“Os bárbaros estão voltando”. Entrevista com Costa-Gavras

Reprodução de cena do filme "Z", de Costa-Gavras.

30 Abril 2021

 

Costa-Gavras chegou à França no início dos anos 1950. Formado no prestigioso Institut des Hautes Études Cinématrographiques (IDHEC), sua trajetória, com muitos filmes mítica, se destaca pela sua capacidade de construir relatos de gênero que vão do thriller ao drama, do filme judicial à narrativa social, nos quais a política e o contexto social são essenciais. Depredador de todo totalitarismo, comprometido com a realidade, Costa-Gavras vai na direção contrária a muitos dos diretores da época, enquanto atravessa um período fértil e revelador na história sociopolítica e artística europeia com o respaldo de público, crítica e profissão, alcançando os principais prêmios (Oscars, Globos de Ouro, Cannes e Berlim).


Costa-Gavras, em 2012. Foto: Wikicommons

A entrevista é de José Manuel Sande, publicada por Público, 27-04-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis a entrevista.

 

Como são suas origens no cinema?

O cinema que havia na França não me interessava. Já o havia visto na Grécia, um cinema padronizado, de ação, de humos, etc. Porém, na França, apesar de fazer estudos de Literatura, encontrei a Cinemateca, onde havia cinema clássico. Foi um descobrimento importantíssimo e me interessou muito. Primeiro, quis aprender a escrever, e fui à Escola de Cinema, ao IDHEC, estudei dois anos e depois, com uma sorte extraordinária, pediram-me para fazer um primeiro trabalho de cinema. O primeiro ajudante era Claude Pinoteau, que logo foi diretor. Assim entrei no cinema francês, o que era muito difícil, especialmente para um estrangeiro, ademais no posto de ajudante. Nesse momento era possível trabalhar com pessoas como René Clair, Jean Cocteau, René Clément, Henri Verneuil, Jacques Demy, Clouzot... fui ajudante de alguns deles. Conheci também todos os grandes atores, pois neste período os ajudantes faziam o casting e havia uma relação muito próxima com eles. Conheci Montand, Piccoli, Trintignant... o primeiro filme foi como um exercício escolar, desde a criação do roteiro. O diretor de estudo o leu e o aceitou. Na medida que eu tinha o roteiro, o thriller, que era atrativo, gerou interesse e teve uma grande participação. O filme funcionou muito bem.

 

 

O filme era “Crime no carro dormitório” (“Compartiment tueures”, título original, 1965)...

Sim, e o segundo, “Um Homem a mais” (“Un homme de trop”, 1967), sobre a Resistência Francesa, foi um fracasso. O curioso é que agora saiu em dvd pela primeira vez e triunfou, teve algumas críticas extraordinárias. Depois fiz “Z” (1969), onde está o que sempre me interessou do cinema. Quando meu primeiro filme teve êxito nos EUA, Harry Saltzman (o produtor de James Bond) me fez uma pergunta: ‘Que filmes queres fazer?’. Eu lhe disse que “A condição Humana”, de André Malraux. Respondeu ‘O quê? Faltam muitos chineses, não pode ser’ (risos).

 

 

O que não havia no cinema era um tipo de filme sobre a condição humana, das revoluções, das lutas cotidianas, das lutas não apenas políticas, mas também sindicais. Não existiam naquele período. Na França havia a Nouvelle Vague, mas nos interessava outros tipos de filmes depois das grandes produções dos anos 50 e 60... Eu queria voltar a este tipo de cinema, influenciado possivelmente pelos filmes estadunidenses como “As Vinhas da Ira” e certo cinema social.

 

 

Que tipo de filmes te agradam ou te interessam? Em alguma entrevista falava de “Ouro e Maldição” (“Greed”, no original, 1924), de Stroheim, como uma revelação você.

Greed” é um filme de muitas horas que parecia uma tragédia, como a antiga tragédia grega. Havia a possibilidade de fazer no cinema esse tipo de filmes, cinema não apenas para divertir, como era o futebol.

 

 

Da América Latina à Europa, o mundo corporativo, os bancos, as empresas e essas lutas cotidianas ou os sistemas totalitários... de alguma maneira seu cinema recorre toda a história de sua época, daqueles sistemas políticos ou acontecimentos que ocorreram na realidade ao seu redor. Existia, no seu cinema, desde o princípio, a vontade de contar relatos sociais ou é algo que vai ocorrendo ao decorrer o tempo?

Desde a base, sempre me interessaram a resistência e o poder. E como em nossa sociedade o poder participa como repressão em nossa vida diária. Ademais, o poder é algo que todos nós temos. Não é só o poder político, eclesiástico, econômico, nós temos poder sobre algumas pessoas e há pessoas que tem poder sobre nós. Esta relação com o poder me interessa muito, porque dela dependem a felicidade e a infelicidade. Depois vem também a resistência. Como resistimos ao negativo. Resistir é o mais importante, senão viramos escravos. São os temas que estão em meus filmes, o que mais me interessa.

 

Há um elemento singular em seus filmes que é essa análise ou crítica ao poder que se dirige a todos os tipos de poder. Podem ser os tupamaros, o retrato de Arthur London em “A Confissão” (“L’aveau”, 1970), a ocupação alemã, o nazismo, o golpe de Pinochet... “Atraiçoados” (“Betrayed”, 1988), onde se fala também da banalidade e da normalidade do mal. De como, sob um homem, pode se ocultar formas inquietantes de poder.

Porque o poder é como uma droga, quando se tem pouco se quer mais e mais. E como se faz para alcançar? Algumas vezes se vai por direções legítimas, porém não pode optar por outros caminhos. Como o ditador grego de “Z”, Papadopoulos, que não era um general, era um coronel que conseguiu um poder enorme. O poder é certamente o aspecto humano mais importante.

 

Depois do êxito de “Z”, teve liberdade criativa para fazer seus filmes?

Absolutamente. É a vantagem de se ter êxito com um filme. “A Confissão” era um livro impossível, enorme, 500 páginas, quando as pessoas o viam não acreditavam que seria possível. Semprún e eu falamos muito e, por fim, foi fácil de fazer.

 

 

E nesse momento, todos os filmes começar a ter projeção internacional.

Sim, é decisivo ter bons atores. São chamados de estrelas porque são bons atores. Embora também existam estrelas que não são.

 

São várias filmagens que tem produção estadunidense. Você percebe diferenças nestas, além da parte cultural?

Os primeiros filmes, os que mais me interessaram, fiz nos Estados Unidos. Eles me ofereceram para fazer “O Poderoso Chefão”, e não me interessou nada. O livro, para mim, não foi um bom livro. Coppola fez um filme extraordinário que eu não poderia fazer, porque eu não era americano. Sim, concordei em fazer “Desaparecido” (“Missing”), desde que também pudesse controlar o casting. E eles aceitaram. Além disso, fiz pós-produção na França. Foram as condições que estabeleci e deram-me a liberdade.

Há um debate, quase sempre quando o cinema toca a política, sobre a forma, sobre como as histórias são contadas. Com você, com Ken Loach e com outros cineastas, sempre foi discutido que eles deveriam se aproximar das formas populares, o que permite que sejam mais acessíveis. O que você acha disso?

Este foi um debate muito poderoso, especialmente com a Nouvelle Vague. A tradição de construção do script é de origem grega. O teatro grego é um thriller, todas as tragédias gregas são de uma certa forma. Nesta construção o interesse é cada vez maior para chegar ao fim. Isso me parece essencial. Nem sempre pode ser feito com essa simplicidade, mas geralmente foi essa a direção que tomei no meu primeiro filme.

 

Sempre tive interesse em saber quais projetos ficaram pelo caminho, quais obras foram frustradas ou não foram realizadas.

Houve um projeto para o qual escrevemos o roteiro, “El cormorano”, a história de uma grande empresa internacional que mudou a política do Estado, como aconteceu em um momento em Portugal. Não devemos dar o nome do país, deixava tudo e partia para outro. Acontece todos os dias, mas não consegui encontrar dinheiro para fazer este projeto. Ninguém queria. William Holden concordou em fazê-lo, mas não encontramos nenhum investimento. Os americanos aceitaram, conversei com atores como Meryl Streep e Al Pacino, mas eu disse que tinha que ser feito na China. Eu fui lá, primeiro eles queriam fazer, mas depois queriam mudar todo o roteiro. Finalmente, aceitei que não poderia ser produzido. Precisávamos da paisagem chinesa. Tentamos fazer em outros países e os estadunidenses se propuseram a reproduzir tudo em Hollywood, mas foi impossível. As condições econômicas foram estabelecidas, mas não o local.

 

Você já encontrou dificuldades ou interferência de produtores por ousadia política, ou porque eram temas que não lhe interessavam?

Sim, com um projeto. Com “Z”, por exemplo, as pessoas diziam que nunca funcionaria. Mas foi preciso insistir, e finalmente foi feito, os atores aceitaram e o filme foi feito porque Jacques Perrin tinha lutado muito e também os argelinos, já que a Argélia é o país onde foi filmado.

 

Em alguns de seus últimos filmes, como “O Corte” (“Le couperet”, 2005) e “Capital” (2012), analisa as estruturas econômicas próximas à parte sócio-política. Essa é a sua visão da sociedade e se encaixa com todos os filmes anteriores?

A sociedade mudou. Hoje todo mundo fala de democracia, mas tem outro poder que chegou, que existe hoje, que é o dinheiro, o super capitalismo. No cinema, as questões de poder estão aqui hoje, na economia. Não se fala de mais nada. Todo mundo conhece a Dow Jones.

 

Outros tipos de totalitarismo, Stalin, Nazismo e agora este capitalismo ...

Exatamente, é outro tipo de totalitarismo.

 

Gostaria que falasse agora de Semprún, que foi roteirista de três de seus filmes (“Z”, “A Confissão” e “Seção Especial de Justiça”) e da ideia que ele tem da Espanha, um país com uma história turbulenta no século XX e até os dias de hoje. Com Semprún surgiu um projeto sobre Yoyes, a dirigente do ETA que foi assassinada...

Ele não poderia fazer isso naquela época porque ele era ministro, e eu não queria fazer uma música em espanhol sobre alguém que eu não conhecia. Mas depois, com o Jorge, fizemos filmes sobre histórias reais, mas sempre tivemos o problema de escolher personagens e situações. Porque um filme como “Confissão” ou “Z” pode durar horas. Conversei com Jorge sobre fazer um filme sobre Malraux, uma oportunidade de falar sobre a Espanha e como o cinema é feito na Espanha. Como Malraux mudou completamente, como conheceu o Partido Comunista, chegou à França e disse: “Acabou”, aquela afirmação extraordinária quando chegou à França. Além disso, havia uma história de amor muito interessante. Conversamos e fizemos um primeiro trabalho longo. Primeiro trabalhamos no livro e depois no roteiro. Quando terminou, Jorge foi ao hospital com dores nas costas e foi encontrado câncer. Durou semanas. Com ele havia a intenção de ficar, de fazer algo juntos, algo que interessasse a nós dois, sobre a França e a Espanha.

 

 

 

Curiosamente, na Espanha, Semprún é uma figura respeitada, mas sua obra é muito pouco conhecida, como é o caso de outros personagens da resistência e do exílio.

É curioso, sim.

 

Nos últimos anos ocorreram tentativas de revoluções democráticas, um caso é a Grécia.

Um caso muito particular. Ao decorrer da história, a Grécia sempre foi um laboratório. Tsipras começou muito jovem, com um problema enorme de dívida. Impossível de pagar. Precisa encontrar soluções. Ainda, não tinha todo o poder. Tinha 36% dos votos. Vá à Europa, sem experiência, eles são monstros da economia. Tinha próximo dele Varoufakis e esta relação é importante. Mas, o que fazem os europeus? Tudo o que puderam para separá-los. E conseguem. Merkel, que prometeu tudo a Tsipras, que participou nesta separação, pensava no início que havia alguns gestos para melhorar a situação na Grécia. Porém, 300 mil jovens saíram do país, uma perda enorme para o futuro. Os salários caíram 40%. Tudo isso se voltou contra Tsipras e a Alemanha não fez o mínimo gesto, pelo contrário. Pediu mais e mais e mais. Os gregos votaram uma segunda e uma terceira vez em Tsipras porque não havia outro.

 

A história passa muito rápido e Tsipras quase caiu no esquecimento. E aquilo ficou como um movimento político abortado que acabou entrando nas convenções. O que você acha de algumas coisas que acontecem agora? Brexit, Trump, a extrema-direita na França...

Estamos entrando em um período de barbárie. A extrema-direita voltou à Grécia. O Aurora Dourada celebra o nascimento de Hitler. Eram muito poucos, mas com o drama econômico grego agora são 13% ou 15%. E não apenas na Grécia. Na França, com a velha história de Le Pen, mas também na Áustria, na Alemanha... Os bárbaros estão voltando. E o pior estão nas Américas. Lembro-me de um detalhe, quando fiz “Atraiçoados”...

 

 

Um filme que parece antecipar...

Sim. E muitos estadunidenses me disseram: “Onde você viu isso? Não existe nos Estados Unidos”. Mas eu tinha visto na turnê que fiz pelo país. Disseram-nos que éramos comunistas vindos da Europa.

 

Que relação você manteve ao longo dos anos com a Grécia? Você veio para a França nos anos 50, às vezes é falado mais como francês e suas origens são esquecidas.

Sou bígamo [risos]. Passei quase 20 anos na Grécia e a Grécia não foi esquecida. Mas a França me deu tudo. Nunca sonhei que poderia ter tido a vida que tenho na França. Não só profissionalmente, mas eles me pedem para participar da vida política e cultural. A Grécia não me deu, pelo contrário, eu fugi de lá. Minhas raízes são gregas, mas culturalmente sou mais francês do que grego.

 

Na Espanha, estamos interessados em como nos vê de fora. O que você acha do que está acontecendo neste país? Como você vê nossa sociedade? Você acha que existe uma possibilidade de ascensão da extrema-direita aqui?

É uma situação muito difícil e também muito perigosa, porque se a violência for usada, e não meios democráticos, para resolver o problema da Catalunha, as consequências podem ser muito graves. Não preciso tomar posição por um ou por outro, é uma questão espanhola. A Europa também deve ser salva. Acredito muito na Europa, essas coisas me parecem importantes por causa dos problemas espanhóis. Não sei o que vai acontecer depois das eleições, mas o uso da violência me parece muito negativo. Os problemas humanos devem ser resolvidos através do diálogo e do compromisso de ambas as partes para chegar a uma solução que possa satisfazer a todos, porque se não o fizermos, podemos acabar em uma guerra civil, como já aconteceu aqui e na Grécia.

 

Quanto aos Estados Unidos, você acha que Trump está demonstrando a atitude excessivamente confortável ou de dependência que a Europa teve em relação aos Estados Unidos em muitos aspectos?

Os EUA não são o que as pessoas querem que seja. Também é isso. O pior de tudo é o problema ecológico. Não falamos muito sobre isso, mas a população está aumentando e somos um câncer para a terra. Nós destruímos tudo. Hoje eu pensava enquanto estava no avião, nós somos como animais que devoram a substância da terra. O que acontecerá quando acabar completamente? Ninguém pensa nisso. Não vai ser da minha geração, mas eu tenho netos, o que eles vão fazer aqui? Como eles vão viver? Diz-se que em algumas pequenas ilhas, no Taiti, por exemplo, as pessoas pensam em construir muros para evitar a subida das águas. Além disso, existe o problema colossal da emigração. É um problema que não tem fim, veja o que está acontecendo em alguns países, a situação é terrível e as pessoas querem uma vida melhor. Esse problema não parece interessar aos chefes de Estado. Eles não se preocupam com isso, só pensam nas próximas eleições.

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