“Francisco está construindo a arca da fraternidade humana"

Mais Lidos

  • “A destruição das florestas não se deve apenas ao que comemos, mas também ao que vestimos”. Entrevista com Rubens Carvalho

    LER MAIS
  • Povos Indígenas em debate no IHU. Do extermínio à resistência!

    LER MAIS
  • “Quanto sangue palestino deve fluir para lavar a sua culpa pelo Holocausto?”, questiona Varoufakis

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

10 Março 2021

Nestes dias, o Papa Francisco conclui o oitavo ano do seu pontificado, que começou no dia 13 de março de 2013. Anos nada simples, repletos de acontecimentos que abalaram e revitalizaram a Igreja.

Conversamos sobre isso com Franco Ferrari, editor-chefe da revista Missione Oggi e autor de um dos últimos livros sobre o pontificado do papa argentino, “Francesco, il papa della riforma” [Francisco, o papa da reforma] (Ed. Paoline, 2020), a partir da 33ª viagem apostólica que Francisco acaba de realizar ao Iraque (5 a 8 de março), uma terra martirizada pelas guerras e pelo terrorismo do sectarismo religioso.

 

A reportagem é de Pierluigi Mele, publicada em Confini, 08-03-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis a entrevista.

Qual é o significado dessa viagem que o papa quis manter firme, apesar das muitas razões adversas?

Francisco realiza o sonho de João Paulo II, que, nas peregrinações do Grande Jubileu do ano 2000 (Sinai, Terra Santa), também tinha inserido a de Ur dos Caldeus, impedido pela falta de acordo com o governo de Saddam Hussein. Trata-se de uma viagem com uma tríplice finalidade. Estritamente religiosa e espiritual: visitar a terra onde começou a “aventura” de Abraão, o patriarca reconhecido pelas três grandes religiões abraâmicas, justamente: judaísmo, Islã e cristianismo. Depois, um objetivo mais precisamente político. Por um lado, levar sustento à minoria cristã – que, ao longo do tempo, em particular por causa da perseguição do califado Daesh, foi reduzida, segundo as estimativas, de 1,4 milhão para pouco menos de 400 mil pessoas – na esperança de que a visita desencadeie o retorno de muitos que fugiram. Por outro lado, continuar a realização do diálogo com o Islã, no espírito da Declaração sobre a Fraternidade Humana...

O segundo aniversário dessa declaração, assinada em 2019 com o grão-imã de al-Azhar (Al-Tayyib), foi celebrado recentemente. Há dois dias, no dia 6 de março, durante viagem ao Iraque, também houve um encontro com o grande aiatolá al-Sistani. O que explica essa grande atenção do bispo de Roma em relação ao Islã?

Francisco tem uma visão geopolítica da situação internacional, e pode-se dizer que a sua leitura antecipa e traz ao nível da consciência aspectos que os políticos parecem não querer ver. Pensemos na imagem da “terceira guerra mundial em pedaços”, utilizada para definir uma microconflitualidade endêmica em muitas regiões do mundo. O mesmo vale para a “cultura do ódio”, que Bergoglio vê como consequência do populismo e do soberanismo, mas também do fundamentalismo religioso.

As religiões e as teologias não são inocentes em relação à violência, por isso Francisco tenta desarmar um dos possíveis estopins da nova violência religiosa. E o diálogo, como ele escreveu aos cristãos do Oriente Médio, é “o melhor antídoto para a tentação do fundamentalismo religioso”, em particular o diálogo inter-religioso, onde as situações são mais difíceis. Para evitar uma conflitualidade destrutiva, Bergoglio propõe às Igrejas cristãs e aos expoentes das várias fés que “entrem juntos, como uma única família, em uma arca que possa sulcar os mares tempestuosos do mundo”. Essa arca se chama “arca da fraternidade humana”. Francisco está trabalhando na construção dessa arca. O imã e o aiatolá que você citou são expoentes importantes do Islãal-Tayyib da corrente sunita e al-Sistani do Islã xiita.

Este papa, como nunca antes de forma tão aberta e virulenta, está no centro de contínuos ataques e contestações. Como se gerou esse clima de conflito e em particular quem são os inimigos de Francisco?

Devemos considerar um aspecto que, a oito anos da sua eleição, tendemos a esquecer, isto é, as condições em que a Igreja se encontrava no momento da renúncia de Bento XVI. Há pelo menos três questões que devem ser lembradas: a credibilidade da Igreja estava comprometida por uma série de graves escândalos; a Cúria enviava sinais de mau funcionamento e de lutas internas nem tão ocultas; o clima crepuscular e o mal-estar generalizado que se respirava pela falta de resposta aos muitos e predominantes sinais dos tempos e pela demora na questão de saber se o Vaticano II havia marcado ou não uma descontinuidade com o passado. Nos encontros preparatórios do conclave, os cardeais haviam pedido em voz alta uma ação de reforma em particular da Cúria Romana.

O papa que veio “do fim do mundo”, porém, foi à raiz dos problemas e iniciou uma reforma que diz respeito tanto às estruturas quanto à pastoral, quanto ao compromisso missionário e à conversão pessoal. Todos temas que, abordados de forma muito direta como faz Francisco, estão sacudindo uma instituição que não consegue manter o ritmo dos tempos; mudanças que geram medos, divisões. Intervenções que deram novo fôlego, sobretudo, aos ambientes conservadores e reacionários, mas também suscitaram perplexidade em quem queria uma mudança. Por isso, os “inimigos” são uma categoria transversal e não facilmente catalogável.

Esses opositores formam um front comum ou são uma galáxia fragmentada? E, acima de tudo, qual a real importância deles, para além da repercussão midiática?

Pode-se observar que a oposição ao papa tem uma grande variedade de atores: desde os blogs e sites reacionários, passando pelas mídias com uma linha editorial conservadora, pelos “jornalistas ativistas” com seus blogs (na Itália, podem ser citados Magister, Valli, Rusconi, Tosatti), pelos bispos (mas também Conferências Episcopais), pelos cardeais, até se chegar a grupos de pressão sustentados economicamente por expoentes do mundo econômico-financeiro e empresarial, particularmente presentes nos Estados Unidos.

Segundo um observador atento como o vaticanista Marco Politi, esse front é avaliado em “uns bons 30%”. Uma minoria consistente, certamente aguerrida e muito forte nas mídias sociais e, em algumas das suas vertentes (é o caso de bispos e cardeais), pode estar presente em gânglios vitais, onde não é o número que importa, mas sim o âmbito de poder e de autoridade que são exercidos.

No título e no subtítulo do seu livro, você utiliza os termos “reforma” e “conversão”: qual é a relação entre as duas e em que reforma Francisco pensa?

Toda conversão é, por si só, uma reforma, e vice-versa, toda reforma requer uma conversão. São como os dois lados da mesma moeda. Ao enfrentar a tarefa de reformar, Bergoglio tem uma ordem de prioridades, como ele indicou na primeira entrevista concedida à revista La Civiltà Cattolica: “As reformas organizacionais e estruturais são secundárias, isto é, vêm depois. A primeira reforma deve ser a da atitude”, isto é, a conversão espiritual pessoal, porque toda reforma, para ser eficaz, se realiza “com homens ‘renovados’ e não simplesmente com ‘novos’ homens”. Por isso, o tema da conversão pessoal está sempre no centro das atenções de Francisco: das homilias de Santa Marta até a denúncia das 15 doenças da Cúria (alguns, ironicamente, comentaram que são “mais do que as 10 pragas do Egito”); do convite a bispos e presbíteros a abandonarem a “mundanidade espiritual”, até o pedido de utilizar os conventos vazios para os pobres, que são a “carne de Cristo”. Uma constante revisão da vida, um retorno ao Evangelho para toda a Igreja; uma intervenção na carne viva que não é indolor. A conversão espiritual se levanta quase como uma pré-condição para realizar os elementos centrais da reforma, que são a conversão pastoral e missionária.

Bergoglio volta frequentemente ao tema da sinodalidade. Ele já convocou quatro Sínodos, e, no próximo ano, haverá um quinto dedicado precisamente a esse tema. Por que essa escolha?

A escolha do caminho sinodal subentende um modelo de Igreja que se caracteriza: pela escuta dos fiéis e do seu “faro”, isto é, do seu senso da fé; por uma autoridade e por um poder entendidos como serviço; por uma modalidade diferente de entender o papel do papa. Uma Igreja caracterizada pela sinodalidade também poderia favorecer uma reavaliação das formas com as quais o bispo de Roma exerce a sua autoridade e os seus poderes. Trata-se de instaurar uma circularidade da comunicação entre os fiéis e a hierarquia com um duplo movimento de baixo para cima e vice-versa. O caminho sinodal é também um percurso “educativo”. Bergoglio acredita que um verdadeiro debate ajuda o amadurecimento recíproco e pode favorecer a conversão pastoral exigida pela “mudança de época”.

Não é por acaso que os temas dos Sínodos disseram respeito a questões nas quais a vida pastoral está em grave crise: a família, os jovens e a situação de uma terra de missão como a Amazônia. Entre outras coisas, Francisco aprovou uma reforma do Sínodo que responsabiliza fortemente os bispos também no nível da elaboração do magistério. Agora, ao contrário do passado, na conclusão dos trabalhos, os Padres sinodais devem produzir um documento orgânico sobre o tema em discussão, que o papa também pode assumir diretamente no seu magistério. No entanto, não se pode ignorar que uma grande minoria de bispos, que se manifestou nos quatro Sínodos, não parece favorável ao método da sinodalidade.

Francisco assumiu duas questões: o abuso de menores e a reorganização dos órgãos econômicos da Santa Sé. Que resultados ele alcançou até agora?

As intervenções relacionadas com a legislação sobre a justiça permitiram escrever um novo capítulo sobre a condenação dos abusos de menores e de pessoas vulneráveis por parte do clero. São significativas a obrigação de denunciar à justiça civil e a Instrução (2019) com a qual se remove o sigilo pontifício para as denúncias, os processos e as decisões referentes aos abusos. Além disso, não se deve subestimar o encontro dos presidentes de todas as Conferências Episcopais do mundo para um exame de consciência público sobre o tema e para ajudá-los a superar a “cultura do silêncio” a esse respeito.

Também devemos estar cientes de que, agora, para completar essa dolorosa operação-verdade, muito depende da vontade e das escolhas das Conferências Episcopais nacionais. No que diz respeito à gestão econômica, acho que não é insignificante que as intervenções de reorganização dos vários órgãos (IOR, Apsa...) e a atualização da normativa fizeram com que o Estado da Cidade do Vaticano fosse primeiro retirado da lista dos “paraísos fiscais” e, em um segundo momento, da lista dos países com uma legislação inadequada para combater a lavagem de dinheiro.

Uma característica da ação pastoral de Francisco é a dimensão social da evangelização, a ponto de dar origem aos Encontros Mundiais dos Movimentos Populares. Qual é o significado de uma escolha tão forte?

Ao contrário dos seus antecessores, o papa argentino não se limita a condenar a injustiça social, ele também convida a tirar as suas consequências operacionais. Para libertar os povos da injustiça e da marginalização, o Povo de Deus não pode se limitar a “fazer caridade”. Não pode se limitar a uma resposta individual “a uma mera soma de pequenos gestos pessoais”. É preciso colaborar com todos “para resolver as causas estruturais da pobreza e para promover o desenvolvimento integral dos pobres”. Uma espécie de convite à revolução, que, com Paulo VI, aprendemos a chamar de “promoção humana”. A dimensão social da evangelização, sublinha Francisco em continuidade com Paulo VI, está no próprio coração do Evangelho, que propõe a vida comunitária e o compromisso com os outros. É sob essa ótica que deve ser situado o apoio aos Encontros Mundiais dos Movimentos Populares, que se apresenta como uma estratégia para “promover a organização dos excluídos”, a fim de construir a mudança social a partir de baixo.

Nestes dias, celebra-se o oitavo aniversário da eleição de Bergoglio ao sólio de Pedro, e muitos, também aqueles que não lhe são hostis, parecem decepcionados com o governo de Francisco. Muitos dossiês abertos sem que se veja a sua possível conclusão…

Eu não me sinto à vontade para compartilhar essas avaliações. Não se pode subestimar o fato de que, em pouco tempo, Francisco recolocou a Igreja a caminho em muitas estradas e iniciou um processo que, embora aberto e incompleto, desencadeou a dinâmica da mudança. A observação, porém, refere-se ao método de governo que Francisco utiliza. Acredito que a resposta esteja no primeiro dos quatro princípios expostos na Evangelii gaudium: o tempo é superior ao espaço. Isso significa iniciar processos, pôr-se a caminho. É o princípio fundamental que permite, ao longo do caminho, levar em conta as situações e adaptar o percurso antes de chegar à decisão final. Em uma instituição em que existe uma tradição secular de pensamento estruturado, tudo isso, sem dúvida, desorienta.

No entanto, não se pode dizer que Francisco não governa. Pensemos nas decisões relativas a todo o jogo da reorganização dos órgãos econômicos e em relação aos abusos de menores de que falamos antes. Deve-se considerar que os diversos processos iniciados só podem se desenvolver em um tempo longo. Alguns deles poderão ser concluídos por ele mesmo, já a conclusão de outros estará nas mãos do seu sucessor. A intenção reformadora de Francisco é de tal amplitude que necessariamente excede o seu pontificado.

Leia mais

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

“Francisco está construindo a arca da fraternidade humana" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU