Além da “religião civil” e do “cristianismo burguês”. Artigo de Giuseppe Lorizio

Foto: Pixabay

05 Janeiro 2021

Ao contrário do que opina Ernesto Galli della Loggia, considero que estamos diante do desaparecimento, nem mesmo tão rápido ou instantâneo, de dois clichês que a teologia estigmatizou há décadas, o da “religião civil” e da “religião burguesa”.

 

A opinião é de Giuseppe Lorizio, professor de Teologia Fundamental da Pontifícia Universidade Lateranense, em Roma. O artigo foi publicado em Settimana News, 03-01-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

O artigo de Ernesto Galli della Loggia no Corriere della Sera de 29 de dezembro suscitou algumas reações que mais ou menos acertaram o alvo: desde o convite moralista a confiar na Igreja, mesmo nos momentos de crise epocal, publicado por Gianni Gennari no jornal Avvenire [disponível em italiano aqui], à recusa radical de quem, como Fabrizio Mastrofini no jornal Il Riformista [disponível em italiano aqui], tenta encurralar o colunista, acusando-o de se expressar sobre aquilo que ignora.

 

Este que escreve acredita que essas reflexões interpelam, sobretudo com as interrogações que levantam, a teologia como serviço eclesial, antes mesmo de saber acadêmico. Trata-se, de fato, da identidade do cristianismo no mundo contemporâneo, da sua eficácia, do suposto desaparecimento da sua capacidade de envolvimento e da sua força propulsora.

 

Em suma, volta a pergunta de Jesus: “Mas o Filho do Homem, quando vier, será que vai encontrar a fé sobre a terra?” (Lc 18,8). Os grandes temas que são evocados apresentam um valor teológico pregnante e interpelador, e, a partir desse ponto de vista, pretendo refletir sobre eles, valendo-me da minha experiência de estudo e de presença na Igreja.

 

Não me parece que o suposto “declínio do cristianismo”, que o colunista entrevê não apenas no Ocidente, mas também em toda a aldeia global, possa ser interpretado tout court como um eclipse da fé. Em vez disso, considero que estamos diante do desaparecimento, nem mesmo tão rápido ou instantâneo, de dois clichês que a teologia estigmatizou há décadas.

 

Em primeiro lugar, o da “religião civil”, ou seja, de uma pertença religiosa que incide cada vez menos sobre a sociedade e a história. O paradigma subentende um valor ético exclusivo da fé, reduzida desse modo a um sistema de valores a ser remetido para a vida social, cultural e política de povos e pessoas. Se o cristianismo é também isso, nunca nos cansaremos de enfatizar que ele não é apenas um ethos.

 

Além do fato de que a incidência de valores profundamente cristãos, embora secularizados, permeia de fato a cultura ocidental mais do que ela mesma pretende admitir e mais do que se possa pensar, como nos lembra o encontro de Jesus com o “jovem rico” (Mt 10,17-27), não é a adesão aos valores que identifica o seguimento. E também não é verdade que a Igreja atual ignora ou pretende ignorar o drama da ausência do Deus de Jesus Cristo na sociedade atual.

 

Basta recordar uma passagem decisiva do discurso do Papa Francisco à Cúria Romana por ocasião das felicitações de Natal do ano passado: “Não estamos mais em um regime de cristandade porque a fé – especialmente na Europa, mas também em grande parte do Ocidente – não constitui mais um pressuposto óbvio da vida comum; na verdade, muitas vezes é até negada, depreciada, marginalizada e ridicularizada” (21 de dezembro de 2019).

 

E, nessa constatação quase gritada, o papa dava voz não só às considerações do seu antecessor, mas também àqueles que há muito tempo denunciavam essa crise. Basta pensar no “cristianismo aos pedaços” de Michel de Certeau (publicado em 1974). Lá, o jesuíta francês assinalava que, muitas vezes, são precisamente motivações autenticamente cristãs que levam os fiéis para longe dos locais convencionais de culto e das estruturas.

 

A crise, então, diz respeito e envolve aquilo que Wilhelm Hendrik van de Pol denominava como “cristianismo convencional” e cujo “fim” ele desejava. Daí a necessidade, como o Papa Francisco gosta de repetir, de iniciar processos, ao invés de ocupar espaços.

 

O futuro da fé, portanto, se joga na sua capacidade de ir além da “religião burguesa”, um horizonte vislumbrado e assinalado por Johann Baptist Metz no início dos anos 1980, denunciando uma sociedade que vê a prevalência de comunidades paroquiais ou associações meramente culturais ou “religiosas”, “quase puro reflexo, no campo organizacional, daquela religião burguesa que deverá ser superada lenta, mas decisivamente, em um processo semelhante de reforma” (J. B. Metz, “Al di là della religione borghese. Discorsi sul futuro del cristianesimo” [Além da religião burguesa. Discursos sobre o futuro do cristianismo], Bréscia: Queriniana, 1981, p. 77). A redução cultual da fé cristã compromete radicalmente o seu caráter profético-crítico e, ao desencarná-la, só a torna aparentemente eficaz.

 

Além disso, não parece pertinente a denúncia de uma suposta falta de democracia, lesiva dos direitos, como exposta por Della Loggia. A referência ao caso Becciu, de fato, é imprópria, pois nenhum dos seus direitos fundamentais de batizado e de bispo foi espezinhado, mas foram revogados os seus privilégios ligados à púrpura cardinalícia, que não podem ser considerados um direito, de fato.

 

No momento em que o bispo de Roma considera que se rompeu a relação de confiança no mais alto nível que deve sustentar o Sacro Colégio, então está nas suas plenas faculdades tomar medidas como as adotadas no caso mencionado. Em outro caso, as sanções foram determinadas após um oportuno procedimento processual.

 

Da mesma forma, parece fora de lugar considerar que ele está predeterminando a sucessão, com a nomeação de cardeais que são fiéis ao pontífice, assim como não é absolutamente fundamentada do ponto de vista histórico, sequer na história recente, a suposta descontinuidade entre a eleição de um papa e a do seu sucessor, como se entre João Paulo II e Bento XVI não houve uma determinante continuidade, apesar das diferenças que sempre caracterizaram a índole, a cultura e a formação de cada bispo de Roma.

 

Por fim, a questão feminina e o papel das mulheres na comunidade eclesial, com particular referência aos centros de decisão. O que o colunista deseja é um objetivo ao qual todos devemos tender, mas que se realizará no longo prazo, enquanto o processo que o ativou já está em andamento.

 

Parece-me supérfluo aqui listar as mulheres chamadas recentemente para desempenhar papéis importantes na Igreja, embora eu queira concluir enfatizando que uma parte desse processo é uma mudança de mentalidade, que requer da parte de todos (eclesiásticos e leigos) a capacidade de interpretar a autoridade e o governo no horizonte do serviço, ao invés do poder.

 

A reivindicação de papéis de destaque me parece subentender um clericalismo às avessas, do qual também somos chamados a nos defender e a nos libertar.

 

Todos, na comunidade dos fiéis, devemos trabalhar para que o Filho do homem, no seu retorno, encontre uma fé autêntica no mundo, inspirada no mistério da Encarnação, que estamos vivendo mesmo em tempos tão dramáticos, e certamente não será uma grande dano se ele não encontrar uma “religião burguesa” nem um “cristianismo convencional”.

 

Para além de todo reducionismo ético e cultual, a fé é a adesão da pessoa, com o seu conhecimento, vontade e afetividade, ao mistério de Cristo e, portanto, coincide com o seguimento, que não pode ser quantificado com base na incidência dos cristãos na vida pública nem na frequentação dos locais de culto.

 

Leia mais