Amazônia: a grande maloca. Uma reflexão ética sobre a dimensão do cuidado e da responsabilidade

Foto: CNBB

03 Outubro 2020

"Na Amazônia é extremamente importante criar novos projetos educacionais comprometidos com o cuidado da biodiversidade existente na imensa região. Sem a perspectiva do cuidado e do princípio da responsabilidade, corre-se o risco de destruir complemente a Grande Maloca, patrimônio cultural da humanidade. Quantos interesses econômicos em torno da riqueza presente nesta terra, neste chão", escrevem André Luis P. Mousinho, licenciado pleno em Filosofia, bacharel em Teologia, pós-graduado Lato Senso em Ciências da Religião e professor de Filosofia do Ensino Médio da Rede Pública na cidade de Manaus, e Eder Vasconcelos, irmão franciscano, licenciado e bacharel em Filosofia, bacharel em Teologia, pós-graduado em Ciências da Religião, terapeuta holístico, massoterapeuta, autor e colaborador na formação pastoral, missionária e espiritual de leigos(as) de diversas comunidades paroquiais da Arquidiocese de Manaus.

 

Eis o artigo.

 

Introdução

O presente texto almeja no seu bojo apresentar o esboço de duas propostas éticas capazes de lançar luzes para a o futuro da Grande Maloca, a Amazônia. O texto se propõe a traçar o esforço de Leonardo Boff para fundar um ethos do cuidado e de Hans Jonas de criar um ethos da responsabilidade. Este ensaio sobre a dimensão do cuidado e da responsabilidade é inspirado na toada “Grande Maloca” do Boi Garantido do ano de 2008.

O Boi é uma expressão cultural da região amazônica que tem procurado valorizar e resgatar elementos culturais que foram esquecidos ou banidos do dia a dia da convivência dos amazônidas. Essa iniciativa é louvável e inovadora no campo educativo, cultural e ambiental. A música desperta dimensões adormecidas na alma do ser humano. O cuidado com as coisas, com as pessoas, com a criação revela a grandeza que o ser humano possui dentro de si. Revela também a capacidade de se relacionar com tudo e com todos de uma maneira mais respeitosa, carinhosa e responsável.

É sabido que todos os povos e culturas possuem dimensões cuidadoras da vida. Na Amazônia não é diferente. Apesar de muita negligência e destruição do bioma, existem iniciativas educativas no sentido de cuidar da Grande Maloca, a Terra. A atitude do cuidado se desdobra em preocupação, estima e senso de responsabilidade por todas as coisas. Quem cuida é imbuído de um grande espírito de responsabilidade, cooperação e solidariedade. Os seres humanos e todos os seres vivos dependem do cuidado para continuarem a existir no Planeta. O cuidado é hoje uma dimensão esquecida pela humanidade.

Assim, urge resgatar esta dimensão nobre para salvar a Grande Maloca, Casa Comum de todos. Cuidar da Grande Maloca é cuidar da vida em todas as suas nuances.

 

 

1. Grande Maloca x Planeta Terra

Na Amazônia é extremamente importante criar novos projetos educacionais comprometidos com o cuidado da biodiversidade existente na imensa região. Sem a perspectiva do cuidado e do princípio da responsabilidade, corre-se o risco de destruir complemente a Grande Maloca, patrimônio cultural da humanidade. Quantos interesses econômicos em torno da riqueza presente nesta terra, neste chão.

Qual deve ser o olhar da filosofia e da teologia e de outros saberes sobre a realidade amazônica? O olhar dos filósofos e teólogos sobre a Amazônia não deve ser um olhar só de admiração mas, sobretudo, um olhar capaz de gerar indignação frente aos projetos e organizações que visam apenas tirar proveito próprio em nome da preservação do meio ambiente. No interior da Amazônia existem muitos grupos ameaçadores para a fauna e a flora. Entre eles destacam-se: madeireiros, garimpeiros, grileiros, caçadores, pescadores e extrativistas vegetais. Além dos grupos invasores existem também aqueles que se autointitulam “defensores da Amazônia”. Será esta uma preocupação verdadeira com a crise que afeta drasticamente a natureza e os povos que habitam este espaço? É necessário examinar cautelosamente o que está por trás dessas motivações e preocupações.

 

 

Os filósofos e teólogos não podem ficar só na admiração (contemplação) mas provocar uma reflexão profunda e crítica sobre o futuro do “Pulmão do mundo”, isto é, da Amazônia, Grande Maloca que habita povos de todos os cantos do mundo. Esta reflexão precisa ser interdisciplinar, ou melhor, transdisciplinar e dentro de um espírito de cooperação e não de competição. Escolas, Igrejas, governos, movimentos sociais e outras instâncias devem encontrar soluções viáveis para que a vida na Amazônia continue existindo com toda a sua exuberância. A ética do cuidado e da responsabilidade são fortes convocações para salvaguardar a Grande Maloca. Caso contrário ela arderá em chamas nos próximos dias, meses, anos...

A toada do Boi Garantido faz uma analogia da Grande Maloca com o Planeta Terra, nossa Casa comum. Para nós a Amazônia é uma grande maloca, ou seja, “nossa mãe, nosso lar” que resiste aos “maus presságios”. Eis a letra da toada em sua íntegra:

 

A esperança rege a canção da Amazônia
Os povos da floresta e os pássaros entoam
Em uma sinfonia de amor
Sublimando a vida e o Grande Criador
oh ohh ohh oh ohhhhh
Mãe natureza ensina os povos a viver
A conviver em harmonia e sonhar
Mas não são todos que almejam aprender
E mesmo contra a correnteza vão remar
Se a humanidade não cuida da grande maloca,
A natureza dedilha tristes acordes
Tambores a ecoar pro o mundo não se acabar (2x)
Na fúria do mar e dos ventos
No gemido da Terra e da selva
E na seca dos rios da Amazônia a vida suplicará
Acauã anuncia maus presságios
A pátria das águas será a pátria dos sertões
Ianbú prenuncia noite longa
É preciso sonhar e pensar nas futuras gerações
Kunjubim canta o novo alvorecer
Paz e solidariedade precisamos semear
O Uirapuru dissemina o amor
E a canção do amor vamos entoar
Terra: a grande maloca que devemos cuidar enquanto houver amanhã
Terra: a grande maloca nossa mãe, nosso lar (2x)
Se a humanidade não cuida da grande maloca,
A natureza dedilha tristes acordes
Tambores a ecoar pro o mundo não se acabar (2x)
Na fúria do mar e dos ventos
No gemido das terras e da selva
E na seca dos rios da Amazônia a vida suplicará
Terra: a grande maloca que devemos cuidar enquanto houver amanhã
Terra: a grande maloca nossa mãe, nosso lar (bis)

 

 

A maloca é a casa, o habitat das famílias indígenas. Noutras palavras, a maloca é a morada dos povos indígenas. A expressão maloca também se refere a uma aldeia. A maloca é lugar da convivência humana, familiar. É espaço social onde se cultivam as relações de bem-viver. Mas é também o espaço privilegiado do cultivo dos princípios e valores originários de tal povo. Pode-se dizer que a maloca é lugar onde os povos indígenas aprendem a conviver entre si e com a própria mãe natureza.

A toada inicia com a palavra “esperança”. A esperança é a regente da canção que brota do coração do amazônida. As éticas tanto do cuidado quanto da responsabilidade são recheadas de esperança. Esperança de um Planeta onde todos os seres possam viver com liberdade, respeito e dignidade. Os povos e pássaros que habitam na Grande Maloca entoam, cantam em uma sinfonia de amor. Poesia? Utopia? Sonho? Diante do atual cenário projetado pela mídia mundial, a poesia alimenta a utopia.

Humanos e não humanos exaltam a beleza da vida e o grande Criador da Vida. No coração dos habitantes da floresta está o pleno desejo de viver em harmonia com a natureza. Como diz repetidas vezes o Papa Francisco: “Tudo está interligado”. A toada contém um apelo urgente: “mãe natureza ensina os povos a viver. A conviver em harmonia e sonhar”. O viver e o conviver estão bem explicitados nas duas éticas em voga. Cuidar com responsabilidade da biodiversidade presente na Amazônia é sem dúvida o grande convite da música. Pois sabe-se que “a biodiversidade representa a diversidade da vida em todas as suas formas”[1].

 

 

As éticas do cuidado e da responsabilidade são justamente para apontar caminhos para uma convivência menos conflituosa e mais pacífica, harmoniosa e integradora da vida. “Mas não são todos que almejam aprender”, a conviver cuidadosa e responsavelmente com a Grande Maloca. Porém, “se a humanidade não cuida da grande maloca. A natureza dedilha tristes acordes. Tambores a ecoar para o mundo não se acabar”.

A grande maloca tem dedilhado tristes acordes pela falta de cuidado e responsabilidade. Os tristes acordes das queimadas, das mudanças climáticas, e dos extensos desmatamentos etc. Segundo Leonardo Boff, “cuidar é mais que um ato; é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção, de zelo e desvelo”.[2] A música faz uma clara constatação: “Na fúria do mar e dos ventos. No gemido da Terra e da selva. E na seca dos rios da Amazônia a vida suplicará”. Quantas catástrofes ambientais provocadas pelo mundo afora pela falta de consciência ecológica enraizada no princípio cuidado-responsabilidade.

“É preciso sonhar e pensar nas futuras gerações”. Este fragmento da toada está em perfeita consonância com a proposta de Boff: “Somos corresponsáveis pelo destino de nosso planeta, de nossa biosfera, de nosso equilíbrio social e planetário”.[3] Hans Jonas por sua vez comenta que “futuro da humanidade inclui, obviamente, o futuro da natureza como sua condição sine qua non”.[4] O futuro da humanidade depende do futuro da natureza. O futuro da natureza depende da atitude de cada ser humano.

 

Indígena no Rio Xingu (Foto: Ricardo Stuckert)

 

2. A origem da ética

O professor Mario Sergio Cortella diz que a “ética é aquela perspectiva para olhar juntos os nossos princípios e os nossos valores para existirmos juntos”.[5] Mas afinal, qual a origem da palavra ética? A palavra ética vem “do grego ethos, que até o século VI a.C. significava “morada do ser humano”. Ethos é o lugar onde habitamos, é a nossa casa. Ethos também significa “marca” ou “caráter”. Ethos é a morada do ser humano, é a fronteira entre o ser humano e a natureza”.[6] No dicionário de Filosofia a palavra ética é um termo polissêmico, sendo geralmente traduzida como “ciência da conduta”[7]. Dizendo de outro modo, ética é um conjunto de princípios e valores que rege a conduta de uma pessoa ou de um determinado grupo social. Nesse sentido, não é possível pensar e falar em ética sem pensar na convivialidade. Sanchez Vazquez vai mais longe afirmando que “a ética é a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade”.[8]

Mas afinal, qual é a contribuição da ética para a humanidade? Cortella responde: “a ética é, antes de mais nada, a capacidade de protegermos a dignidade da vida coletiva”.[9] Assim, a ética é um conjunto de princípios e valores que regem a vida, o comportamento, a conduta dos seres humanos em sociedade. Com outras palavras, é um modo de ser, de viver e conviver de forma cuidadosa, respeitosa e responsável.

 

3. Um ethos do cuidado

O teólogo e filósofo Leonardo Boff talvez seja o pensador que mais tem falado de um ethos do cuidado na atualidade. Em seus escritos procura cunhar as linhas gerais de uma ética do cuidado e da vida. Boff é um pensador que mescla saberes antigos e novos, capazes de fundar uma ética que tem como essência o cuidado com a vida em todos os seus aspectos.

Qual é a base fundamental para sustentar uma ética humana? Leonardo é categórico em responder: “Eu vejo que a base fundamental para sustentar uma ética humana é a ética do cuidado, a ética da compaixão, a ética da responsabilidade e a ética da solidariedade e cooperação”.[10] Essa compreensão do pensador brasileiro está profundamente enraizada na tradição hebreu-cristã. Cuidado, compaixão, responsabilidade, solidariedade e cooperação são expressões encontradas na tradição bíblica. Como teólogo cristão ele procurar ressignificar esses conceitos à luz da nova cosmologia e dos estudos recentes sobre a ecologia.

 

 

A Grande Maloca, a Amazônia, necessita urgentemente de uma ética que tenha como preocupação fundante o saber cuidar. Cuidar dos rios, dos peixes, da água, da terra e das pessoas etc. A proposta ética de Boff é um caminho para a problemática ecológica da Amazônia e do mundo. A ausência do cuidado deixa a vida ameada, fragilizada e com sérios riscos de ser até mesmo extinta do Planeta.

Na abertura da obra Saber Cuidar, Leonardo Boff expressa de forma clara a sua concepção de cuidado. Para ele “O cuidado é, na verdade, o suporte real da criatividade, da liberdade e da inteligência. No cuidado se encontra o ethos fundamental do humano. Quer dizer, no cuidado identificamos os princípios, os valores e as atitudes que fazem da vida um bem-viver e das ações um reto agir”[11]. Na era do avanço da tecnologia constata-se uma falta de senso de cuidado e responsabilidade para com a vida planetária. Os grandes avanços tecnológicos jamais podem perder de vista princípios, atitudes e ações de um reto agir. Sem um reto agir a vida fica profundamente desequilibrada e fragmentada.

Comentando a ética do cuidado, o teólogo dominicano Carlos Josaphat argumenta que “Leonardo Boff nos oferece o mais gentil e profundo manual de jardinagem sob o título Saber cuidar. Saber cuidar é o começo de tudo o que é digno de ser vivido. É a fonte da cultura das coisas e dos espíritos”[12]. O cuidado como dimensão criativa e dinâmica do ser humano é um indicador de que a técnica usada de forma impensada gera enormes danos à natureza. Diante da atual crise global o cuidado é uma crítica e ao mesmo tempo um novo paradigma ético à civilização. Garantir o futuro da Grande Maloca, a Terra constitui o fio condutor de seu modelo ético. Leonardo Boff acredita ser imperática uma ética que se desdobre em cuidado e reverência pela Terra e pela humanidade, ele diz:

Por isso, é imperativa uma ética do cuidado a ser vivida em todas as instâncias. Ela impõe uma re-educação da humanidade, para que possa ao mesmo tempo satisfazer suas necessidades com a exuberância da Terra e chegar a uma convivência pacífica com ela[13].

Na obra Ética da Vida, Boff expõe seu projeto ético como resposta ao princípio de autodestruição. O sonho, a utopia de uma nova sociedade, não está descartado. Boff é um grande sonhador e otimista em relação à sociedade hodierna. Suas palavras traduzem seu sonho e sua esperança:

 

Sonhamos com uma sociedade mundializada, na grande casa comum, a Terra, onde os valores estruturantes se construirão ao redor do cuidado com as pessoas, [...] e especialmente cuidado com a nossa grande e generosa Mãe, a Terra. Sonhamos com o cuidado assumido como o ethos fundamental do humano e como compaixão imprescindível para com todos os seres da criação[14].

 

Na atual sociedade líquida e de consumo, percebe-se um descuido generalizado. Descuido com a saúde, com os idosos, com as crianças, os jovens, com os rios, com os igarapés, com toda a criação. Se o descuido tem imperado, não resta dúvida que a humanidade precisa se re-educar para o cuidado. Utopia? Sonho? Boff nos recorda: “Cuidar é mais que um ato; é uma atitude”. O cuidado é uma atitude de responsabilização e de sensibilidade para com a Grande Maloca, a Terra. Como diz a filósofa italiana Luigina Mortari: “Cuidar da vida é, portanto, assumir o empenho de transformar o possível em atual, de modo a realizar uma vida que faça florescer o melhor no humano e que, como tal, seja digna de ser vivida”[15]. Cuidar da vida e fazê-la florescer apesar de tudo o que acontece.

 

 

4. A Ética da responsabilidade de Hans Jonas

Antes de fazer qualquer referência a Hans Jonas pergunta-se, quem é este pensador contemporâneo? Hans Jonas nasceu em 1903, na cidade de Mönchengladbach (Alemanha), e morreu em 1993, em Nova York. Foi aluno do filósofo Martin Heidegger. Emigrou para Israel em 1933, depois para o Canadá (1949) e posteriormente para os Estados Unidos (1955). Na década de 1970, interessou-se pelos problemas éticos que poderiam surgir a partir dos avanços da tecnologia e, em 1979, é publicada sua principal obra: O Princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica.

Na obra O Princípio Responsabilidade, Hans Jonas propôs um sistema ético que pudesse superar o relativismo predominante na sociedade atual, marcada pela conquista de um inusitado poder: o da tecnologia moderna. Qual o principal objetivo do Princípio Responsabilidade? Hans Jonas fundamenta com clareza uma ética para as gerações futuras almejando salvaguardar a vida do Planeta na era tecnológica. Dizendo de outro modo, Hans Jonas apresenta de forma sistemática uma tentativa de configurar uma ética para a civilização tecnológica com ênfase na problemática ambiental.

Carlos Josaphat na obra Ética Mundial tece um comentário enriquecedor sobre a filosofia de Hans Jonas, ou melhor, sobre o paradigma ético apresentado pelo filósofo alemão. Josaphat diz:

 

Precisamente em torno do tema dessa nova responsabilidade, o filósofo Hans Jonas procurou abrir os olhos dos cientistas, dos filósofos, dos políticos sobre a mudança radical que se opera na humanidade e na ética. A ética da vida humana, vegetal e animal surge hoje simplesmente como o problema inadiável da sobrevivência, sobretudo da sobrevivência na felicidade e na dignidade do planeta.[16]

 

 

Hans Jonas tem plena consciência de que a ação humana, tecnologicamente potencializada, pode ferir irreversivelmente a natureza e o próprio ser humano. Por isso, sua busca inquieta em apresentar uma ética relacionada com a natureza das coisas que surgiram com a modernidade e pós-modernidade. Segundo ele, é urgente que

 

[...] uma ética que não mais se baseie sobre a autoridade divina tem que fundamentar-se em um princípio que possa ser descoberto na natureza das coisas para que não seja vítima do subjetivismo ou de outras formas de relativismo. Portanto, enquanto a investigação ontológica extra-humana puder levar-nos para a teoria universal do ser e da vida, ela não se terá afastado realmente da ética, mas terá ido atrás de sua fundamentação possível.[17]

 

A ética de Jonas pretende responder aos desafios da civilização técnico-científica. Hans Jonas não é contrário ao avanço tecnológico. Porém, sua preocupação é com o uso inadequado da tecnologia. O mau uso da tecnologia pode comprometer radicalmente a sobrevivência da vida na Terra. O imperativo ético elaborado por ele lembra o reto agir pessoal que esteja em conformidade com a autenticidade da vida planetária.

 

 

Em O Princípio Responsabilidade ele sugere um novo imperativo ético para a civilização tecnológica, a saber: “aja de tal modo que os efeitos da sua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra”[18]. O imperativo ético proposto por Hans Jonas parece se adequar às mais diversas situações causadas pela crise ambiental, que afeta drasticamente a Amazônia, o mundo. A responsabilidade com o futuro da Grande Maloca depende exclusivamente de seus habitantes.

A partir de uma interpretação existencial dos fatos biológicos, Jonas desenvolveu os fundamentos ontológicos para uma ética de responsabilidade para com o futuro do planeta Terra e das gerações vindouras. Por isso ele afirma que é necessário que se garanta a “existência da humanidade em um ambiente satisfatório”[19].

 

Mineração na Amazônia compromete o meio ambiente (Foto: IBAMA)

 

A preservação e a manutenção da vida não é reservada apenas aos humanos enquanto humanos. Tendo em vista o princípio ético cunhado por Jonas, pergunta-se: de quem é a responsabilidade primordial de cuidar da humanidade? O imperativo de Jonas que recai sobre os humanos é o que lhes confere especial responsabilidade. A obrigação dessa responsabilidade recai sobre os homens e mulheres, pois, “dentro do mundo conhecido, a capacidade para esta, como para qualquer outra ideia, se manifesta unicamente no humano”[20].

Na obra O Princípio Vida, Hans Jonas aponta para o risco da divisão concebida pelo pensamento cartesiano. Descartes em o Tratado do mundo escreve em seu projeto fundamental: “Tornar o homem senhor e possuidor da natureza”. Jonas tece uma crítica a Descartes; ao colocar o “homem” como superior à natureza, ele estaria impossibilitando a integração do Ser na totalidade da existência, criando um abismo entre ele e o resto da existência[21]. Esta ideia de Descartes já foi superada, mas ainda sobram resquícios dela na mente daqueles que só pensam em levar vantagem com a exploração.

Hans Jonas encerra seu livro Matéria, espírito e criação, com estas palavras:

 

Preocupemo-nos com nosso planeta. Independentemente do que possa se passar fora de nossos limites, é aqui que se decide nosso destino e, com ele também, o destino da aventura da criação, que se encontra em nossas mãos, podendo ser por nós zelado ou destruído. Cuidemos dele, como se fôssemos, de fato, os únicos do universo[22].

 

Neste fragmento Hans Jonas faz um apelo a todos os seres humanos: “Preocupemo-nos com nosso planeta”. Preocupemo-nos com a nossa Grande Maloca. “Cuidemos dele, como se fôssemos os únicos do universo”. Cuidemos dela, a Grande Maloca, como se fôssemos os únicos filhos e filhas da Amazônia, Casa Comum de índios, negros, brancos, caboclos, mestiços e tantas outras etnias que fazem dela seu grande habitat.

 

 

Conclusão

Assim, Leonardo Boff e Hans Jonas tentam responder aos desafios da articulação de duas éticas, uma tendo como foco o cuidado, e a outra, a responsabilidade solidária capaz de servir como orientação para o agir humano face à problemática ambiental mundial. Suas propostas éticas de cuidado e responsabilidade para com as gerações futuras têm em vista a sobrevivência planetária. Em sua principal obra, O princípio responsabilidade, Hans Jonas traça os caminhos para a formulação de uma ética da sustentabilidade, fundado no princípio da responsabilidade. Leonardo Boff em seus escritos recentes não deixa de refletir sobre o cuidado, ethos essencial do humano. Cuidar da Terra e da humanidade constitui a essência da ética de Boff. Tudo o que vive e respira tem direito de existir.

A ética de Hans Jonas significa a ilimitada responsabilidade por tudo que existe e vive. Em suma, a ética de Jonas é uma ética de responsabilidade para com o mundo, a Grande Maloca, num sentido agora muito mais amplo. Maria Clara Bingemer ao apresentar a obra do filósofo judeu diz: “Ao formular, então, o seu imperativo de responsabilidade tornado princípio, Jonas está pensando menos no perigo da pura e simples destruição física da humanidade, mas sim na sua morte essencial, aquela que advém da desconstrução e a aleatória reconstrução tecnológica do homem e do ambiente”.

Resumindo, Leonardo Boff e Hans Jonas, através de suas pesquisas, estudos, buscam intensamente a restauração do propósito e do significado para a vida, não somente para a vida humana, mas para toda espécie de vida orgânica. A Terra, a Grande Maloca, é um superorganismo vivo denominado Gaia, Pacha Mama que merece continuar existindo com exuberância para as futuras gerações.

 

Notas:

[1] 3 BINDÉ. Jérôme. Fazendo as pazes com a Terra: Qual o futuro da espécie humana e do planeta? São Paulo: Paulus, 2010, p. 89.

[2] 4 BOFF, Leonardo. Saber cuidar. Ética do humano – Compaixão pela terra. Rio de janeiro: Vozes, 2011, p. 33.

[3] 5 BOFF, Leonardo. Ética da vida. Rio de Janeiro: Sextante, 2005, p. 17.

[4] 6 JONAS, Hans. O princípio da vida: fundamentos para uma biologia filosófica. Petrópolis: Vozes, 2004. p.272.

[5] 7 CORTELLA, Mario Sergio. Qual é a tua obra? Inquietações propositiva sobre gestão, liderança e ética. Rio de Janeiro: Vozes, 2008, p. 105.

[6] 8 Ibid. p. 106.

[7] 9 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.380.

[8] 10 VÁZQUEZ, Adolfo Sanchez. Ética. 15.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. p.12.

[9] 11 CORTELLA, Mario Sergio. Qual é a tua obra? Inquietações propositiva sobre gestão, liderança e ética. Rio e Janeiro: Vozes, 2008, p. 117. 

[10] 12 Mundo Jovem. Ano XLI. N. 2373, Junho de 2003. p. 4.

[11] 13 BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano-compaixão pela terra. Rio de Janeiro: Vozes, p. 11.

[12] 14 JOSAPHAT. Carlos. Ética Mundial: Esperança da humanidade globalizada. Rio de Janeiro: Vozes, 2010, p. 451. 

[13] 15 BOFF, Leonardo. Ética da Vida. Rio de Janeiro: Sextante, 2005. p. 61.

[14] 16 Ibid. p. 13-14.

[15] 17 MORTARI, Luigina. Filosofia do cuidado. São Paulo: Paulus, 2018, p. 23. 

[16] 18 JOSAPHAT. Carlos. Ética Mundial: Esperança da humanidade globalizada. Rio de Janeiro: Vozes, 2010, p. 443.

[17] 19 JONAS Hans. O princípio da vida: fundamentos para uma biologia filosófica. Rio de Janeiro: Vozes, 2004, p. 272. 

[18] 20 JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006. p.47.

[19] 21 JONAS, Hans. O princípio responsabilidade, p.232-233.

[20] 22 JONAS, Hans. O princípio da vida, p.271.

[21] 23 JONAS, O princípio da vida, p.31 e p.223. 

[22] 24 JONAS, Hans. Matéria, espírito e criação. Rio de Janeiro. Vozes, 2010, p. 76.

 

Referências:

BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano-compaixão pela terra. Rio de Janeiro: Vozes, 2011.

BOFF, Leonardo. Ética da Vida. Rio de Janeiro: Sextante, 2005.

BINDÉ. Jérôme. Fazendo as pazes com a Terra: Qual o futuro da espécie humana e do planeta? São Paulo: Paulus, 2010.

CORTELLA, Mario Sergio. Qual é a tua obra? Inquietações propositiva sobre gestão, liderança e ética. Rio e Janeiro: Vozes, 2008.

JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.

JOSAPHAT. Carlos. Ética Mundial: Esperança da humanidade globalizada. Rio de Janeiro: Vozes, 2010

JOSAPHAT. Carlos. O princípio vida: fundamentos para uma biologia filosófica. Petrópolis: Vozes, 2004. p.272

JOSAPHAT. Carlos. Matéria, espírito e criação. Rio de Janeiro. Vozes, 2010.

MORTARI, Luigina. Filosofia do cuidado. São Paulo: Paulus, 2018.

VÁZQUEZ, Adolfo Sanchez. Ética. 15.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.

Mundo Jovem. Ano XLI. N. 2373, Junho de 2003.

 

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