O desafio da encarnação digital: proteger o humano na infosfera. Entrevista com Luca Peyron

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10 Fevereiro 2021

A tecnologia não é um simples meio, mas um instrumento performativo: enquanto a usamos, ela nos muda. Por isso, como o Papa Francisco exortou várias vezes, é importante refletir sobre o que está por vir, assim como sobre as consequências e os efeitos do digital na nossa vida.

A reportagem é de Marco Dotti, publicada por Vita, 05-02-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

“O ambiente digital representa para a Igreja um desafio em múltiplos níveis. Portanto, é imprescindível aprofundar o conhecimento das suas dinâmicas e o seu porte do ponto de vista antropológico e ético.”

Com essas palavras, o Papa Francisco pediu um esforço conjunto para desenhar um futuro que leve em conta a transformação em que estamos imersos. Uma nova realidade que, já no início dos anos 1970, era definida como “infosfera” e hoje diz respeito a todos.

O Pe. Luca Peyron estuda a infosfera há anos, tema ao qual também dedicou um belo livro (“Incarnazione digitale. Custodire l’umano nell’infosfera” [Encarnação digital. Proteger o humano na infosfera], Elledici, 2019).

Ele tem um passado como consultor jurídico em propriedade industrial, é professor de teologia e teve um papel de primeiro plano na candidatura de Turim como Centro Italiano para a Inteligência Digital.

Há dois anos, Peyron coordena o Serviço para o Apostolado Digital da Arquidiocese de Turim, que trata precisamente da conexão entre infosfera, ambiente digital e fé. Um serviço que desperta interesse crescente.

Eis a entrevista.

Existe alguma diferença entre pastoral digital e apostolado?

Há uma diferença substancial entre pastoral digital e apostolado digital. Fazer um blog religioso, construir um site para a paróquia, divulgar um boletim religioso nas redes sociais são uma forma de fazer pastoral servindo-se do digital. O apostolado digital, por sua vez, é um serviço que nasce dentro da Pastoral Universitária da Diocese de Turim e tem como sentido, significado e objetivo pensar a transformação digital.

Uma nova abordagem, portanto?

Propomo-nos a pensar a transformação ad intra e ad extra de tudo o que é digital – da Inteligência Artificial às plataformas, passando pelo blockchain – no que diz respeito ao fato de ter fé, de encontrar a Deus, de ter uma vida eclesial. Ad intra, o tema do apostolado digital se interroga sobre como a transformação digital incide sobre o fato da fé. Ad extra, interrogamo-nos sobre o que a Igreja tem a dizer em relação ao mundo e à sociedade no seu conjunto sobre esses temas: que tipo de contribuição, a partir da teologia espiritual até o magistério, do Evangelho à experiência das comunidades, a Igreja pode dar para a compreensão do que está acontecendo. Partindo, obviamente, do pressuposto de que a transformação digital está mudando a sociedade, o ser humano, as relações entre as pessoas, as relações institucionais e empresariais. O apostolado digital, portanto, não se preocupa apenas com o tema de como anunciar o Evangelho em um mundo em mudança, mas também de como entender o mundo em mudança.

Como nasceu o Apostolado Digital?

Nasceu de uma provocação dos Padres sinodais durante o Sínodo sobre os jovens, primeiro, e depois do Santo Padre, que insistiram no fato de que a Igreja se interrogasse sobre esses temas.

O seu livro tem um subtítulo convincente: encarnação digital...

Este livro nasceu de uma experiência pessoal: eu me ocupo desses temas – ensino teologia na Universidade Católica de Milão, na Universidade Estadual de Turim e no IUSTO, a universidade salesiana também de Turim – há muito tempo e tentei pôr por escrito aquilo que eu ensinava. Fiz isso para começar a falar um pouco sobre esses temas, partindo de um conceito de fundo: a infosfera. A infosfera é a globalidade das informações que, de alguma forma, nos envolve e determina cada vez mais as nossas posturas existenciais. A Encarnação digital significa que, a partir do mistério da Encarnação de Cristo, em todas as épocas, os cristãos devem se interrogar sobre os sinais dos tempos e sobre como, naquele determinado momento da história, as pessoas vivem a sua experiência de vida e de fé. Isso porque, na experiência de vida e de fé delas, e só nela, pode amadurecer o encontro concreto e real com Cristo. A operação que tentamos fazer é refletir sobre esses temas, dando a nossa contribuição.

Como vocês trabalham concretamente?

Trabalhamos em equipe, tentando interceptar principalmente os jovens. Temos um laboratório interconfessional, o Rerum Futura, que reúne jovens católicos, judeus e muçulmanos para refletirem sobre o digital.

O aspecto do desafio inclui riscos. Refiro-me em particular aos temas antropológicos. Da transformação digital, poderiam surgir antropologias novas, inéditas, talvez incompatíveis com a nossa visão de mundo...

O maior risco que eu detecto, no que diz respeito à Igreja, seria não perceber o que está acontecendo e, permito-me dizer, aquilo que já aconteceu... há muito tempo. Corremos o risco de continuar anunciando o Evangelho a um ser humano que simplesmente não existe mais. Quando o Papa Francisco, em Florença, em 2015, lembrava que o mundo mudou, ele pedia aos estudantes e às universidades que se unissem e tentassem refletir sobre a mudança. Em Turim, reformulamos a Pastoral Universitária, a partir desse discurso do Papa Francisco. O Concílio Vaticano II fala continuamente de “condição humana”. Pois bem, a condição humana está mudando, tornou-se uma condição digital e digitalizada. Devemos refletir sobre esse aspecto, partindo também de uma consideração pessoal: o grande risco que eu vejo – estou falando dos pastores, dos catequistas, dos animadores – é não captar uma transformação na qual estamos imersos. Uma transformação que também nos mudou. Continuamos repetindo de modo ritual palavras, frases, atitudes... mas essas palavras têm uma ressonância diferente em comparação com poucos anos atrás.

Um exemplo?

Durante o confinamento, assistimos a uma “ligurgodemia”... Um uso massivo de instrumentos sociais não pensada. Perdemos a presença real de Cristo em três meses... e fomos para o Facebook. Uma questão enorme, tanto que o papa em Santa Marta, em certo ponto, disse: paremos e reflitamos!

Houve uma “grande farra” de mídias sociais…

Mais que uma farra, foi a descoberta de um novo mundo sem que nos déssemos conta de como a tecnologia digital não é um instrumento neutro. A tecnologia é um instrumento performativo: ao usá-la, ela nos muda.

Mas algo está mudando?

Acho que este tempo é um extraordinário kairós que a Providência nos deu. O atordoamento em relação ao que aconteceu é global e planetário. Isso significa que, hoje, a Igreja tem a possibilidade de dizer uma palavra sobre esses temas com uma sabedoria, uma clarividência e uma capacidade projetual e profética que dificilmente encontramos em outros sujeitos institucionais ou não. Nos últimos 200 anos, nós nos desacostumamos, mas nos 1.800 anos anteriores passamos os nossos dias olhando para o tempo que viria e para o humano que viria. Eu gostaria de ir a São João Bosco e ao seu ensinamento: quando ele pensou o oratório, ele o pensou com algumas peças que continuam até hoje, inclusive a sala.

A sala de catequese?

Não! A sala era o lugar onde os jovens eram convidados a pensar. Essa é a peça que, por um lado, nos falta um pouco. Mas é também a peça que, por outro lado, podemos agora sistematizar. É a peça que a sociedade nos pede. Há uma demanda premente: o que pensar e como pensar tudo isso. A era digital muda a percepção do espaço, do tempo e do corpo. Infunde um senso de autoexpansão que parece não encontrar mais limites, e a homologação se afirma como critério predominante de agregação: reconhecer e apreciar a diferença se torna cada vez mais difícil.

Turim, hoje, é o centro italiano para a Inteligência Artificial…

E é precisamente uma oportunidade extraordinária de pensamento e de partilha de pensamento. O que a Igreja tem a dizer sobre o ser humano desde sempre está despertando um interesse totalmente novo. Muitos esperavam da Igreja uma atitude de tipo moralista em relação a algumas coisas, mas o simples fato de articular um pensamento não moralista, mas que busca propor uma antropologia, uma filosofia, uma visão político-econômica das coisas é visto com interesse e espanto.

Como você explica isso?

Essa visão, obviamente, está enraizada no Evangelho, mas, para a nossa sociedade, ela não era mais levada em consideração e, portanto, muitas vezes é nova. O efeito que gera, no entanto, é disruptivo: abriu uma nova capacidade e possibilidades de diálogo imprevisíveis há poucos anos. Com a nossa equipe, somos convidados aos âmbitos mais díspares para levar o nosso pensamento. Há um pedido de pensamento, de fato: do nosso pensamento em todos os espaços. Isso não significa ocupar novos espaços. Significa estar lá onde nascem novos processos e onde se iniciam filões de pesquisa muito importantes. Isso implica para nós uma nova responsabilidade ética e civil.

O desafio sobre as tecnologias é complexo...

Como tal, só pode ser enfrentada de forma sinodal: fazendo as coisas juntos, pensando-as transversalmente. Teologias e olhares diferentes devem ser colocados juntos e em sistema. Não fazer isso significa desconectar o espírito das obras.

Devemos passar da conexão para a relação...

Estou convencido de que a transformação digital permite transformar o local em global. O Concílio nos ensinou que é preciso insistir no local. Mas o local, hoje, pode se tornar global: a transformação digital nos restitui a possibilidade de restituir e contar a nossa ação, depois de ter trabalhado e contado o nosso pensamento. A transformação digital reconecta pensamento e ação e, assim, nos permite intervir ativamente nas coisas do mundo. Sem deixar que elas nos dominem.

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