A liturgia online: desafios e possibilidades. Artigo de Vanildo de Paiva

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24 Dezembro 2020

“A pandemia tem nos feito repensar muitas coisas também no campo da vivência e da expressão da nossa fé, levantando inúmeros questionamentos: como entender, por exemplo, a possibilidade da eucaristia celebrada sem a comunidade, não obstante sua validade seja garantida pela lei eclesiástica? A presidência só do presbítero (e do presbítero só!) é mesmo suficiente para afirmar que a eucaristia tem alimentado todo o povo de Deus nesse tempo de pandemia? As celebrações domésticas em torno da Palavra constituem uma liturgia de “segunda classe” ou de suplência da eucaristia? Onde estão os limites entre participação e coisificação da experiência litúrgica nas transmissões online? Temos elementos para falar da liturgia online como autênticos caminhos de comunhão e participação? São muitas perguntas, ainda com poucas respostas! Muitas delas são sintomáticas de situações há tempos acomodadas, mas muito mal compreendidas, que exigem de nós enfrentamentos sérios, sob pena de grave incoerência e traição à reforma da liturgia empreendida pelo Concílio Vaticano II, que se propôs resgatar a originalidade da essência de todo o rito cristão”, escreve Pe. Vanildo de Paiva em artigo publicado no Cadernos Teologia Pública, Nº 148, do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

Pe. Vanildo de Paiva é graduado em Psicologia, pelas Faculdades Atibaia (FAAT) (2011), em Filosofia pela PUC Minas (1989 e em Teologia, pela PUC Rio (1992), mestrado em Psicologia pela PUC Campinas (2014), pesquisando a ideia chave de "cuidado" em Winnicott. Foi vice-presidente da fundação educacional da Faculdade Católica de Pouso Alegre (FEJAN) e coordenador da extensão da mesma Faculdade. É professor titular da FEJAN, nas áreas de Introdução ao Exercício do Filosofar e demais disciplinas filosóficas, incluindo Psicologia Geral. Atua principalmente nos seguintes temas: cuidado religioso, desenvolvimento humano e espiritualidade, sexualidade e fé, relações humanas em ambientes religiosos, formação de educadores e catequistas etc.

Eis o artigo.

Introdução

A Igreja é, essencialmente, comunidade, povo de Deus em caminhada rumo ao Reino definitivo. É Ecclesia: assembleia dos chamados, dos escolhidos. Essa eleição divina tem seu início com o povo de Israel e culmina em Jesus Cristo, pedra fundamental da nova e definitiva construção espiritual, aquela formada pelos renascidos do Mistério de sua Páscoa e chamados a ser povo de sacerdotes, para oferecer a Deus um culto que lhe seja agradável (cf. 1Pd 2, 4-5). Enraizada na prática de Jesus, fiel à sua Palavra e sob a ação do Espírito Santo, como os primeiros irmãos e irmãs, “a Igreja nunca deixou de se reunir para celebrar o Mistério pascal” (SC, n. 6). Assim, a assembleia reunida para o louvor de Deus e a sua própria santificação (cf. SC n. 7) é imagem e realização da Igreja. No entanto, reunir-se publicamente para o culto nem sempre foi algo fácil para a Igreja. Sabemos, pela nossa história, que, principalmente nos primeiros séculos, os cristãos se encontravam às escondidas e celebravam nas suas casas. E foi nesta condição – de volta à Igreja doméstica! – que fomos colocados pela pandemia provocada pelo coronavírus!

De fato, em março deste ano de 2020, de repente, a necessidade do isolamento social, como medida sanitária no combate à Covid-19, nos colocou em crise, no plano social, econômico, ambiental, eclesial e interpessoal. Os cenários, mundial e brasileiro, que se descortinaram diante de nós, nos quais nós mesmos desenrolamos o drama da nossa existência, têm sido marcados pelas experiências do sofrimento, da dor, da solidão, da indignação social e política, das perdas, enfim, da morte.

O fato é que a pandemia tem nos feito repensar muitas coisas, também no campo da vivência e da expressão da nossa fé, levantando inúmeros questionamentos: como entender, por exemplo, a possibilidade da eucaristia celebrada sem a comunidade, não obstante sua validade seja garantida pela lei eclesiástica? A presidência só do presbítero (e do presbítero só!) é mesmo suficiente para afirmar que a eucaristia tem alimentado todo o povo de Deus nesse tempo de pandemia? As celebrações domésticas em torno da Palavra constituem uma liturgia de “segunda classe” ou de suplência da eucaristia? Onde estão os limites entre participação e coisificação da experiência litúrgica nas transmissões online? Temos elementos para falar da liturgia online como autênticos caminhos de comunhão e participação? São muitas perguntas, ainda com poucas respostas! Muitas delas são sintomáticas de situações há tempos acomodadas, mas muito mal compreendidas, que exigem de nós enfrentamentos sérios, sob pena de grave incoerência e traição à reforma da liturgia empreendida pelo Concílio Vaticano II, que se propôs resgatar a originalidade da essência de todo o rito cristão.

A inundação midiática no terreno litúrgico

Que os meios de comunicação (TV, rádios etc.) e as mídias sociais há tempo vêm ganhando espaço também no terreno católico já o sabíamos! No entanto, com a pandemia, assistimos a um fenômeno que poderíamos chamar de inundação midiática, também no campo litúrgico da nossa Igreja. De acordo com Grillo, “se os corpos ficam em casa, pelo menos os olhos, os ouvidos, as mentes e os corações tentam sair, tentam se encontrar, não tardam em se conectar. Através das telas dos computadores, dos tablets, dos celulares ou dos televisores, tentamos compensar isso [...]. Porém, é um canal que facilmente espetaculariza o rito” (GRILLO, 2020a). Basta zapear pelos canais da TV ou acessar o Facebook, por exemplo, para nos depararmos com missas transmitidas ao “gosto do freguês”, momentos orantes, lives com meditação da Palavra, do terço, Liturgia das Horas e pregações, adoração ao Santíssimo Sacramento etc. Isso tudo em matizes bem diversas, que vão desde propostas muito sensatas e coerentes com a melhor teologia litúrgica que temos, até disparates sem credibilidade alguma.

Está se configurando para todos nós e com a participação de todos nós uma cultura digital. De acordo com o papa Francisco, vivemos “em uma cultura amplamente digitalizada, que afeta de modo muito profundo a noção de tempo e de espaço, a percepção de si mesmo, dos outros e do mundo, o modo de comunicar, de aprender, de informar-se, de entrar em relação com os outros” (FRANCISCO, 2019). Essa cultura digital tem mudado nossa linguagem, mentalidade e hierarquia de valores . A tradicional dicotomia entre real e virtual hoje é questionada por muita gente que defende que não há mais o virtual, mas somente o real da presença e das relações das pessoas, mediadas pelas redes, inclusive com trocas afetivas. Uma presença diferenciada, é verdade, mas sempre presença, já que as mídias seriam verdadeiras extensões dos nossos sentidos. Do mesmo modo, há que se superar o binômio off-line/online, já que “hoje, vivemos uma experiência ‘onlife’ (Luciano Floridi). A conectividade e as redes já são uma dimensão existencial das pessoas. Redes e ruas estão mais do que nunca conectadas e interligadas. O ‘véu’ dessa separação se rasgou há um bom tempo” (SBARDELOTTO, 2020a). De acordo com esse pensamento, um novo tipo de realidade cultural se instaura, possibilitando novas formas de encontro e relação das pessoas entre si e destas com o sagrado. Isto traz sérias indagações para nós, pois mexe com conceitos e princípios fundamentais da experiência litúrgica, tais como o de participação, comunidade, experiência simbólica, espaço sagrado etc., questões estas que precisam ser amplamente discutidas.

Liturgia e mídias na pandemia

Uma limitada compreensão da eucaristia

Com o advento da pandemia e a sábia decisão da Igreja de suspender as atividades religiosas e litúrgicas em seus templos, a primeira iniciativa pastoral de boa parte do clero foi investir na multiplicação das transmissões da missa pela TV, rádios e mídias digitais de modo geral. Não se questiona aqui a boa vontade e o desejo dos pastores de nutrir, de alguma maneira, os seus rebanhos, com a Palavra de Deus e a piedade eucarística. Sabemos quanto bem essas possibilidades têm feito a tantas pessoas, como doentes e idosos. O que se questiona, no entanto, é até onde se pode falar de “participação” em relação a tais missas transmitidas. No fundo, há que se perguntar como se dá, na ação litúrgica, a relação rito-espaço: o espaço determina o rito ou o contrário?

A participação plena, ativa, consciente, piedosa e frutuosa desejada pela Sacrosanctum Concilium (n. 11.14.48) não depende apenas da qualidade da transmissão e nem mesmo das boas disposições de quem está assistindo à celebração. A linguagem litúrgica requer mais do que pessoas reunidas para ouvir ou ver o que se transmite, ainda que se consiga estabelecer com elas excelentes relações humanizadas e comoventes. Muito do que a ação ritual significa e realiza só pode ser vivido na imediatez do sinal que provoca os sentidos e evoca o sentido maior da presença do Ressuscitado, no clima e no espírito de comunhão que brotam da assembleia reunida “como se fosse uma só pessoa” (Ne 8,1). Há um distanciamento incontornável entre a comunidade local que vive o rito e a verdade do evento salvífico (na pandemia, infelizmente o padre sozinho!) e aqueles que se esforçam em penetrar no sentido desses sinais, mas não o podem fazer a distância. Quando esse sinal é o pão eucarístico, mais ainda se percebe esse distanciamento. Categorias como “comunhão espiritual” ou “comunhão mental” – por sinal, tão estranhas à teologia litúrgica pós-conciliar! – não dão conta de proporcionar a vivência que se requer à comunhão eucarística: comer do pão, beber do vinho, tomar parte da ceia do Senhor como conviva do banquete divino. Não podemos correr o risco de voltar àqueles tempos medievais em que o povo se contentava em ver de longe a hóstia consagrada e adorá-la tão somente, privando-se do que lhe é essencial, como disse Jesus: “a minha carne é verdadeira comida e o meu sangue é verdadeira bebida” (Jo 6, 55).

Os caminhos que tentamos para suprir esta privação da celebração eucarística estão revelando o quanto é “limitada a nossa compreensão da ceia memorial do Senhor e isso deverá nos levar a buscar o sentido mais profundo da eucaristia, que inclui o lava-pés do serviço e do amor fraterno, interação entre fé e vida que muitos cristãos já vivenciam. Aliás, estamos tendo a oportunidade de contemplar a entrega do Senhor, no trabalho arriscado de tantos profissionais da saúde, na luta para obter o auxílio emergencial, na partilha e na solidariedade em socorrer os mais frágeis, na batalha cotidiana pela sobrevivência em condições adversas” (CARPANEDO, 2020a).

O presbítero sozinho e a insuficiência do “mínimo suficiente”

Outra questão muito séria que deve ocupar nossa reflexão, intimamente ligada às transmissões das missas, refere-se à missa sine populo, isto é, sem a presença da comunidade celebrante, centrada na figura autorreferenciada do presbítero. A missa com assistência de um só ministro, uma das três opções apresentadas pelo Missal (nn. 252-272), tornou-se a regra nesse período. A Instrução Geral do Missal Romano é muito clara ao apresentar uma salvaguarda: “A celebração sem ministro ou sem ao menos um fiel, não se faça a não ser por causa justa e razoável” (n. 254). Há quem argumente que a assembleia esteja presente, participando por meio da assistência à transmissão realizada pelos meios de comunicação e mídias digitais, questão complexa já abordada acima. Outros argumentam pela legitimidade da opção feita, já que é “lei” referendada pela Igreja. Há, ainda, os que se apoiam, piedosamente, na obrigatoriedade do padre em celebrar a eucaristia.

O que se questiona aqui não é nem a validade da missa – ponto indiscutível! –, nem a legitimidade da forma, mas o seu genuíno significado dentro da eclesiologia e da teologia que fundamentam a Reforma Litúrgica. O que pensar de uma celebração na qual somente se evidencia o ministério da presidência, se a liturgia deve ser “ação de todo o corpo da Igreja”, “não ações privadas, mas celebrações da Igreja, sacramento da unidade” (SC, n. 26)? O Catecismo da Igreja Católica é claro ao afirmar: “É toda a comunidade, o corpo de Cristo unido à sua Cabeça, que celebra” (n. 1140). Mais do que “valer” a missa, o mínimo suficiente, preocupa-nos o reducionismo de toda a riqueza da ação ritual. No dizer de Grillo, “se o seu valor é pensado como o conjunto de todas as palavras e de todas as linguagens, em uma comunidade rica e articulada, uma missa válida é só válida. Falta-lhe toda aquela gratuidade de que precisa de modo vital, para ser plenamente ela mesma” (GRILLO, 2020b).

Outro problema decorrente deste, em alguns casos, é o quanto uma pobre concepção do ministério ordenado e da presidência eucarística faz com que se reforce um clericalismo midiático, às vezes chegando-se ao absurdo do exibicionismo, se o padre faz convergir para si toda a atenção, e não para o que celebra (SBARDELOTTO, 2020b). Esquece-se, lamentavelmente, de que a epifania do ministro obscurece a epifania do Mistério!

O perigo da redução da liturgia à celebração eucarística

De forma alguma a missa é a única maneira de celebrar o memorial do crucificado-ressuscitado. E aí, este tempo de pandemia tem se apresentado como oportuna ocasião de resgatar outras maneiras de celebrar a fé, também pertencentes à liturgia da Igreja. Quando celebramos o Ofício Divino na hora do sol nascente, por exemplo, estamos oferecendo um sacrifício de louvor. Quando nos reunimos, na hora do sol poente, para celebrar o ofício da tarde, estamos fazendo a Deus nossa oferenda de ação de graças (eucaristia). A oração de agradecimento à mesa das refeições também tem uma dimensão profundamente eucarística.

De fato, muitas famílias e pequenas fraternidades têm se valido desta ocasião para celebrar nas Igrejas das suas casas, mediante a oração dos salmos pelo Ofício Divino das comunidades e a escuta das Escrituras ditadas pela liturgia diária e semanal, reunindo-se em círculo, ou, quem mora sozinho, colocando-se em oração silenciosa na presença de Deus. Trata-se de uma porção do povo de Deus que possui enraizamento na fé da Igreja e tem suficiente autonomia para se reunir como Igreja e celebrar o Mistério da fé, graças à consciência que tem do sacerdócio batismal dos fiéis (CARPANEDO, 2020b).

A Palavra de Deus como pão que nos alimenta

O deslocamento das celebrações da fé para dentro das casas trouxe ganhos valiosos para o revigoramento da Igreja doméstica e o protagonismo dos cristãos leigos e leigas nas ações celebrativas. O povo entendeu melhor que sabe e pode rezar, mesmo sem a figura significativa do padre na presidência das celebrações. A liturgia do dia a dia foi ganhando força especialmente ao redor da Palavra de Deus. A Bíblia, “peça” importante no acervo de todo cristão, deixou de ser um enfeite bonito, para ser aberta e alimentar o povo de Deus.

A Igreja sempre teve as Sagradas Escrituras em alto apreço e ensina que, assim como as espécies do pão e do vinho consagrados, a Palavra anunciada na celebração litúrgica é “pão do céu” para alimentar os fiéis (cf. DV, n. 21). De fato, é o mesmo Cristo que se faz realmente presente, falando com o seu povo, quando são lidas as Escrituras (cf. SC, n. 7). Palavra e Sacramento não se contradizem, mas se exigem mutuamente, pois “são meios de que o Senhor se serve para comunicar a sua graça, para edificar os cristãos, para construir a Igreja como povo de Deus, Corpo de Cristo, Templo do Espírito, sacramento do Reino de Deus no mundo” (CNBB, Doc. 108, n. 29).

Perspectivas para uma fecunda relação liturgia-mídias

Nesse momento da nossa reflexão, também queremos um espaço para os projetos, para um tempo novo que está sendo engendrado desde já, com a graça de Deus e de seu Espírito de criatividade e renovação. O tempo da pós-pandemia, por muitos definido como “novo normal”, não poderá ser apenas uma retomada do que deixamos atrás, mas uma prova de que aproveitamos a crise para torná-la verdadeira oportunidade de aprendizado e aperfeiçoamento, inclusive na reconstrução de nossas práticas eclesiais.
Parece-nos claro que a cultura digital é um fenômeno irreversível. E isso pode ser muito bom! Cada dia mais seremos desafiados às parcerias e interações pastorais, buscando uma fecunda relação entre a liturgia e os sofisticados meios de comunicação e mídias digitais. Isso exigirá de todos nós (animadores da liturgia, padres, comunicadores, liturgistas etc.) muitos movimentos de conversão pastoral, tão necessária para respondermos à altura ao que o papa Francisco nos pede: “É preciso ter a coragem de encontrar os novos sinais, os novos símbolos, uma nova carne para a transmissão da Palavra” (EG, 167). Cientes de que a Liturgia se faz de sinais, símbolos e gestos que encontram o seu sentido à luz da Palavra, cabe a nós deixar-nos sempre educar pelos seus ritos para, sem perder a fidelidade à riqueza teológica e cultual que temos, conseguirmos também, até onde for possível e como for possível, ser uma “presença evangelizadora no continente digital” (Diretório Catequese, n. 371).
A exigência da conversão pastoral nos parece bem oportuna para falarmos de perspectivas litúrgicas, e aponta para algumas mudanças e passagens necessárias:

Passagem de uma cultura clerical para uma cultura ritual

Fomos culturalmente (des)educados para a ação ritual, numa concepção desequilibrada do valor dos ministérios e funções na celebração litúrgica, sobretudo dos sacramentos. Sabemos do lugar importante que cabe ao ministro ordenado, mas isso não significa colocar nele toda a dependência da celebração, em detrimento da participação efetiva dos outros ministérios e de toda a assembleia ali presente. O Concílio foi assertivo ao dizer: “Em todas as celebrações litúrgicas, ministro e fiéis, no desempenho de suas funções, façam somente aquilo e tudo aquilo que convém à natureza da ação, de acordo com as normas litúrgicas” (SC, n. 28). Somente uma nova cultura ritual poderá fazer frente a um clericalismo enraizado em nossa mentalidade católica. As mídias podem colaborar na construção de uma visão mais coerente do sacerdócio comum dos fiéis e na divulgação de iniciativas orantes protagonizadas pelos cristãos leigos e leigas.

Passagem de um reducionismo eucarístico a uma consciência eucarística

Somos chamados a ampliar nossa consciência do que seja a eucaristia, que não se limita à presença do Cristo nas espécies consagradas, mas se estende a outras tantas formas de comunhão que estabelecemos com os irmãos e irmãs, especialmente na vivência da caridade, da partilha fraterna, da equidade social e no cuidado pela nossa casa comum. Nesse aspecto, os meios de comunicação e mídias digitais poderão cumprir um papel importante de desconstrução do reducionismo eucarístico, inclusive evitando exageros que, não raro, propagam uma distorcida teologia a respeito da eucaristia.

Passagem de uma relativização da Palavra à sua sacramentalidade

A Igreja nos ensina que a “celebração da Palavra de Deus possui um caráter sacramental” (CNBB, Doc. 108, n. 63), isto é, manifesta a presença e a ação de Cristo, Palavra encarnada. No desejo de promover e salvaguardar a dignidade da eucaristia, a Palavra, não raras vezes, ficou relativizada. No entanto, não podemos nos esquecer de que cerca de 70% das comunidades eclesiais no Brasil não têm missa todo domingo. Muitas delas somente uma ou duas vezes ao ano, e vivem da Palavra. A pandemia nos mostrou o quanto a celebração familiar em torno da Palavra (sobretudo do evangelho dominical) bem como sua leitura orante podem nos alimentar a fé e a vida. Tudo isso demanda uma valorização maior da Palavra de Deus. Nesse aspecto, as tecnologias midiáticas podem fazer muito a serviço da formação bíblica e da facilitação dos momentos orantes ao povo, com propostas qualificadas de celebração.

Passagem de uma visão da liturgia doméstica como suplência a uma valorização da casa como espaço celebrativo

Boa parte dos fiéis tem se perguntado se, em vez de assistir à missa pelas mídias, não seria mais interessante reunir a família e fazer da pequena Igreja da casa um lugar de encontro com Jesus, na certeza do que ele mesmo prometeu: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, estarei no meio deles” (Mt 18,20). Aos poucos, podemos ir desenvolvendo uma liturgia doméstica, feita de pequenos ritos em estilo simples, presidida pela mãe ou por outra pessoa da família. Por meio desta celebração, podemos alegrar-nos na presença de Jesus, escutar e meditar a sua Palavra e, junto com Jesus, erguer ao Pai os nossos corações em preces, partilhar um pão em ação de graças, invocar uma bênção (CARPANEDO, 2020a). Mas, para isso, é preciso tomarmos consciência de que a liturgia doméstica não é apenas suplência pela falta das missas nos templos e nem mesmo uma liturgia de “segunda classe”. Aliás, não nos esqueçamos de que a história do cristianismo, especialmente das celebrações do Mistério Pascal, teve seu início nas casas. A liturgia fixada no templo fez com que os cristãos se distanciassem bastante da liturgia celebrada no lar. A pandemia nos favoreceu ao menos repensar a necessidade dessa revalorização. Aqui está um ponto no qual as mídias têm um papel imprescindível: disponibilizar subsídios e ferramentas para que as liturgias domésticas sejam verdadeiros encontros das famílias entre si e com o Deus da vida!

Passagem do consumismo litúrgico à participação ativa, consciente e frutuosa

O desconhecimento teórico e prático da ação ritual faz com que muitos fiéis acorram aos sacramentos, mormente à eucaristia, como consumidores do sagrado. Durante a pandemia isso se mostrou claramente, revelando o quanto ainda temos que crescer em uma das pilastras da liturgia mais incentivada pela Sacrosanctum Concilium: a participação. Para muitos, participar é “fazer algo” na missa. O resto é assistência, não muito diferente daqueles que permanecem impassíveis diante da TV assistindo à missa. Não faltaram grupos a pleitear a hóstia consagrada como propriedade e pastores a oferecê-la em ações totalmente isoladas do contexto celebrativo. Esse é um aspecto que merece investimentos pastorais urgentes. Será que os meios de comunicação e mídias sociais poderão ampliar seu compromisso de ajudar na educação do povo cristão para a consciente participação na sagrada liturgia?

Passagem das mídias como palco às mídias entendidas como serviço

É próprio das tecnologias de comunicação social dar visibilidade às pessoas e acontecimentos. A ordem de Jesus: “O que digo a vocês na escuridão, repitam à luz do dia, e o que vocês escutam em segredo, proclamem sobre os telhados” (Mt 10,27) mais do que nunca é levada à risca. No terreno da liturgia, entretanto, o menos é mais quando se trata dos “atores”, visto que a finalidade de toda ação ritual é proporcionar aos celebrantes um autêntico mergulho no Mistério do Cristo, ação esta que nos santifica e se torna um sincero louvor ao Pai, na força do Espírito (cf. SC, n. 7). O protagonismo, portanto, pertence ao próprio Deus. Todos aqueles que estão a serviço de levar ao povo, por meio das mídias, alguma proposta celebrativa, especialmente os que presidem as celebrações, que nunca percam a mística do profeta João Batista: “É preciso que ele cresça e eu diminua” (Jo 3,30).

Conclusão

Liturgia online: experiência que vai se consolidando aos poucos e merece toda a nossa atenção, pelo tamanho do desafio que nos traz. Será, mesmo, uma possibilidade que veio para ficar? Parece-nos que sim! Mas essa modalidade substituirá as celebrações em que os fiéis, física e geograficamente no mesmo templo, se congregam como um só corpo para a celebração do Mistério Pascal em um tempo e espaço determinado? Certamente não! Não se trata, obviamente, de caminhos nem substitutivos e nem de igual significado. Na trilha de Sbardelotto, poderíamos dizer que se faz necessário “abandonar a lógica do ‘ou’ e assumir a lógica do ‘e’. Não se trata de evangelizar ‘ou’ no ambiente digital ‘ou’ nos demais ambientes sociais, mas de sair ao encontro das pessoas no ambiente digital ‘e’ nos demais ambientes sociais, isto é, onde quer que elas estejam, para assim gerar comunhão e construir comunidade, como fez Jesus com os discípulos de Emaús (Lc 24,13-35)” (SBARDELOTTO, 2020a). Trata-se, na verdade, de reconhecer a importância do mundo digital como ferramenta articuladora de relações humanas para a facilitação da celebração da fé, ciente dos limites que lhe são inerentes e também de suas possibilidades, como nos diz a Igreja: “a vida litúrgica e comunitária também pode ser enriquecida com o recurso ao ambiente digital, mediante oportunidades de oração, meditação, preparação aos sacramentos e partilha da Palavra de Deus na internet, nas redes sociais e em aplicativos móveis” (CNBB, Doc. 99, n. 191). Que o Espírito, fonte de discernimento e de constante renovação, nos ilumine nesse novo tempo!

Igreja e evangelização: provocações da pandemia

Igreja e evangelização: provocações da pandemia. Parte II - As dores do parto. Cadernos Teologia Pública Nº 148

 

Este artigo integra a primeira parte do projeto editorial intitulado “Igreja e evangelização: provocações da pandemia”, organizado pelo Grupo de Pesquisa “Teologia e Pastoral” – do Programa de Pós-Graduação em Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), publicado na 148ª edição de Cadernos Teologia Pública.

Acesse aqui os Cadernos Teologia Pública na íntegra.

Referências

CARPANEDO, P. O espaço da celebração em tempo de isolamento social. Revista Caminhando com o Itepa. Ano 37, número 129, set. 2020, p. 115-120 (2020a).
_____. Celebrar a fé em tempo de isolamento social. Disponível em: https://www.paulinos.org.br/home/blog/atualidade/celebrar-a-fe-em-tempo-de-isolamento-social. Acesso em: 27 set. 2020 (2020b).
CNBB. Instrução Geral para o Missal Romano e Introdução ao Lecionário. Brasília: CNBB, 2009.
_____. Ministério e Celebração da Palavra (Doc. 108). Brasília: CNBB, 2019.
_____. Diretório de comunicação da Igreja no Brasil (Doc. 99). Brasília: CNBB, 2013.
GRILLO, A. A. Liturgia e Covid-19. Como ser assembleia celebrante em tempos de pandemia. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/598334-liturgia-e-covid-19-diversamente-igreja-como-ser-assembleia-celebrante-em-tempos-de-pandemia-artigo-de-andrea-grillo. Acesso em: 28 set. 2020 (2020a).
_____. A liturgia como “tela” e a tentação da “simples administração”. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/602845-a-liturgia-como-tela-e-a-tentacao-da-simples-administracao-artigo-de-andrea-. Acesso em: 28 set. 2020 (2020b).
PAPA FRANCISCO. Evangelii Gaudium. Sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus e Loyola, 2013.
______. Christus Vivet. Para os jovens e para todo o povo de Deus. Brasília: CNBB, 2019.
PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A PROMOÇÃO DA NOVA EVANGELIZAÇÃO. Diretório para a catequese. São Paulo: Paulus, 2020.
SBARDELOTTO, M. Virtualização da fé? Reflexões sobre a experiência religiosa em tempos de pandemia. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/601104-virtualizacao-da-fe-reflexoes-sobre-a-experiencia-religiosa-em-tempos-de-pandemia. Acesso em: 27 set. 2020 (2020a).
_____. A (re)descoberta eclesial do ambiente digital: entre luzes e sombras. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/597585-a-re-descoberta-eclesial-do-ambiente-digital. Acesso em: 28 set. 2020 (2020b).
VATICANO II. Constituição Sacrosanctum Concilium. São Paulo: Paulinas, 2015.

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