Uma interrupção bem-vinda. Resenha do novo livro de John Cornwell, por Austen Ivereigh

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15 Março 2021

 

“Se não foram as polaridades em tensão que “interromperam” Francisco, o que Cornwell passou a ver como o fluxo normal da Igreja, o que aconteceu? Onde está a interrupção? Pois, como diz Cornwell, não é como se Francisco tivesse enfraquecido ou divergido do magistério da Igreja. A resposta deve estar na execução do Evangelho pelo papa. Mas qual parte? Para Cornwell, parece o que ele chama de “prudência audaciosa” do papa, seu “consistente conselho cristão de prudência e clemência que reconhece a fragilidade humana: do jeito que somos”. Foi a terna misericórdia de Deus – nos amando apesar de nós – que Cornwell ansiava por ver no sucessor de São Pedro; e vendo isso, ele pôde ter esperança novamente”, escreve Austen Ivereigh, biógrafo papal, em artigo publicado por Commonweal, 09-03-2021.

 

Eis o artigo.

Todos os novos livros sobre o pontificado de Francisco têm a vantagem de serem mais atualizados que os anteriores, e John Cornwell o consegue fazer até mesmo entre o Sínodo Pan-Amazônico e “Francisco nos tempos de coronavírus”. No entanto, apesar de toda a sua amplitude e abrangência, e das qualidades que um repórter veterano da Igreja traz para tal projeto, “Church, Interrupted” (“Igreja, Interrompida”, em tradução livre) não busca ser uma cronologia sistemática dos anos de Francisco. É muito perceptivo, pessoal, peculiar e emocionalmente envolvido, o que acaba sendo sua força.

Em alguns trechos no início e no final do livro e espalhados por todo o texto, o escritor britânico e acadêmico de Cambridge compartilha a história de sua relação intensa, mas dolorosa com o catolicismo dese sua infância e o gelo de sua fé eclesial na sequência da vida. Cornwell ficou horrorizado com os escândalos de abuso e a cultura eclesiástica opressora - segundo ele - dos anos de João Paulo II. Depois de encontrar poucas esperanças do pontificado de Bento XVI, ele ficou surpreso com “um momento de graça” na eleição de Francisco em março de 2013. Cornwell viu neste novo papa a “possibilidade de novos começos para toda a Igreja, que estava decaindo e era decadente”. Por isso que Cornwell descreve este livro, uma exploração dessa irrupção da graça, como uma bem-vinda “interrupção” do curso que a Igreja parecia determinada a seguir.

A premissa, claro, é a descontinuidade: o amor de Cornwell por Francisco e a antipatia por João Paulo II e Bento XVI são explicados, em parte, pela história de vida do escritor. Tendo se mudado de uma piedosa classe trabalhadora irlandesa na infância irlandesa, no East End, de Londres, para a mais pré-conciliar das instituições, o seminário menor, ele abandonou o treinamento sacerdotal para a liberdade agnóstica e a vida como jornalista em um jornal nacional. Depois de se casar, sua fé foi reacendida, mas “não houve retorno à Igreja das certezas, verdades fundamentais e retidão”. O catolicismo tornou-se objeto de suas reportagens. Seu primeiro livro católico foi o resultado de uma autoridade do Vaticano convidando-o a investigar a verdadeira história de como João Paulo I morreu depois de apenas algumas semanas em 1978. “A Thief in the Night” (“Um ladrão na noite”, em tradução livre), que foi publicado em 1989, desmascarou a sinistra teoria da conspiração em torno da morte prematura de Albino Luciani, mas ainda assim parecia um “whodunnit” (“who done it?”, “quem fez, quem matou?”). Foi um sucesso de vendas.

Com as portas abertas em Roma, Cornwell poderia ter construído uma carreira com livros que defendiam a Igreja. Mas seu próximo projeto endossado pelo Vaticano, para refutar as afirmações de que Pio XII era um simpatizante do nazismo, o levou na direção oposta. Tendo acesso privilegiado aos arquivos recém-abertos sobre a beatificação e carreira diplomática de Eugenio Pacelli, Cornwell diz que tropeçou em “uma circunstância que me pareceu ainda pior em suas consequências, justificando totalmente o título do livro, o “Papa de Hitler”.

Estava publicando um ouro: um relato emocionante do fracasso do papa em se pronunciar contra os nazistas com base em material primário do Vaticano que quase ninguém tinha visto. O “Papa de Hitler” agitou o Vaticano: “Eu parecia ter cumprido o papel de 'advogado do diabo', que João Paulo II aboliu para expedir hordas de novos santos”, lembra Cornwell ironicamente - e desencadeou uma avalanche de teses acadêmicas sobre a “colaboração” católica com fascismo e anti-semitismo. Alguns diriam que a resposta criou uma contra-mitologia ainda mais ofuscante do que a versão oficial. Mas Cornwell defende seu histórico, alegando que esses artigos e livros “rigorosamente acadêmicos” foram um aprimoramento das hagiografias.

Breaking Faith” (“Quebrando a fé”, em tradução livre, 2001) e “The Pontiff in Winter” (“O pontífice no inverno”, em tradução livre, 2004) foram devastadores em suas acusações de corrupção e dos fracassos dos anos de João Paulo II. Eles são um caso poderoso para a acusação, que as revelações desde 2005 têm amplamente justificado, mas havia uma vantagem no 'j'accuse' de Cornwell, uma raiva e desprezo mal disfarçados, que poderiam ser parcialmente explicados por livros mais recentes, acima de tudo “Seminary Boy” (2006) e “The Dark Box: A Secret History of Confession” (“A Caixa-Preta: uma história secreta da confissão”, em tradução livre, 2014). Nesses livros, Cornwell expõe seu sofrimento com o coquetel tóxico de sexo, pecado e abuso na cultura da Igreja que experimentou quando jovem. Daí a revelação à parte no fechamento de “Church, Interrupted”. O papado de João Paulo II, diz ele, “encorajou uma opressão destinada a restabelecer o ciclo do pecado de anos anteriores”.

Em “Breaking Faith”, Cornwell sonha com um papa que deixa de repreender e condenar o pecado e a injustiça do mundo, ansiando por um pastor que, em vez disso, “consertasse a quebra da fé de nossa Igreja” e visse “os pecadores, os marginalizados, os dissidentes, os desanimados” pessoas que precisam de amor e inclusão. Francisco cumpriu essa esperança. “Church, Interrupted” é o espelho oposto de “The Pontiff in Winter”. As violentas acusações deram lugar a uma comovente admiração e afeição. Se antes ele cutucou o papa polonês, agora ele empunha a espada para defender o papa argentino de seus críticos impiedosos.

Algumas linhas principais são reservadas para o lobby anti-Francisco, cuja elaboração das críticas contraditórias revela sua má fé. “Francisco não poderia vencer, ele não poderia estar apto à vitória, independente do que ele fizer ou disser, ou não fizer ou não disser”, escreve Cornwell, no que seria uma perfeita descrição de Jesus e os fariseus. Apontando que muitos dos críticos de Francisco estão mais preocupados em afirmações militantes de preocupações morais, Cornwell observa o curioso padrão de ataques conversadores, “que a extensão [de Francisco] das preocupações morais para abraçar questões negligenciadas significava o repúdio de outras, embora houvesse profundas conexões paralelas”. Assim, a condenação do papa à pena de morte e às armas nucleares, por exemplo, é usada como evidência para alegar (absurdamente) que ele é indulgente com o aborto, o que lembra Cornwell da piada sobre a mãe que compra para seu filho duas gravatas de aniversário. Quando se encontrarem novamente, ele estará usando uma. Ela diz: “Então você não gostou da outra?”.

Church, Interrupted” é composto de vinte e quatro capítulos curtos, cada um com a extensão de um artigo da Commonweal, que trazem “o som das principais iniciativas e reações a eventos [de Francisco]”. É um formato irregular feito com os dons de concisão e foco forense de Cornwell. Cada pequeno ensaio fornece informações básicas suficientes para que o leitor compreenda o significado da “interrupção de Francisco” e, em seguida, analisa as principais histórias e anedotas para ilustrar a partida. Isso torna o livro altamente legível e acessível e, para um outsider curioso sobre o Efeito Francisco, uma bela introdução ao cerne do que torna este pontificado tão extraordinário.

Talvez o melhor capítulo seja sobre a fofoca, à qual Francisco constantemente retorna como um mal a ser extirpado do Vaticano – e com razão. A atmosfera em Roma é “como uma tarde permanente de domingo”, onde “a estrutura física cria uma sensação de uma estufa separada, um palácio enclausurado lotado de celibatários à deriva do mundo real”. Cornwell está encantado com o fato de Francisco ser o primeiro papa “a criticar a língua maliciosa dos prelados romanos”, cujo cinismo e fracasso na caridade corroem a missão da Igreja.

Também sofisticado é o capítulo sobre a China, sobre a qual Francisco quase nada disse publicamente, mas que tem sido o foco principal de sua diplomacia. O acordo secreto com Pequim sobre a nomeação de bispos tem sido fortemente criticado por todos os lados – sobretudo pelo arcebispo emérito de Hong Kong, cardeal Joseph Zen, e pelo ex-governador britânico da ilha, Lord Christopher Patten – mas Cornwell o vê como aposta necessária, uma tentativa ousada de acabar com uma situação em que o governo chinês está dividindo e governando a Igreja.

No entanto, às vezes, o formato do livro restringe Cornwell a um resumo eficiente sem muitos insights: sobre Laudato si', por exemplo, pouco além de um resumo da encíclica. Sobre as mulheres na Igreja, Cornwell apresenta um bom caso para ver Francisco como um inovador introduzindo “mudanças marcantes”, mas, ao explicar por que o papa não foi mais longe na ordenação de mulheres, recai no clichê de que ele é um homem de seu tempo e espaço (Se Cornwell pensa que Francisco foi tímido ou retrógrado, ele deveria dizer isso, em vez de patrocinar o suposto “machismo” argentino). Às vezes a pesquisa é leve: quando Francisco disse que as mulheres eram as “cerejas no bolo” da teologia, era sobre aquelas que se queixam de que havia tão poucas na Comissão Teológica Internacional, que corriam o risco de parecer uma presença simbólica.

Esses são pequenos pecados por omissão, mas em um caso importante, Cornwell deturpa um princípio importante do pensamento de Francisco. Uma das principais narrativas do livro é o que Cornwell descreve como “uma característica consistente de seu papado: a capacidade de manter os opostos em tensão, seus muitos paradoxos dando origem à ruptura”. O tema aparece em muitos dos capítulos: assim, na China, “seu acordo com o governo sobre a nomeação de bispos é outro exemplo de sua capacidade de manter os opostos em tensão e avançar pela interrupção”. Mas a ideia nunca é explicada adequadamente e parece mais obscurecer do que revelar.

Claro, é verdade que Francisco, como todos os bons líderes, mas em um grau excepcional, é capaz de navegar por tensões e conflitos. E também é verdade que Francisco desenvolveu a teoria das polaridades dinâmicas de Romano Guardini em um método de governança e discernimento. Como Massimo Borghesi mostrou em “The Mind of Pope Francis” (“A mente do Papa Francisco”, em tradução livre) e como o papa bem explica em nosso livro “Vamos sonhar juntos”, a ideia de manter as polaridades em tensão está por trás da ênfase na sinodalidade que tanto marcou este pontificado.

Mas não é apenas uma questão de conter os opostos em tensão, muito menos uma tentativa de interromper ou perturbar ao fazê-lo. O objetivo de manter as polaridades em tensão é buscar sua resolução em um plano superior - permitindo que o Espírito Santo crie uma nova maneira de ver que reconcilie a oposição ao transcendê-la. Na Querida Amazônia, e explicitamente em “Vamos sonhar juntos”, Francisco usa a metáfora do “transbordamento” para descrever essa ação do Espírito Santo, que no contexto dos sínodos indica o caminho a seguir.

O não entendimento desse ponto leva Cornwell a descaracterizar Amoris Laetitia, descrevendo-a como “escrita de modo que leva, simultaneamente, a conclusões potencialmente opostas”, um exemplo clássico, diz ele, de “Francisco, mais uma vez, mantendo dois opostos em tensão sem resolução”. No entanto, o que quer que as pessoas possam pensar sobre isso, no que diz respeito a Francisco, Amoris refletiu a resolução do sínodo de 2015: que a questão da comunhão para casais divorciados é resolvida de uma maneira diferente de aplicar a lei, que está atenta ao funcionamento da graça na vida concreta dos indivíduos. Não é mais, então, uma questão de o que a lei da Igreja deve ou não deve permitir ou proibir, mas uma questão de discernimento pelos casais e seus pastores à luz de suas histórias únicas – como o próprio Cornwell explica muito bem.

Isso é importante porque é muito fácil alimentar uma das fantasias anti-Francisco, de que o papa é estrategicamente “ambíguo”, operando um plano tortuoso para virar tudo de cabeça para baixo enquanto parece fazer o oposto. Isso é uma interpretação errada do que os jesuítas chamam de “discernimento apostólico em comum”. Pode-se conter diferenças de tensão em busca de iluminação ou orientação, como parte de um processo de discernimento, como aconteceu nos sínodos sobre certas questões polêmicas. Mas é um exercício limitado no tempo. Ou haverá resolução por “transbordamento”, como no sínodo da família, ou as diferenças se endurecerão e se polarizarão, como aconteceu no sínodo amazônico a respeito da questão da ordenação de homens casados. Neste último caso, onde Francisco não viu “transbordamento”, não poderia haver resolução ou avanço, pelo menos no curto prazo.

Se não foram as polaridades em tensão que “interromperam” Francisco, o que Cornwell passou a ver como o fluxo normal da Igreja, o que aconteceu? Onde está a interrupção? Pois, como diz Cornwell, não é como se Francisco tivesse enfraquecido ou divergido do magistério da Igreja. A resposta deve estar na execução do Evangelho pelo papa. Mas qual parte? Para Cornwell, parece o que ele chama de “prudência audaciosa” do papa, seu “consistente conselho cristão de prudência e clemência que reconhece a fragilidade humana: do jeito que somos”. Foi a terna misericórdia de Deus – nos amando apesar de nós – que Cornwell ansiava por ver no sucessor de São Pedro; e vendo isso, ele pôde ter esperança novamente.

 

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