Do Pará, a mãe de todas as Marias

Procissão do Círio de Nazaré | Foto: Thiago Gomes - Agência Pará

10 Outubro 2020

"O momento atual é bastante ambíguo, na esfera da religião católica. Qual o seu futuro, na geopolítica da fé? Qual o significado da festa popular numa sociedade moderna e urbana? As novas condições socioculturais abrem múltiplas perspectivas para o comportamento individual e coletivo. Essas mudanças repercutem na religião, pois suas manifestações não são independentes das relações sociais. Percebe-se, ainda, uma particular corrida em busca do sagrado, do mistério", escreve Mauro Passos, professor e pesquisador do Centro de Estudos da Religião “Pierre Sanchis” (CER) do Departamento de Antropologia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e Presidente do CEHILA-Brasil (Centro de Estudos de História da Igreja na América Latina)

 

Eis o artigo. 

 

Ó Virgem Mãe amorosa
Fonte de amor e de fé
Dai-nos a bênção bondosa
Senhora de Nazaré!
(Vós sois o Lírio Mimoso, Euclides Farias)

 

Festa do Círio de Nazaré (Foto: Cláudio Santos | Agência Pará)

 

No cenário da festa, vozes e imagens se integram numa conjunção solidária do presente com o passado. Assim, no reino mágico da lembrança, as parábolas da vida evocam presenças, pessoas, trajetos. A fé e a esperança, as mãos e os rostos, a devoção e o povo se unem num louvor à Virgem de Nazaré. É a festa do povo. Fertiliza os corpos, partilha mistérios e desejos. Momento de procissões, romarias e celebrações; das mais simples, feitas de casa em casa, até o grande dia da festa. O Círio de Nazaré é a partilha de uma devoção, tendo como ator o povo. O povo entra em cena com seus enlaces e o Pará se torna a “Casa de Todas as Marias”. É a festa entrando na vida.

 

Assim, é partilhada a devoção que Plácido José de Souza iniciou no século 18. Nossa Senhora de Nazaré, cultuada por esse devoto, amarra o coração daqueles que se deixam penetrar pela festa – fazer orações, buscar graças, participar de novenas, romarias e shows. O Círio de Nazaré saiu pela primeira vez em 1793 e continuou. Continua. Não só o que já foi, mas o que vem sendo para continuar a ser – vivendo de promessas com a Romaria Fluvial, a Romaria Rodoviária e o Círio das Crianças. A vitalidade da cultura do Círio ocupa a cidade de Belém com o Arraial de Nazaré. E Belém se transforma numa vasta sala de espetáculo que não requer bilhetes. Gratidão e memória alinham nostalgia e esperança.

 

Procissão do Círio de Nazaré (Foto: Agência Brasil)

 

Com um mês de antecedência, uma série de rituais reflete os gestos, atitudes de serviço e devoção do povo paraense. Tem sua grande expressão, com a procissão de Nossa Senhora de Nazaré, no segundo domingo de outubro. O almoço do Círio, neste dia, alimenta narrativas, comentários, encontros de amigos e pede passagem para desvendar territórios memoriais nos afazeres da vida. Na forma lúdica de “sociação”, o alvo é o encontro, a vida e a celebração.

 

Em pleno século XXI, o ser humano continua procurando a alternativa da fé para resolver seus problemas e expressar seus sentimentos. Altares repletos de flores enfeitam as casas. O cantinho torna-se sagrado: “A Virgem de Nazaré é minha hóspede”, comentou uma senhora em Belém. Tradição que vem de várias gerações, pois ela aprendeu a cuidar do altar com sua avó. Hoje, ao seu lado, está uma neta, futura responsável pelo pequeno santuário doméstico. Rezar e deixar a casa mais bonita, afinal o altar é um elo entre família, vizinhos e amigos. Lugar e momento de estreitar laços, suscitar emoções e aquecer lembranças. A Festa do Círio atravessa fronteiras e exala uma santa magia que entra não só pelos olhos, mas pela vida e fé. O Círio é uma linguagem que corre as ruas, praças e igrejas – “um carnaval devoto”, como escreveu o antropólogo Isidoro Alves, com os devotos e romeiros.

 

De raízes longínquas, a devoção à imagem de Nossa Senhora de Nazaré, de raiz portuguesa, foi cultuada por Plácido, um caboclo, e ganhou espaço e tempo. Cercada de ternura e mistérios, [his]tórias e lendas se confundem. Um elemento que não pode ser esquecido é a construção de uma tradição – pode ser inventada e construída. O segundo domingo de outubro é uma data particular no calendário da cidade de Belém – a devoção à Virgem de Nazaré. De origem latina: Devotio,onis, significa dedicação, ação de se dedicar, se consagrar. Tropo associado ao afeto, consagração, admiração, entre outros. Ação/ato de produção de vida. É uma ação amorosa que perfaz o tecido religioso e social por onde o povo caminha e reencontra forças diante da realidade agridoce do cotidiano. A devoção é a proteção da fé. Existe para fazer viver. É encontro e diálogo. A graça concedida (a dádiva) será recompensada com uma promessa, uma oração, uma amabilidade, no sentido “maussiano” (Marcel Mauss) de dar, receber e retribuir.

 

O momento atual é bastante ambíguo, na esfera da religião católica. Qual o seu futuro, na geopolítica da fé? Qual o significado da festa popular numa sociedade moderna e urbana? As novas condições socioculturais abrem múltiplas perspectivas para o comportamento individual e coletivo. Essas mudanças repercutem na religião, pois suas manifestações não são independentes das relações sociais. Percebe-se, ainda, uma particular corrida em busca do sagrado, do mistério. “Venho agradecer Nossa Senhora de Nazaré a graça de um emprego para meu filho, em São Luís”, relata a mãe de um jovem. Um caminho é aberto na intimidade de cada um – reencontrar na “Mãe de todas as Marias” o vigor da esperança. A confiança e a relação de carinho são alimentadas com o hino do Círio. A poesia, melodia e oração do hino – Lírio Mimoso – formam um laço que une corpo e alma – “com suavíssima essência / que sobre nós se derrama”. Ecos que abrem caminhos. Um tom encarnado.

 

Tradicional corda do Círio de Nazaré (Foto: Thiago Gomes | Agência Pará)

 

O Círio e a Virgem de Nazaré são símbolos de unidade dos paraenses. No abrigo de tantas manifestações, a festa é a reitora do caminho. Margeada pela utopia, seus contornos habitam mistérios do humano e do sagrado. Nos quilômetros (quase cinco) que separam a Catedral de Belém da Basílica de Nazaré, milhões de pessoas caminham, levam a corda e uma multidão se comprime nas calçadas e praças com uma intenção – olhar a Virgem de Nazaré. A corda avança com o movimento do corpo (de muitos corpos) para descansar a alma e fazer seu pouso no olhar da fé. Como afirmou o professor Eidorfe Moreira: “é uma pororoca humana”. Nesse cenário, vozes e imagens se integram numa conjunção do presente com o passado. Numa articulação entre o individual e o coletivo, a memória assume uma forma de saber, lembranças e comunhão. Muita vontade de viver dialoga em ritmos diversos, quando os brinquedos carregam os sonhos esculpidos das crianças na polpa do miriti. Essa palmeira da várzea materializa com arte e fé as representações que dão um colorido nas ruas, praças e caminhos. Entre a dureza do presente e o sonho de um futuro melhor, as emoções se desabrocham na poesia dos versos: “De vossos olhos o pranto / é como a gota de orvalho / que dá beleza e encanto / à flor pendente do galho”. Esse hino-poema fecunda a fé como um adejo na fila da esperança.

 

O Círio de Nazaré, A Festa da Santa ou a Festa dos Paraenses não é uma manifestação de piedade simplesmente repetitiva, mas um corpo vivo que possui uma dinâmica própria. Guarda sua lógica, associada à perseverança de valores e da fé cristã. Assim, um mundo povoado de mistério, com rituais próprios, encobre a vida, a história, a comunidade e a família. Uma agenda que amplia a permanência do presente. Encantamento compartilhado no horizonte da espera para alimentar novos começos.

 

 

Notas:

[1] ALVES, Isidoro. O carnaval devoto. Petrópolis: Vozes, 1980.

[2] PASSOS, Mauro. Espiritualidade e inserção na festa do Círio de Nazaré. XXVII Simpósio Nacional de História (ANPUH), Natal, 2013.

 

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