Dowbor lê Mariana Mazzucato

Mais Lidos

  • “Os israelenses nunca terão verdadeira segurança, enquanto os palestinos não a tiverem”. Entrevista com Antony Loewenstein

    LER MAIS
  • Golpe de 1964 completa 60 anos insepulto. Entrevista com Dênis de Moraes

    LER MAIS
  • “Guerra nuclear preventiva” é a doutrina oficial dos Estados Unidos: uma visão histórica de seu belicismo. Artigo de Michel Chossudovsky

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

06 Março 2021

"Livro da economista italiana mostra as engrenagens do rentismo. Desvinculado da economia real, deforma a noção de riqueza de países. Por emaranhados de instituições financeiras, acossa Estado e o setor produtivo — e endivida milhões de famílias…", escreve Ladislau Dowbor, economista e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), em artigo publicado por Outras Palavras, 04-03-2021.

 

Eis o artigo.

 

Conhecemos bem Mariana Mazzucato pelo seu excelente estudo sobre o papel do Estado na economia moderna (O Estado Empreendedor), mas o presente livro, The Value of Everything: Making and Taking in the Global Economy (PublicAffairs, 2018), cujo subtítulo podemos traduzir como “produzir e extrair na economia global”, é mais amplo, e sistematiza de forma clara e muito organizada as transformações do capitalismo nas últimas décadas.

Em termos econômicos, produzir e extrair constituem dinâmicas diferentes. Os magnatas das arábias se entopem de dinheiro vendendo o petróleo que nunca tiveram de produzir, inclusive repassando para corporações transnacionais a tarefa da extração, comercialização e transporte. Estão vendendo o futuro dos seus países, dilapidando recursos naturais de que as próximas gerações irão precisar. O petróleo alimenta não só os sheiks, como um mundo de acionistas pelo mundo afora, que dizem “investir” o seu dinheiro, e que passam a aumentar o seu capital à medida que o capital natural do planeta vai se esgotando. No Nordeste usam a imagem de “festa com o chapéu dos outros”, e a expressão traduz rigorosamente o que em economia chamamos de rentismo, que extrai valor sem aumentar ou contribuir para a produção. Quem produz, no sentido de produzir efetivamente coisas úteis para a sociedade, tem lucro, que vai permitir que a pessoa aumente a sua ‘renda’. Quem extrai dinheiro apenas drenando o que outros produzem é um rentista, e o dinheiro extraído é “renta”.

O livro de Mariana Mazzucato, The Value of Everything, analisa precisamente a diferença entre “Making and Taking” na economia global. Por que é tão importante? Porque o capitalismo atual gerou um mundo de parasitas que extraem renta por meio de um emaranhado de mecanismos de intermediação financeira, de pedágios sobre qualquer transação, permitindo fortunas absurdamente elevadas nas mãos de gente esperta, mas que trava a economia. “Renta – considerada como renda não ganha – foi classificada como uma transferência do setor produtivo para o setor improdutivo, e era em consequência excluída do PIB. ” [1]

Entender como se alimentam as maiores fortunas do planeta, e se agrava a desigualdade mundial, em proveito de gente que não só não produz como essencialmente descapitaliza a economia, é essencial para resgatar os rumos de uma economia que funcione. São os mecanismos que permitem entender como, em plena pandemia, com a economia em plena crise (com exceção da China), 42 bilionários no Brasil aumentaram suas fortunas em 34 bilhões de dólares, equivalentes a 180 bilhões de reais, seis anos de Bolsa Família, em praticamente quatro meses (entre março e julho de 2020), sem precisarem produzir, simplesmente cobrando juros, dividendos e outros ganhos financeiros. Inclusive ver a Bolsa subir enquanto a economia cai, é significativo.

Outro exemplo: a publicação Valor Econômico: Grandes Grupos apresentou em dezembro de 2020 a evolução dos 200 maiores grupos econômicos do país. Baseado em dados de 2019, portanto antes do impacto da pandemia, o estudo constata que “dos quatro setores analisados, apenas o setor de Finanças registrou aumento no lucro líquido (27,1%). Comércio (-6,8%), Indústria (-7,8%) e Serviços (-34,8%) caminharam para trás”. Trata-se não do conjunto da economia, mas dos grandes grupos, onde as finanças predominam, mas é impressionante. O estudo ressalta “o bom desempenho da área financeira, sobretudo bancos, cuja fatia no lucro líquido consolidado dos 200 maiores aumentou de 37,7% para 48,9%” (p.12). [2] Traduzindo, o que rende é ser banco, e de preferência grande; não é produzir, é cobrar pedágio de quem produz. E quanto mais os intermediários financeiros extraem, menos sobra para o investimento produtivo.

A força do livro de Mariana Mazzucato é explicitar os mecanismos. “Hoje, o setor [financeiro] se expandiu muito além dos limites da finança tradicional, essencialmente atividades bancárias, para envolver uma imensa gama de instrumentos financeiros, e criou uma nova força no capitalismo moderno: gestão de ativos (asset management). O setor financeiro hoje representa uma parte significativa e crescente do valor agregado e dos lucros da economia. Mas apenas 15% porcentos dos fundos gerados vão para as empresas no setor de indústrias não-financeiras. O resto é negociado entre instituições financeiras, fazendo dinheiro simplesmente pelo dinheiro mudar de mãos, um fenômeno que se desenvolveu enormemente, dando lugar ao que Hyman Minsky chamou de “capitalismo de gestores de dinheiro” (money manager capitalism). Ou dizendo de outra maneira: quando as finanças fazem dinheiro ao servir não à economia ‘real’, mas a si mesmas” (p.136). O setor financeiro passou a “capturar uma parte crescente do excedente da economia” (p.124).

O sistema passou a drenar a capacidade de compra das famílias, o ritmo de investimento das empresas produtivas, e os investimentos públicos, pelo endividamento generalizado. As empresas abertas se veem drenadas na sua capacidade de expansão pelos dividendos cobrados pelos “investidores institucionais”. As fortunas dos mais ricos em vez de servirem para financiar atividades produtivas, passaram a ser geridas pela indústria de gestão de fortunas (wealth management). O comércio internacional de commodities passou a ser administrado por traders, grandes intermediários que criaram gigantes financeiros por meio dos chamados derivativos: o maior deles, a BlackRock, tem ativos da ordem de 8,7 trilhões de dólares, cinco vezes o PIB do Brasil. Desenvolveu-se a indústria de securitização, autêntica indústria de distribuição de riscos que levou em boa parte às crises sistêmicas, e que também cobra pedágios sobre as operações. As corporações financeiras são suficientemente poderosas para extrair parte dos nossos impostos por meio de suporte público direto (QE, Quantitative Easing) em volume que nos EUA superou 4 trilhões de dólares. O dreno é generalizado, os favorecidos nunca tiveram o trabalho de entrar numa fábrica, numa fazenda, num hospital. Administram papéis, hoje aliás simples sinais magnéticos.

Os bancos também cobram taxas impressionantes sobre o lançamento de ações de empresas (IPOs), e aplicam um conjunto de tarifas que oneram o setor produtivo. Financeirizar o ensino superior também se generaliza: temos hoje uma geração de jovens enforcados em dívidas que lhes permitiram aceder ao ensino superior, mas que eles irão carregar por décadas. Quando as contraíram lhes acenaram com os excelentes salários que iriam ganhar. A autora traz os diversos mecanismos que expandem a apropriação do excedente social por intermediários financeiros dos mais diversos tipos.

Um impacto indireto da financeirização é que ela deforma profundamente o nosso cálculo do PIB. Quando calculamos como aporte produtivo o que são custos adicionais de intermediários – obrigando-nos a sustentar uma imensa burocracia financeira privada – criamos uma falsa impressão de crescimento econômico. Contar os lucros dos atravessadores da atividade produtiva como aumento do PIB, portanto como expansão da própria produção, quando apenas aumentamos os custos com mais intermediários, constitui um absurdo ao qual Mazzucato dedica boa parte do livro.

Na realidade, trata-se de uma contabilidade simplesmente errada. Se eu tenho uma empresa produtiva, e tenho custos financeiros, esses serão incorporados no valor do meu produto final, fazem parte dos custos de produção. Mas se o dinheiro que eu transfiro para os bancos são igualmente contabilizados nos bancos como valor de produção, estou contando duas vezes a mesma soma no PIB. Na contabilidade tradicional, seriam deduzidos como “consumo intermediários”. Se eu produzo carros, e incorporo no meu custo final o que me custou o aço que comprei, em termos de contas, não posso contar como produto o aço da siderúrgica, pois já está incorporado no valor do carro.

Essa dupla contagem dos custos financeiros, uma vez no lucro dos bancos e outra vez no valor da produção final das empresas tomadoras dos serviços financeiros, é recente. “Durante grande parte da história humana recente, em radical contraste com o atual entusiasmo com o crescimento do setor financeiro como sendo um sinal (e estimulante) da prosperidade, os bancos e os mercados financeiros foram durante longo tempo considerados como o custo de fazer negócios. Os seus lucros refletiam o valor agregado apenas na proporção em que melhoravam a alocação dos recursos de um país.” (102) Mais recentemente, no entanto, “por meio de uma combinação da reavaliação econômica do setor e de pressões políticas exercidas, as finanças foram promovidas de fora para dentro das fronteiras produtivas – e no processo geraram o caos (havoc).” (105)

Assim, a partir da revisão do sistema de contabilidade nacional de 1993, os custos financeiros passaram a ser calculados como valor agregado, contribuindo para o PIB: “Isso transformou o que previamente era considerado como um custo, em uma fonte de valor agregado, da noite para o dia. A mudança foi oficialmente apresentada na conferência da International Association of Official Statistics de 2002, e incorporada na maioria das contabilidades nacionais bem a tempo antes da crise financeira de 2008. Os serviços bancários são naturalmente necessários para manter as rodas da economia girando. Mas isso não significa que os juros e outros encargos cobrados dos que usam os serviços financeiros sejam um ‘outputprodutivo” (p.108). “As contas nacionais agora declaram que estamos melhor quando uma massa maior da nossa renda flui para pessoas que “administram” o nosso dinheiro, ou que jogam (gamble) com o seu próprio dinheiro” (p.109). Para o Brasil, isso é muito significativo, pois os lucros dos intermediários financeiros, custos para a economia, permitem que o PIB apareça como “crescendo”.

Mazzucato apresenta uma série de exemplos de como isso deforma a economia, pelo fato de que custos de intermediários são apresentados como “produto”, aumento do PIB, portanto da prosperidade. Da mesma forma, os atravessadores que compram barato na mão do agricultor e revendem caro nos mercados poderiam apresentar os seus lucros como aumento do PIB, enriquecimento da sociedade. Na realidade, os fazendeiros recebem pouco dinheiro e podem investir menos na produção, e os consumidores irão comprar menos porque o produto está mais caro. O que acontece quando, como é atualmente o caso, expande-se a venda direta, online, do agricultor para o consumidor, é que os dois polos do ciclo, o produtor e o consumidor, ficam mais eficientes. Dizer que fragilizar o atravessador fragiliza a economia é absurdo.

Mas o que acontece nas formas como a economia analisa o processo? Mazzucato vai direto ao ponto: “Quando os custos da intermediação financeira se elevam em termos reais, nós celebramos o fortalecimento do setor vibrante e cheio de sucessos dos bancos e das seguradoras” (p.108). Na realidade, o que foi um setor que reunia poupanças e financiava atividades produtivas, fomentando a economia, transformou-se num dreno descontrolado, que torna claro como bilionários improdutivos, especuladores de Wall Street, banqueiros, no conjunto que Michael Hudson resume como FIRE (Finance, Insurances, Real Estate), especuladores imobiliários, traders internacionais – uma massa de intermediários improdutivos – controlam hoje tantas fortunas. [3]

O livro de Mazzucato desdobra o raciocínio para a compreensão do rentismo por meio de patentes, e fecha com a análise do “mito da austeridade”. Não há como não lembrar aqui a clareza de Conceição Tavares: “Rendemo-nos à financeirização, sem qualquer resistência… O Brasil virou uma economia de rentistas, o que eu mais temia. É necessário fazer uma eutanásia no rentismo, a forma mais eficaz e perversa de concentração de riquezas”. [4]

Notas:

[1] “Rent – which was regarded as unearned income – was classified as a transfer from the productive to the unproductive sector, and was therefore exlcuded from GDP.” (p. 97) Veja-se que ‘unearned income’ pode ser traduzido tanto por ‘renda não ganha’ como ‘renda não merecida’. Joseph Stiglitz usa muito a mesma expressão. Rent, na minha opinião, tem de ser traduzido por ‘renta’, e income por ‘renda’. A diferença é essencial. Em francês é igualmente clara a diferença entre ‘rente’ e ‘revenu’, esta última representando ‘renda’.

[2] Valor Econômico: Grandes Grupos, – Dezembro de 2020, Ano 19, Nº 19, p. 12 e p. 16. Disponível aqui.

[3] O excelente estudo de Michael Hudson está disponível em português aqui.

[4] Conceição Tavares, Restaurar o Estado é Preciso. Disponível aqui.

 

Leia mais

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Dowbor lê Mariana Mazzucato - Instituto Humanitas Unisinos - IHU