Jovens abandonam a Igreja após decisão sobre uniões homossexuais

Foto: Wikimedia Commons/Danny-w

03 Mai 2021

 

Cerca de 700 jovens, principalmente jovens, abandonaram formalmente a Igreja Católica na Diocese de Antuérpia, na Bélgica, nas duas semanas seguintes à publicação por parte da Congregação para a Doutrina da Fé do seu Responsum que proibiu a bênção de uniões entre pessoas do mesmo sexo, revelou o bispo local, Johan Bonny.

A reportagem é de Sarah Mac Donald, publicada em The Tablet, 29-04-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Entrevistado pelo correspondente da The Tablet em Roma, Christopher Lamb, o bispo falou sobre a “dramática” reação principalmente “entre as pessoas heterossexuais”, que viram o documento vaticano como “um passo longe demais” durante uma discussão sobre o ministério da Igreja aos católicos e católicas LGBT e aos casais homossexuais.

Em um webinar organizado pela The Tablet, ele disse que cerca de 2.000 pessoas cancelaram suas certidões de batismo nas dioceses flamengas na Bélgica, um país tradicionalmente muito católico.

Criticando a falta de consulta aos bispos e aos dicastérios vaticanos com responsabilidade pela vida familiar após o anúncio da publicação, o bispo Bonny, um teólogo que trabalhou no escritório da unidade dos cristãos no Vaticano, também criticou a “fraqueza teológica” do documento e a falta de reflexão sobre os desenvolvimentos na teologia bíblica, na teologia sacramental e na teologia moral. “É como se ele tivesse sido escrito nos tempos de Pio XII”, disse ele.

Mas o custo prático disso, sublinhou ele, foi a perda de fé dos membros da Igreja. “Não se trata de princípios ou teorias. Trata-se de pessoas reais, e esta é a minha preocupação. Essa é a nossa responsabilidade diante de Deus, nosso Pai”, disse ele.

A Congregação para a Doutrina da Fé, como um importante dicastério no Vaticano, disse ele, deveria estar “no topo dos estudos bíblicos e teológicos, e não atrás de um nível ordinário de qualidade”. Ele também observou a falha do documento em levar em consideração aquilo que as ciências humanas estão dizendo sobre a sexualidade e os desenvolvimentos na sociedade civil, já que muitos países legalizaram o casamento ou parceria civil para casais LGBT, e isso agora faz parte da experiência de muitas famílias católicas.

O bispo Bonny, que participou dos sínodos sobre a família em Roma e pediu que a Igreja oferecesse bênçãos aos casais do mesmo sexo, perguntou como a Igreja pode avançar em questões tão delicadas sem colegialidade sinodal e lamentou o fato de não ter havido nada disso em torno do Responsum.

 

Falta de sintonia com a Amoris laetitia

 

“Ele não está em sintonia com a Amoris laetitia”, afirmou, acrescentando que a exortação apostólica pós-sinodal enfatizou a importância de olhar para os elementos positivos e de não condenar as pessoas antes de falar com elas. Os três verbos principais na Amoris laetitia, disse ele, são acompanhar, integrar e discernir.

Ele observou que o Responsum citou um parágrafo da Amoris laetitia no qual, por sua vez, se cita o Catecismo da Igreja Católica, que diz que não há nenhuma semelhança entre o casamento entre um homem e uma mulher e o casamento homossexual.

“Já no Sínodo, disse-se que isso não é verdade. Existem muitas semelhanças. Ninguém diz que é a mesma coisa. Não é a mesma coisa. E, de fato, existem grandes diferenças. Mas dizer que não há nenhuma semelhança ou analogia possível, nem mesmo a mais leve, não é verdade. Então, ele está repetindo algo que todos sabem que não é verdade.”

O prelado belga acrescentou: “O que propomos aqui não é estender o casamento sacramental”. Ele prosseguiu: “Existem diferentes formas de amar e cuidar uns dos outros e de assumir responsabilidades na Igreja e na sociedade. Portanto, nem todos devem ser iguais, existem diferenças. Mas existem muitas possibilidades que vêm da Escritura e da tradição da Igreja de caminhar junto com as pessoas, de levá-la diante de Deus e de pedir a bênção de Deus sobre ela”.

Questionado sobre a preocupação de Roma de que a bênção de casais do mesmo sexo poderia afetar o ensino da Igreja sobre o sacramento do matrimônio, o bispo Bonny disse: “Devemos evitar igualar tudo, como se não importasse, como se tudo fosse a mesma coisa. As pessoas sabem que nem tudo é igual. Mas não é uma questão de ‘casamento sacramental ou nada’”. Ele sugeriu que deveria haver mais variedade e gradualidade não apenas em relação à consciência, mas também às formas litúrgicas de expressar isso, caminhando rumo à plenitude dos sacramentos.

 

Perplexidade e decepção

 

A eticista estadunidense Lisa Cahill, que é professora da Cátedra J. Donald Monan no Boston College e cuja pesquisa tem se focado na família, na sexualidade e em questões éticas, disse que o Responsum “parecia uma reação irrelevante e até mesmo uma regressão, particularmente à luz da Amoris laetitia, que diz com muita veemência que mesmo as pessoas em situação familiares chamadas de ‘irregulares’ são, mesmo assim, veículos da graça santificadora”.

Observando que o Responsum parecia uma contradição à Amoris laetitia, ela acrescentou: “Pareceu um último golpe contra uma cultura em mudança, para tentar preservar certos elementos na condição pré-Vaticano II”.

A teóloga Ir. Gemma Simmonds, do Instituto Margaret Beaufort de Cambridge, disse que estava “perplexa e decepcionada” com o Responsum.

“Fiquei decepcionada, porque ele está em grande contradição com aquilo que o próprio Papa Francisco disse e com toda a sua abordagem pastoral à questão da atração pelo mesmo sexo. Procurei no documento algum elemento de compreensão pastoral ou da missão pastoral da Igreja e não encontrei nenhum. Fiquei imaginando o que teria acontecido com o nosso entendimento de que Deus é amor. E quem vive no amor vive em Deus, e Deus vive nele ou nela. Isso parece estar totalmente ausente do documento.”

A diretora espiritual e especialista em formação pastoral também avaliou “toda a compreensão do que uma bênção realmente significa e do que ela transmite como algo extraordinariamente estreito e além da minha compreensão. Padres e bispos em todo o mundo abençoaram e continuam abençoando armas, ogivas nucleares, todo o tipo de coisas. Quem tem o poder de abençoar e o que queremos dizer com a bênção da casa de alguém? Então, da mesma forma que eu fiquei decepcionada com isso, também fiquei perplexa com o propósito teológico dessa declaração”.

 

“Diferentemente ordenados”

 

Questionado sobre a sugestão do padre jesuíta James Martin de que o Catecismo fosse reformulado para substituir o termo “objetivamente desordenado” por “diferentemente ordenado”, o padre e teólogo James Alison, que escreveu amplamente sobre questões LGBT, disse que “‘diferentemente ordenado’ está bom”.

“A questão é: quais são as consequências morais? Se você disser que as pessoas são diferentemente ordenadas, neste caso, os atos delas seriam bons ou maus de acordo com as circunstâncias, em vez de intrinsecamente maus. E eu acho que isso significa conceder efetivamente aquilo que a Congregação para a Doutrina da Fé tem negado desde 1975, ou seja, que a orientação homossexual é algo positivo. Eles optaram por defini-la rigorosamente como algo negativo, a fim de preservar o mal intrínseco do ato.”

Sobre a necessidade de uma mudança na teologia moral por parte da Congregação para a Doutrina da Fé, o Pe. Alison afirmou: “Sim, um simples reconhecimento da existência da orientação sexual seria um grande começo”.

Na declaração Persona humana, sobre alguns pontos de ética sexual, redigida pela Congregação para a Doutrina da Fé em 1975, a professora Lisa Cahill observou que o dicastério vaticano distinguia entre orientação e atos, e disse que a orientação não é pecaminosa.

“Mas, em uma questão mais ampla de mudar a terminologia da teologia moral, eu não discordo do termo proposto por [James] Martin, ‘diferentemente ordenado’, mas acho que é um erro continuar tentando trabalhar a realidade dos casais do mesmo sexo, ou das pessoas gays e lésbicas dentro dessa terminologia mais antiga que está tão preocupada em amarrar todos em definições muito cuidadosas, de modo que saibamos exatamente onde colocar cada um e como estabelecer limites ao redor deles. Eu vejo que a Amoris laetitia faz algo realmente diferente.”

O bispo Bonny gostaria que a Igreja fosse como uma família, na qual todos se reúnem. Comparando seu papel nessa família ao de um avô, ele disse: “Para mim, como bispo, eu não digo que eu concordo com tudo, ou que acho tudo bom, mas eles são meus, e eu deveria estar aí para eles. E é minha responsabilidade fazer com que eles se sintam parte dessa família que é a Igreja, não só os acolhendo de forma passiva, mas também lhes dando a responsabilidade de forma ativa, para torná-los corresponsáveis juntos por aquilo que está acontecendo na Igreja”.

“Existem maneiras de fazer isso mais ou menos de uma forma litúrgica. Elas existem. E temos que trabalhar cuidadosamente nisso. Mas, para sermos capazes de trabalhar nisso, primeiro temos que estar abertos para discuti-lo, e não ignorá-lo, nem colocá-lo de lado.”

 

Mudanças no Catecismo

 

O bispo de Antuérpia também disse que o Catecismo da Igreja pode mudar.

“Ele foi escrito há 30 anos, e tem áreas, como a que estamos discutindo, em que a sociedade, a cultura, a teologia moral se desenvolveram rápida e radicalmente nos últimos 20-30 anos. O Catecismo não é de direito divino, ele pode ser modificado pelo papa. O Papa Bento XVI mudou alguns parágrafos do Catecismo.”

“O Catecismo pode mudar, assim como o direito canônico. Vários cânones do direito canônico foram modificados. Pensemos na questão do abuso sexual. A lei canônica foi alterada de acordo com aquilo que precisamos agora para resolver essa questão suja. O Catecismo é um livro aberto à historicidade e ao progresso. Eu acho que há parágrafos que, de uma forma colegial, poderiam ser modificados em prol do melhor da Igreja e em prol do melhor do nosso trabalho pastoral.”

A Ir. Gemma Simmons também observou que, no próprio Catecismo, ao falar sobre o fato de que muitas pessoas nascem com uma compreensão crescente de si mesmas como pessoas atraídas pelo mesmo sexo, diz-se que isso é um mistério.

“Até o Catecismo reconhece que nós, seres humanos, somos um mistério para nós mesmos e não entendemos tudo sobre nós mesmos, e a nossa compreensão da antropologia humana está se desenvolvendo. Portanto, parece-me que qualquer abordagem pastoral que mereça esse nome deve ter em si a compreensão pastoral em desenvolvimento do fato de que mudamos, nos movemos e crescemos. E, conforme o tempo e o conhecimento em várias áreas, tanto científicas quanto teológicas, se desenvolvem, nós encontramos uma nova linguagem, encontramos uma nova forma de poder entender o mistério que somos para nós mesmos.”

Observando que, na Fratelli tutti, o Papa Francisco fala sobre a necessidade de desenvolver uma cultura do encontro, a Ir. Simmons perguntou: “Onde esse senso da necessidade de uma cultura do encontro está presente no Responsum? Porque, ao que me parece, o que ele representa é precisamente uma cultura da recusa do encontro de uma realidade humana, do nosso mistério humano. E, quando encontramos o outro nesse mistério, precisamos estar abertos à verdade do modo como eles se veem e se entendem”.

Respondendo à revelação do bispo Bonny sobre a perda de centenas de jovens para a Igreja por causa do Responsum, a irmã da Congregação de Jesus disse: “Estamos perdendo pessoas na Igreja. Estamos sangrando mulheres que estão indo embora, estamos sangrando jovens e estamos sangrando outras pessoas que descobrem que a realidade em que vivem não encontra mais uma resposta dentro da Igreja em termos de aceitação e bênção”.

Ela disse que a maior questão pastoral é: “Como ajudamos as pessoas a crescerem na graça? Como podemos nos ajudar uns aos outros, todos nós como pecadores, a crescer na graça? Não fazemos isso batendo a porta na cara uns dos outros”.

 

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