa a compreensão das práticas e políticas sociais pelo prisma de desigualdades, cidadania e emancipação. Como grupo de especialistas em gênero (Miriam Veira e Laura Lópes), em participação e políticas públicas (Monika Dowbor), inserção sociolaboral de populações vulneráveis (Marilia Veronese), inovação social (Adriane Ferrarini) e relações raciais e étnicas (Adevanir Pinheiro), dispomos da expertise, baseada em pesquisas, para o mapeamento e a construção de instituições de políticas públicas voltadas para as mulheres e feitas junto com elas". A proposta da RBMC, ressalta, "se encaixa e fortalece a atuação do Programa na medida em que poderemos atuar em redes, trocando as expertises e ofertando aos atores públicos e sociais alternativas para ações concretas".

 

 

 

Mais de 3000 cientistas brasileiras fazem parte da RBMC, que a partir do conhecimento científico acumulado, em diferentes áreas do saber, propõe políticas dirigidas às mulheres em torno de seis grandes temas: saúde, violência, educação, assistência social e segurança alimentar, trabalho e emprego e moradia e mobilidade. Para mais informações sobre a Rede, acesse aqui

 

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