Reforma da Igreja, “vexata quaestio”

Cardeais reunidos para o Conclave de 2013 | Foto: Vatican Media

06 Mai 2021

 

"É preciso ter a coragem de repensar dimensões profundas da vida da Igreja, incluindo: as modalidades – manifestas e subterrâneas – de exercício do poder, a difusão de um modo enrijecido e monolítico de utilização do direito canônico, uma cultura fundamentalmente patriarcal que justifica a exclusão das mulheres do fato de poderem ter uma palavra de autoridade na Igreja, uma prática litúrgica muitas vezes desvitalizada".

A opinião é de Fabrizio Mandreoli, professor de História da Teologia na Faculdade Teológica da Emilia-Romagna, e de Sergio Tanzarella, professor de História da Igreja na Faculdade Teológica da Itália Meridional, em artigo publicado por Settimana News, 01-05-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o artigo.

 

Interessar-se pela reforma da Igreja e propô-la não traz sorte, pelo menos observando-se a história dos últimos dois séculos, relembrando Rosmini, Fogazzaro, Mazzolari e Lercaro, todos unidos por dolorosas formas persecutórias, do Índice à marginalização ou à remoção.

Rosmini, no seu “As cinco chagas da Santa Igreja” (1848), assinalava, entre outras coisas, a insuficiente educação do clero, os condicionamentos dos bens eclesiásticos e a nomeação dos bispos, problemas ainda em aberto no tempo presente, embora de outra forma.

De fato, hoje não é mais uma questão de um percurso de estudos, mas de uma proposta teológica adequada aos tempos e às culturas, enquanto a gestão das propriedades da Igreja continua sendo um fardo, às vezes não sem escândalos, e um impedimento para a própria evangelização.

E, se a nomeação dos bispos não está mais nas mãos do poder político, o sistema de seleção atualmente em vigor mostra mais do que algumas criticidades e abre espaço para grupelhos de adeptos, a associações e movimentos. O seu livro foi posto no Index, e ele, condenado depois de morto.

Não foi diferente o destino de Fogazzaro e do seu romance Il Santo(1905), no qual o protagonista, Bento, dirigindo-se ao papa, denunciava a presença de quatro espíritos malignos que haviam feito a Igreja adoecer: os espíritos da mentira, dominação do clero-nomeação dos bispos, riqueza-avareza, imobilismo.

Esse livro também foi posto no Index, e o autor designado, quase certamente, do Nobel de Literatura o perdeu indiretamente por ter se submetido à condenação. Esses espíritos, depois de mais de um século, parecem gozar de uma excelente saúde.

Anos depois, em 1933 – o fascismo, em seu ápice, parecia que nunca desmoronaria –, Mazzolari escreveu algumas páginas, Rapporto su Chiesa e fascismo e prospettive future [Relatório sobre Igreja e fascismo e perspectivas futuras, em tradução livre], em que, incrivelmente convencido de que havia um amanhã diferente da ditadura, lançou um apelo a uma verdadeira liberdade da Igreja que é também um programa de “responsabilidade social, inspirado e tendo por fim a fraternidade evangélica que ultrapassa toda audácia do pensamento humano”.

Mas acrescentava, desarmando qualquer pretensão de ocupação da sociedade e de um regime de colateralismo: “Não queremos nada de presente. Queremos ganhar até mesmo as coisas mais justas [...]. O primado do espiritual, que o cristão afirma como o postulado primordial da própria fé, põe-nos em liberdade diante de todo o temporal, sem desprezo, sem altivez, mas com fronte deferente e alegre disposição para com o que é belo e alegre”.

Tendo escapado por milagre da perseguição fascista, Mazzolari deparou-se, nos anos 1950, com a perseguição do Santo Ofício, com inúmeras medidas disciplinares até o limiar da suspensão a divinis, da qual o Papa João XXIII indiretamente o salvou, e certamente da morte.

 

Pobreza verdadeira

O bispo de Bolonha, o cardeal Lercaro, durante o Vaticano II, também repensou a Igreja e o seu papel no mundo, e reivindicou uma verdadeira pobreza dela não só em termos econômicos, que ele considerava algo óbvio, mas também culturais.

No seu discurso do dia 4 de novembro de 1964 sobre o Esquema XIII, ele defendeu: “Preliminarmente, a Igreja deve se reconhecer culturalmente pobre e querer ser coerentemente cada vez mais pobre. Não estou falando aqui da pobreza material, mas de uma aplicação especial da pobreza evangélica precisamente no campo da cultura eclesiástica. Também nesse campo – como no dos bens e das instituições patrimoniais – a Igreja ainda conserva certas riquezas de um passado glorioso, mas talvez anacrônicas. A Igreja deve ter a coragem, se necessário, de renunciar a essas riquezas ou, pelo menos, de não presumir muito delas, de não se vangloriar e de confiar nelas cada vez com mais cautela: elas podem não colocar sobre o candelabro, mas esconder sob o alqueire, a lâmpada da mensagem do Evangelho e podem impedir a Igreja de se abrir aos verdadeiros valores da nova cultura ou das antigas culturas não cristãs, limitar a universalidade da sua linguagem, dividir ao invés de unir, excluir muito mais homens do que os atrair e convencer”.

São palavras escritas também para hoje. Mas a homilia do dia 1º de janeiro de 1968, 1º Dia da Paz, na qual ele condenou a guerra sem condições, desencadeou a ira dos EUA, comprometidos em cometer massacres no Vietnã, e a ação dos seus opositores dentro e fora da diocese que não queriam uma Igreja que implementasse realmente o Concílio: a sua renúncia por limite de idade foi repentinamente tornada operante. A homilia da paz foi redigida em grande parte por Giuseppe Dossetti, seu estreito colaborador e protagonista da história civil e eclesial.

 

Seis caminhos para a reforma

Precisamente uma referência livre à reflexão de Dossetti pode ajudar a identificar alguns caminhos importantes para a Igreja. Recordamos aqui seis deles.

Um primeiro caminho é, literalmente, evangélico. “O Evangelho: que os padres e os leigos, sem diferenças [...], mergulhem no Evangelho. Digo isso com uma insistência muito particular e específica, até mesmo quantitativa: lê-lo, lê-lo, lê-lo [...] em uma relação contínua, pessoal, vivida, acreditado com todo o ser [...]. Ouvir o Evangelho assim como ele é, sine glossa, como dizia Francisco [...]. É de uma profundidade infinita, interminável e inesgotável. E continuamente nos molda, nos sustenta, nos forma, nos cria, como cristãos, acima de tudo” (Dossetti). Trata-se da busca do rosto de Jesus, do seu modo de sentir, de ver o mundo e de escolher.

Isso implica um segundo caminho, ou seja, a assunção de uma opção interpretativa fundamental que releia o Evangelho, a tradição cristã e a vida da Igreja no sentido da misericórdia: “Duas lógicas percorrem toda a história da Igreja: marginalizar e reintegrar [ ...]. O caminho da Igreja, do Concílio de Jerusalém em diante, é sempre o de Jesus: da misericórdia e da integração. Isso significa [...] não ficar olhando passivamente para o sofrimento do mundo”.

Tal perspectiva é o eixo principal sobre o qual a comunidade cristã é chamada a se mover: “O caminho da Igreja é o de não condenar eternamente ninguém; de derramar a misericórdia de Deus [...]; o caminho da Igreja é precisamente o de sair do próprio recinto para ir à procura dos afastados [...]; o de adotar integralmente a lógica de Deus; de seguir o Mestre, que disse: ‘Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os que estão doentes. Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores’ (Lc 5,31-32)” (Papa Francisco).

Um terceiro ponto nodal implica proximidade, a cercania – não paternalista – à pobreza, à nossa fundamental mendicância (Buonaiuti) e à vida de muitos que estão exaustos, vencidos e humilhados. Para esperar compreender Deus que se senta ao lado do pobre (Sl 108,31), é necessário assumir a mesma atitude: “Um dia, alguém disse: vocês sempre terão os pobres com vocês; certamente não para se resignar ao pior, mas para inventar, com atenção e dedicação humanas, algo que ajude a viver, a respirar, a esperar; para que possamos nos olhar na cara sem medo, sem vergonha, sem subentendidos amargos, mas com aquela vontade de bem que é, em última análise, expressão da única, resistente, convincente e corajosa esperança” (Pe. Paolo Serra Zanetti).

Um quarto ponto fundamental é o caminho do coração. Trata-se de um esforço para ter um coração que escuta (1Re 3,9), ou seja, a entrada pessoal e coletiva em um processo de aprendizagem renovada dos caminhos do Espírito na alma humana, do modo de reconhecer os sinais de Deus entre as vicissitudes complexas e extremamente dolorosas da vida das pessoas. Um trabalho feito de escuta, capacidade de revisão, disponibilidade para aprender com os próprios erros, coragem para não fugir das noites da vida. As intermitências do coração e as infinitas redundâncias humanas requerem uma nova sabedoria capaz de decifrar o bem entre os itinerários despedaçados e os tímidos brotos de esperança.

Faz parte desse trabalho interior o cultivo de uma antropologia cristã “que busca” caminhos para dialogar com as muitas antropologias e questões humanas da época. Tal busca de uma sabedoria interior capaz de leituras atentas do humano é verdadeiramente uma das tarefas prioritárias de uma reforma eclesial.

Nesse contexto, um quinto ponto nodal é decisivo: o fracasso educacional global marcado pelo escândalo dos abusos pôs em crise todas as imagens da Igreja como societas perfecta e mostrou que existem problemas sistêmicos que levam a abusos de poder, de consciência e físicos.

Isso significa ter a coragem de repensar (Rosmini) dimensões profundas da vida da Igreja, incluindo: as modalidades – manifestas e subterrâneas – de exercício do poder, a difusão de um modo enrijecido e monolítico de utilização do direito canônico, uma cultura fundamentalmente patriarcal que justifica a exclusão das mulheres do fato de poderem ter uma palavra de autoridade na Igreja, uma prática litúrgica muitas vezes desvitalizada.

Faz parte dessa reavaliação das estruturas eclesiais a urgente saída da representação clerical da Igreja e a consequente revisão das formas concretas – de acesso e de exercício – do ministério ordenado, que requerem uma maior flexibilidade para um anúncio do Evangelho que seja capilar e que tenha sabor de autenticidade e liberdade.

Por fim, um sexto ponto nodal diz respeito à dimensão contemplativa da vida, que – quando autêntica – tem muitas consequências concretas e históricas. Trata-se de reconhecer, valorizar, fazer crescer os sinais do Reino de Deus, ou seja, a presença oculta do Evangelho nas dobras da vida e da história.

Observando a vida da Igreja no nosso tempo, às vezes se tem a impressão de que há muitos recursos de pessoas e de paixão, e sensibilidades que precisam não ser sufocadas, mas reconhecidas. Às vezes, por incapacidade de aceitar mudanças profundas ou por estar distraída com projetos efêmeros e mundanos, a Ecclesia perde vida, energias, pessoas, riquezas.

É necessária uma nova cultura da escuta, de dar a palavra, de abrir espaço, o que, no fundo, é o que faz a comunidade eclesial se assemelhar ao messias Jesus: de fato, “o retorno de Cristo marcará o cumprimento de todas as trajetórias humanas, ao término dos seus encontros, intersecções, polêmicas, reconciliações, aventuras que o Ressuscitado terá acompanhado com o seu Espírito, seja para favorecer o seu desdobramento divino-humano, seja para reparar, com uma paciência inesgotável, os falsos passos, os excessos e talvez também a timidez” (Lafont).

 

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