Como o desumano entrou no humano. Artigo de Marco Revelli

Foto: jeronimo Sanz - Flickr

21 Outubro 2020

O inumano é o Nada que se assenta no posto e no lugar da Humanitas: é a ruptura irreparável do mecanismo do reconhecimento dentro do gênero humano que chegou a constituir a própria cifra do tempo presente como tempo extremo do niilismo realizado.

A opinião é do cientista político italiano Marco Revelli, professor da Universidade do Piemonte Oriental “Amedeo Avogadro”, em artigo publicado em La Stampa, 20-10-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Segundo ele, "a Des-humanitas, assim como a In-humanitas, tornou-se hoje, para todos os efeitos, a trama íntima da nossa realidade. O nosso modo de ser homens em um universo de não homens".

Eis o artigo.

Foi suficiente que uma entidade biológica não humana – um vírus – entrasse no espaço celular do ser humano e se estabelecesse lá para que toda a superestrutura que constitui a arquitrave do nosso humanismo virasse de cabeça para baixo, impondo as regras impiedosas (e frias) da immunitas sobre as amigáveis (e calorosas) da communitas.

Foi o que ocorreu com o “valor de vínculo”, que agora se inverteu em desvalor, no momento em que a proximidade, de sinal de benevolência (de filantropia, ou seja, de amor pelo ser humano), torna-se ameaça (misantropia), e a distância entre indivíduos da mesma espécie se afirma como dever cívico.

O mesmo vale para o princípio de igualdade, carro-chefe da modernidade, subvertido no momento em que o homo aequalis das leis humanas é substituído pelo homo hyerarchicus do código genético da natureza (especialmente nas fases mais dramáticas da pandemia, quando foi necessário selecionar o acesso às terapias intensivas), e o humanum genus se rachou e se dividiu com base em classes de idade, estado de saúde, esperança de vida, ou seja, entre jovens e velhos, fortes e fracos, saudáveis e doentes.

Cristianismo, Renascimento, Iluminismo, apesar das suas diferenças, compartilhavam no fundo a mesma dupla certeza: que a humanitas entendida como philantropia, ou seja, “comunhão consciente”, era a essência do ser humano, em relação à qual o inumano se colocava como antítese externa, como uma espécie de “fora do ser humano”. E ao mesmo tempo que a humanitas era o conteúdo e o resultado de toda autêntica aculturação. Ou seja, nas palavras de Werner Jaeger, que ela era o resultado de toda Paideia bem-sucedida, entendida como educação do ser humano à sua verdadeira forma... Pois bem, essa crença se despedaçou há menos de um século.

Basta a citação de um breve texto. De um grande autor. Diz ele: “Nós viemos depois. Agora sabemos que um homem pode ler Goethe ou Rilke à noite, pode tocar Bach ou Schubert e, depois, na manhã seguinte, ir ao seu trabalho em Auschwitz”. São palavras de George Steiner e evocam o verdadeiro ponto de ruptura entre o antes e o (nosso) depois: Auschwitz. O lugar onde a longa história do pensamento ocidental sofreu a sua própria dilaceração catastrófica com a irrupção em massa do desumano no humano (irrupção no pensamento, não apenas na história, onde não seria um novum). O desumano teorizado e programado racionalmente (mediante aquela mesma ratio que, na visão clássica, deveria ter fundado a philantropia).

Com Auschwitz – por isso o assimilamos ao mal absoluto – não só o desumano se afirma como protagonista exclusivo, mas também ocupa o núcleo central do humano. E se instala nele como sua autêntica essência: como monstruosa metamorfose da Humanitas (a Elie Wiesel que se perguntava: “Onde estava Deus em Auschwitz?”, Primo Levi respondia perguntando onde estava o ser humano). E, ao mesmo tempo, se apresenta não como separado, mas interno ao processo de aculturação que constitui o aspecto não formal da Humanitas.

Em Auschwitz – é Steiner quem ainda nos lembra – a barbárie prevaleceu no próprio terreno do humanismo cristão, da cultura renascentista e do racionalismo clássico, portanto, não como negação antitética e extrínseca dele, mas como torção (e variante) interna ao seu desenvolvimento.

Mostrando, na forma mais feroz, aquilo que o homem ousou fazer ao Homem, como escreveu Primo Levi, Auschwitz ultrapassou irremediavelmente a linha que separa humano e desumano: revela o quanto e como o des-umano é, em sentido próprio e literal, “in-umano”, isto é, in-scrito no humano, parte dele, expressão da mesma raiz.

O inumano – foi o que afirmou Carlo Galli, com razão – não é baudelaireanamente o mal de viver (“Um oásis de horror em um deserto de tédio”). Nem a leopardiana estranheza da natureza ao humano (o nosso ser Nada para a Natureza).

“O inumano é, antes, a apresentação atual da possibilidade de que o homem nada seja para o outro homem, ou seja, que o homem considere nada o outro homem.” Ele constitui a refutação prática e mental do postulado segundo o qual todos os seres humanos participam da humanidade: uma queda do olhar (a incapacidade de se ver no outro). Do ouvido (a incapacidade de escutar a palavra do outro, o seu “relato”). Do pensamento (que o outro homem seja pensável como pensante, Sujeito e não só Objeto).

O inumano é o Nada que se assenta no posto e no lugar da Humanitas: é a ruptura irreparável do mecanismo do reconhecimento dentro do gênero humano que chegou a constituir a própria cifra do tempo presente como tempo extremo do niilismo realizado.

Mas, se isso for verdade, a Des-humanitas, assim como a In-humanitas, tornou-se hoje, para todos os efeitos, a trama íntima da nossa realidade. O nosso modo de ser homens em um universo de não homens.

O que mais nos mostra o espetáculo atroz, prolongado por anos, da morte em massa dos migrantes nos nossos mares, observado primeiro com pena, depois cada vez mais com desatenção, hábito, finalmente aborrecimento e até ódio, senão a imagem dessa redução do homem a nada para o outro homem?

E o caso mesquinho do acolhimento, primeiro sofrido com os dentes cerrados, depois pouco a pouco rejeitado, negado, hostilizado, em todo o continente europeu mobilizado para confinar novamente, contrastar, reduzir e possivelmente extinguir os fluxos, mesmo que por trás dessa extinção haja – nós sabemos disto, mas nos recusamos a pensá-lo – a morte em série? O que é isso senão a reproposição de algum modo homeopática do mesmo paradigma da desumanização do Outro experimentado então na escala anormal da excepcionalidade e que agora se tornou cotidianidade, mesmo que de uma forma menos chocante, por não ser guiada por uma explícita ideologia do desumano e por uma declarada intencionalidade da destruição?

 

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