A pandemia e o retorno das velhas questões bioéticas. Entrevista com Anor Sganzerla

 "O que a sociedade pode permitir-se, e o que ela não pode permitir-se em vista do bem comum, da equidade dos recursos e benefícios, visto que a própria norma não consegue dar conta da diversidade de situações?", questiona o filósofo

Foto: Marcos de Paula | Prefeitura do Rio de Janeiro

24 Outubro 2020

"Se faltava nesse início do século XXI algum acontecimento de caráter mundial, para marcar o começo de uma nova era, não resta dúvidas de que a pandemia do Covid-19 nos levou a esse novo momento", diz Anor Sganzerla, professor de Bioética na Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUCPR.

 

Nesta entrevista, enviada à IHU On-Line, o professor Anor Sganzerla responde às perguntas de seus estudantes do curso de mestrado em bioética sobre questões bioéticas que emergiram na crise pandêmica. Além de expor "velhos problemas relacionados a questão da desigualdade social, a pobreza, a falta de um sistema público e universal de saúde eficaz, o predomínio da lógica liberal nos sistemas privados de saúde, e a incapacidade da maioria dos governos de gerir tal crise com respostas rápidas, justas e eficazes", a pandemia de Covid-19 também "suscitou questões bioéticas em diferentes esferas: política, organizacional, de saúde pública, dos profissionais de saúde, e das pessoas individualmente", menciona. É sobre elas, que ele discorre a seguir.

 

Anor Sganzerla (Foto: Arquivo pessoal)

Anor Sganzerla é doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, e graduado em Teologia pelo Instituto Teológico São Paulo e em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR. Juntamente com Leo Pessini e Diego Carlos Zanella, é organizador da obra Van Rensselaer Potter: um bioeticista original (Loyola, 2018).

 

Eis a entrevista.

 

Com a pandemia pode-se dizer que iniciou o século XXI?

Se faltava nesse início do século XXI algum acontecimento de caráter mundial, para marcar o começo de uma nova era, não resta dúvidas de que a pandemia do Covid-19 nos levou a esse novo momento. Desde os primeiros meses do ano de 2020 vivemos algo atípico, e todo o planeta foi obrigado a mudar radicalmente o seu modo de viver, de trabalhar, de conviver, de se relacionar, de usar máscaras, enfim, de rever o modo de conduzir a sua vida.

Nesse sentido, embora o século XX tenha deixado marcas bastante negativas, e ainda muito presentes, a exemplo das duas guerras mundiais, os horrores do holocausto e as milhões de mortes, a experiência vivida pela humanidade com a pandemia do covid-19 tornou-se algo peculiar, principalmente em relação à lógica neoliberal. Se aos olhos do mundo capitalista, antes da pandemia, nada parecia ser possível conter a lógica de produção e de consumo em escala global, a pandemia do covid-19 forçou a humanidade a repensar suas escolhas e valores, a se reencontrar com a natureza, a repensar o sentido da vida, e reconhecer a importância dos ideias coletivos acima dos interesses particulares, pois passamos a depender muito mais dos outros.

Se antes da pandemia, o indivíduo para atender a lógica do trabalho tinha que sacrificar sua vida pessoal e familiar, pois as exigências do mundo do trabalho aumentam a cada dia, a pandemia levou-nos de volta para casa, para uma contínua e constante convivência com os familiares. Essa nova realidade obrigou-nos a reaprender a lidar com o tempo, para alguns agora em excesso, a pensar em nós mesmos, na liberdade e na finitude humana, a brincar com os filhos, a lidar com as coisas da casa, a solidarizar-se a distância, enfim a reinventar-se para cuidar da saúde física e mental. Se antes da pandemia as ameaças de uma guerra nuclear entre grandes nações aparecia como tema nos meios de comunicação, e desse modo, poderia destruir toda a humanidade, agora o medo vem da solidão, dá saudades dos familiares, amigos, colegas do trabalho, enfim, do contato e a convivência com o outros humanos.

 

O que a pandemia revelou?

Se por um lado, fomos forçados a mudar o nosso modo de viver, por outro lado, a pandemia expôs velhos problemas relacionados a questão da desigualdade social, a pobreza, a falta de um sistema público e universal de saúde eficaz, o predomínio da lógica liberal nos sistemas privados de saúde, e a incapacidade da maioria dos governos de gerir tal crise com respostas rápidas, justas e eficazes. Ela também deixou ainda mais nítido fortes sentimentos extremos, a exemplo da solidariedade e do egoísmo. Muitas pessoas foram extremamente solidárias com outros seres humanos que precisam dessa solidariedade para tarefas do cotidiano, senão quando, emprestavam seus talentos para confortar a todos. Foi comum ver pessoas cantando nas janelas de suas casas para alegrar o coração de seus vizinhos que muitas vezes nem conheciam. Ser solidário com o desconhecido tem força de doação, de amor, de compaixão. Os profissionais de saúde também demonstraram uma entrega poucas vezes vista: muitos deixaram seus lares e passaram a viver nos hospitais ou em locais adequados para se dedicar ao trabalho, como também para não levar o vírus para dentro de suas casas. Infelizmente junto com a solidariedade tivemos também forte egoísmo, principalmente entre alguns governantes que manipularam a compra de equipamentos e medicamentos, como também aqueles que ignoraram a gravidade da pandemia, por interesses pessoais e políticos. Parte da população também demostrou forte egoísmo e descomprometimento com o outro, ao se recusar a usar máscaras, ou mesmo em não se manter em isolamento.

A pandemia também trouxe de volta velhas questões: o que a sociedade pode permitir-se, e o que ela não pode permitir-se em vista do bem comum, da equidade dos recursos e benefícios, visto que a própria norma não consegue dar conta da diversidade de situações? Quando a norma não dá mais conta, e na impossibilidade de atender a todos, para evitar que se utilizem critérios discriminatórios, é preciso que os parâmetros estabelecidos sejam transparentes. Nesse cenário a bioética torna-se ainda mais indispensável, não para dar respostas ao que deve ser feito, mas para ajudar a promover o diálogo aberto e franco em vista de se buscar alternativas que possam ser prudentes e razoáveis.

A pandemia também revelou que a redução dos investimentos em saúde pública das últimas décadas tem conseguintes nefastas principalmente entre população mais vulnerável. Os números de infectados e mortes pela covid-19 demonstraram como a população mais vulnerável foi a mais afetada pela pandemia, e como também o acesso à saúde como um direito, não foi respeitado.

 

Quais questões bioéticas a pandemia suscitou?

A pandemia suscitou questões bioéticas em diferentes esferas: política, organizacional, de saúde pública, dos profissionais de saúde, e das pessoas individualmente. Na esfera pública identificou-se a falta de políticas públicas para atender a todos, a negligência do estado, a corrupção na aquisição de equipamentos e medicamentos, na politização da doença, na falta de transparência na utilização dos recursos públicos, na lentidão das políticas públicas, na negação da força letal do vírus, na omissão de informações, no descaso com aqueles que são os mais vulneráveis ao covid-19, entre outras. Entre os profissionais de saúde, o conflito se deu principalmente entre respeitar a autonomia do paciente ou os interesses coletivos, a exigência por um protocolo oficial para a tomada de decisões para legitimar suas escolhas (mesmo sabendo que o seguimento do protocolo nem sempre leva a justiça), a escolha de quem receberia condições “melhores” de tratamento, a necessidade de garantir ao paciente além do tratamento técnico, também o humano e dos cuidados paliativos, visto que o paciente encontrava-se isolado dos familiares. No âmbito pessoal, a não utilização de máscaras, e o não cumprimento do isolamento social, por parte de algumas pessoas, demonstrou o descaso, e a falta de compaixão (colocar-se no lugar do outro) para com aqueles mais vulneráveis, que como vimos em muitos casos, eram seus próprios familiares.

 

 

Os problemas em bioética em tempo de emergência são diferentes dos problemas bioéticos em tempos de normalidade?

A bioética trata de problemas complexos, pois vivemos em uma sociedade marcada pela pluralidade de valores. Com a pandemia passamos a viver um tempo de excepcionalidade, e desse modo, as justificativas para os problemas bioéticos precisam de maior clareza, transparência e aprofundamento.

Assim sendo, pode-se afirmar que nesse período de excepcionalidade, algumas questões em bioética se potencializaram, e se tornaram mais recorrentes, enquanto outras situações passaram a ser novas. Em relação aos problemas que se potencializam podemos tomar como exemplo a prática dos profissionais de saúde, e em especial os médicos(as). Muitos deles em toda a sua carreira profissional, poucas vezes tiveram que decidir quem receberia um tratamento adequado, e quem ficaria sem ser atendido adequadamente, mas por conta da pandemia, essa decisão, para alguns profissionais precisou ser tomada mais de uma vez por dia.

Em relação à peculiaridade da bioética em tempos de pandemia, podemos destacar duas situações em especial: a impossibilidade dos familiares de acompanhar o paciente em seu internamento, e a proibição dos velórios e da despedida dos entes queridos. São situações novas e diferentes, que ainda não sabemos ainda avaliar os impactos. Essa condição fez com que profissionais de saúde tivessem que ser mais solidários com os pacientes, dando-lhe o conforto humano e espiritual, que em tempos de normalidade era prestado pelos familiares, amigos, psicólogos, agentes de pastoral, entre outros. A pandemia mostrou que a missão da medicina vai muito além do curar, é preciso, sobretudo, cuidar do paciente.

 

 

Que impactos a pandemia trouxe à ciência e a ética?

Historicamente a ciência esteve mais preocupada com os problemas do passado, do que com os problemas do futuro. Essa condição fazia com que suas respostas fossem lentas, voltadas à médio e a longo prazo, porque a realidade não era emergencial. Tratava-se de uma postura que lhe assegurava segurança, conforto, credibilidade, e em sintonia com os parâmetros éticos. De modo geral, o cientista trabalhava isolado e independente. Por tratar de problemas regionalizados mais do que globais, as ameaças à humanidade eram bem reduzidas.

Esse modo de conceber a ciência, no entanto, tornou-se incapaz de atender as emergências de nossos tempos. A ciência da atualidade depara-se com várias urgências: urgência em produzir uma vacina eficaz, urgência em conseguir antecipar-se à próxima pandemia, urgência em mudar seu modus operandi e manter-se ética, urgência em fazer-se acreditar diante dos discursos fundamentalistas e pseudocientíficos que buscam deslegitimá-la. Por outro lado, quando mais se precisou da ciência, foi quando menos se investiu nela, e mais se presenciou um desmonte das estruturas sanitárias. Agora a humanidade fica esperando por um “milagreda ciência para proteger a frágil teia da vida.

Além das respostas urgentes que a ciência precisa oferecer no tempo presente, a ciência necessita também de uma grande capacidade preditiva em relação ao futuro. Se no passado a capacidade de previsão era pequena, na atualidade esta capacidade de antecipação tornou-se indispensável. Para tanto, a ciência precisa sair do isolamento dos especialistas, e abrir-se às diferentes áreas de conhecimento, porque como bem vimos, a pandemia em muitos países (em especial na Ásia) foi combatida muito mais pela capacidade dos big data, e dos sistemas de informação, pela inteligência artificial, que conseguiam identificar as pessoas com febre e informá-las para ficar em isolamento, do que a prática dos infectologistas. Ou seja, para atender as urgentes necessidades de nossos tempos, a ciência precisa se reinventar.

Quanto aos impactos que a pandemia trouxe à ética, podemos afirmar que a pergunta sobre o mundo dos valores nunca foi tão importante e necessária como em nossos tempos, porque a vida passou a ser mais ameaçada. A pergunta se devemos privilegiar o ser humano ou a economia durante uma pandemia, revela que a vida humana não recebeu a devida importância nesse período da pandemia, sendo os vulneráveis os mais prejudicados.

Por vivermos um processo de globalização econômica, em que a economia não consegue incluir a maioria da humanidade, durante a pandemia, essa maioria continuou sendo concebida ainda mais como indesejável, sem ter o mínimo interesse de incluí-los. Pensar uma economia inclusiva, no sentido da casa comum presente na expressão economia, tornou-se o grande desafio da ética.

 

 

Em tempos de pandemia o que deve ser priorizado: a autonomia do indivíduo ou a justiça?

O respeito à autonomia do paciente conquistada nas últimas décadas representa um imperativo da humanidade. Depois de muitas décadas de uma prática paternalista da medicina, em que os pacientes apenas exerciam o papel de coadjuvantes, porque o saber técnico, científico e moral pertencia aos médicos(as), a medicina forçada pelas conquistas da própria modernidade em relação à liberdade, também foi obrigada a abandonar o modelo paternalista. Com isso, históricas práticas abusivas em relação aos pacientes, que eram justificadas em nome do bem comum e do progresso da ciência, deixaram de ser realizadas. Esse paternalismo na relação médico/paciente baseava-se no modelo hipocrático, ao qual reduzia o bem do paciente ao bem biomédico, mesmo que pudesse se opor ao sistema de valores do paciente.

Esse reconhecimento da medicina de que a vontade, o interesse, o consentimento, a autonomia do paciente devem se sobrepor aos interesses do profissional médico, ou mesmo da coletividade, passou a ser a regra geral de orientação para a prática médica clínica, para a ciência e a pesquisa. Com isso, buscava-se dar a devida importância para cada indivíduo, seus valores, e interesses. Em outras palavras, em tempos de normalidade, não se pode exigir sacrifícios do indivíduo em vista do bem da coletividade.

O filósofo Hans Jonas em sua obra Técnica, medicina e ética, afirma que em períodos de emergência, no entanto, como a dos nossos tempos devido a Covid-19, a regra básica de que os interesses do indivíduo precedem aos interesses do bem comum fica suspensa. Em tempos de emergência a sociedade tem que suspender o fino trato em vista da necessidade pública sobre os interesses individuais. Essa opção, acrescenta o pensador, torna-se quase que injustificável eticamente em tempos de normalidade, por isso ela precisa ser considerada de maneira transética. Ou seja, em tempos de emergência, a sociedade, segundo o pensador, pode até exigir sacrifícios das liberdades e dos direitos individuais em visto do bem comum, de modo a não permitir que a pandemia se estenda sem freios. Essas mudanças em tempos de anormalidade pandêmica impactam a prática clínica dos profissionais de saúde, baseada na individualidade de cada paciente, e no respeito à sua autonomia.

Ao privilegiar o bem comum e a comunidade, e não mais os direitos individuais de cada paciente, o profissional de saúde necessita apoiar-se em parâmetros morais diferentes das bases do tempo de normalidade. Se o principialismo em tempos normais, consegue atender minimamente as necessidades diárias da prática médica, em tempos de excepcionalidade revela-se insuficiente, porque diante da impossibilidade de atender a todos, a solidariedade e a justiça devem prevalecer à autonomia. Ao privilegiar o coletivo, isso não significa dizer que as pessoas não sejam consideradas como um fim em si mesma, mas reconhecer que a solidariedade é que deve guiar a saúde pública, e que a solidariedade imuniza as desigualdades e a discriminação. Nesse sentido, pode-se dizer que a solidariedade além de ser a melhor, é também a única opção.

 

 

Qual conceito de justiça deve guiar as decisões na pandemia?

O poder público e os profissionais da saúde têm-se apoiado nas bases do que classificamos de justiça distributiva, que tem entre seus critérios a consideração por dados quantitativos, a exemplo da quantidade de anos de vida que a pessoa ainda tem pela frente. A escolha apoiada em tal concepção não costuma causar problemas éticos e morais às pessoas que decidem, bem como tranquilizam quando ao dever cumprido. Esse modo de pensar é bastante recorrente na era moderna, e, também na bioética. Nessa concepção de justiça perguntas como por que não há recursos para atender a todos, são simplesmente ignoradas.

Embora essa concepção, possa ser considerada mais fácil de ser aplicada, porque trata de dados objetivos, precisamos de uma concepção de justiça que inclua também critérios qualitativos, e, desse modo a concepção de justiça restaurativa, apresenta-se como a compreensão de justiça mais adequada, porque ela considera também os laços da comunidade. Em outras palavras, a justiça restaurativa tem uma inclinação comunitária, no qual os laços do bem comum, da solidariedade, da reciprocidade são considerados mais importantes do que a concepção individualista da tradição neoliberal. A concepção de justiça restaurativa permite uma análise e interpretação crítica do contexto gerador das vulnerabilidades.

Assim sendo, a justiça restaurativa passa a exigir com que na esfera pública se reconheçam os indivíduos que tradicionalmente são discriminados, ou simplesmente são considerados invisíveis, e se busque superar as causas que provocam a discriminação, indiferença, invisibilidade, e desconhecimento dos direitos mais básicos. Em outras palavras, a teoria da justiça restaurativa pensa a justiça a partir das vítimas da sociedade, e fazer justiça a partir das vítimas requer reconhecer as múltiplas injustiças que os afetam e buscar alternativas de superação. No Brasil, em particular, por conta dos recursos emergenciais do governo federal, reconheceu-se que em torno de ¼ da população não constava em nenhuma estatística, ou seja, não existiam para as políticas públicas de proteção e cuidado.

 

 

O que se espera da vacina da covid-19?

Uma vacina para dar conta dessa pandemia é aguardada com grande expectativa. Dela espera-se eficácia, segurança, responsabilidade. Ela envolve empresas e corporações, interesses políticos principalmente das grandes nações, que buscam imunizar seus cidadãos como proposta política. Algumas informações que circulam nos meios de comunicação mostram a falta de solidariedade e de sensibilidade de alguns líderes mundiais, quando estes investem na compra de todo o estoque de alguns laboratórios mesmo antes que a vacina seja aprovada e produzida. E da parte de alguns laboratórios, não há nenhuma resistência quanto a essa prática, pois se movem unicamente por interesses mercantis.

As questões éticas e bioéticas tiveram grande destaque na pandemia. Inicialmente em relação a quem teria o direito a um respirador quando não havia condições de atender a todos. Depois tivemos a desigualdade nas regras do comércio internacional na compra dos respiradores, e até mesmo da medicação considera básica. Agora estamos próximos de vivenciar as questões éticas e bioéticas relacionadas à vacina: quem deverá ser vacinado por primeiro? Os mais vulneráveis? Aqueles que estão mais expostos ao vírus? As nações mais ricas? Aqueles que puderem pagar?

A desigualdade de relações que marcou a pandemia parece novamente repetir-se com a vacina. Por isso, a vacina será exitosa se além de combater a covid-19, ela também ajudar a humanidade a repensar seus valores, suas escolhas políticas, de modo a superar todas as formas de desigualdade, preconceito e discriminação.

A vacina da covid-19 faz a humanidade se lembrar de que não vivemos sozinhos no planeta e que somos uma comunidade. O apelo do Papa Francisco com sua nova encíclica Fratelli Tutti reforça a urgente necessidade da humanidade buscar novos valores para guiar suas relações, bem como fortalece o que já havia destacado na Laudato Si', quando afirma que habitamos a mesma casa comum. Somente a solidariedade cósmica poderá curar a humanidade.

 

 


E, quanto a estratégia de contaminar pessoas saudáveis para acelerar o processo de imunização coletiva?

Historicamente a estratégia de contaminar pessoas saudáveis de modo intencional, a exemplo do Caso Tuskegee (EUA), foi que de pior já se fez em pesquisa científica em vista de um possível bem comum. Essas pessoas foram contaminadas sem o seu devido conhecimento e consentimento. Utilizaram-se das pessoas mais vulneráveis para que todo o processo não fosse questionado. A ciência sentiu-se autorizada a produzir mártires em nome de um possível bem coletivo.

Em nossos tempos, tal prática é criticada e considerada problemática tanto ética como cientificamente. As incertezas em relação ao vírus são tantas, que apostar nessa estratégia representa mais uma aventura do que uma alternativa científica. A própria expressão “imunidade de rebanho”, termo que passou a ser utilizado para essa estratégia, mostrasse totalmente inadequada, e deveria ser substituído por imunidade coletiva, ou imunidade natural.

Na história da saúde pública esse tipo de estratégia não foi utilizada nem para as epidemias, o que dirá para uma pandemia como da covid-19. Não temos ainda certezas científicas necessárias sobre o vírus para tomar decisões dessa natureza, que pode trazer consequências ainda mais maléficas em escala global.

E, para os cientistas que desejam se aventurar nessa estratégia, espera-se que respeitem os preceitos básicos da ética em pesquisa. E, quanto aos possíveis voluntários que aceitaram ser contaminados propositalmente, deve-se assegurar que sejam pessoas autônomas, esclarecidas, e bem informadas, e que não estejam aceitando tal contaminação motivadas por outros interesses, sejam eles de ordem política, religiosa, ou de outra natureza.

 

 

Qual o futuro da bioética no pós-pandemia?

A história da bioética é muito recente, e apesar de ser bastante nova, ela ocupa um lugar especial na vida humana em nossos tempos, principalmente devido a sua capacidade de promover o diálogo interdisciplinar entre as diferentes áreas do saber. Na sociedade global em que vivemos hoje, deparamo-nos com uma pluralidade de valores, que precisam ser respeitados, e a bioética com sua capacidade deliberativa torna-se um instrumento necessário na promoção desse exercício de deliberação coletivo.

Nesse ano de 2020 a bioética proposta por Van Rensselaer Potter comemora seus primeiros cinquenta anos. Com a pandemia, pode-se dizer que a bioética global de Potter, em que reconhece que a saúde humana depende diretamente da saúde social, ambiental e cultural, tornou-se ainda mais necessária, principalmente quando os números e as estatísticas de contaminados e mortes pela covid-19 mostram que as maiores vítimas são as populações mais vulneráveis. Em outras palavras, Potter nos mostra que a saúde humana depende da saúde da Terra.

Desde seus escritos iniciais Potter afirma que a humanidade necessita urgentemente de uma nova sabedoria, e que esta sabedoria deve nos oferecer o conhecimento de como usar o conhecimento. A afirmação de Potter provoca-nos para olharmos para o mundo da vida e da ciência com sabedoria, que pode ser entendida como a capacidade de usarmos da natureza e de seus recursos sem comprometer a sobrevivência futura. Trata-se de reconhecer que somos parte e fruto da natureza, e que temos, portanto, responsabilidade pela sua continuidade.

Assim sendo, podemos esperar que a bioética do presente e do futuro nos ajude a dialogar em vista de uma consciência planetária, na busca de novas bases e valores para o futuro da humanidade, na elaboração de alternativas que sejam mais inclusivas, na luta contra toda forma de discriminação e preconceito, e na defesa dos direitos humanos e da dignidade da vida da biosfera.

 

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