Livro entrelaça a prática eucarística com as realidades sociais, econômicas e ecológicas

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11 Julho 2020

"Este sistema alimentar rompido e a atual crise ambiental exigem que tomemos a Eucaristia como uma fraternidade fundamental de refeição. Isso inclui reconhecer-nos como comunidade reunida, vocacionada a agir contra os males políticos e sociais do mundo. Para isso, precisamos nos reunir ao redor de uma mesa comum, onde nos engajemos não só em rituais, mas também no serviço diaconal a todos", escreve Marian Ronan, professora e pesquisadora de estudos católicos no Seminário Teológico de Nova York, seminário de maioria afro-americana em Manhattan, e autora e coautora de sete livros. O artigo foi publicado por National Catholic Reporter, 08-07-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

Eis o artigo.

Título: The Meal that Reconnects:
Eucharistic Eating and the Global Food Crisis
Autora: Mary E. McGann
Liturgical Press
256 páginas

Há uma ironia na publicação de um livro sobre a Eucaristia como uma “Refeição que liga / conecta” quando, devido à crise de covid-19, muitos de nós não têm acesso físico a essa refeição, embora, em algumas regiões, as igrejas estejam sendo reabertas.

Depois de registrar essa ironia, no entanto, li o importante artigo de Michael Pollan, intitulado “The Sickness in Our Food Supply”, [1] que descreve os rompimentos nas cadeias globais de produção que acompanham a pandemia. Foi então que reconheci também a importância de uma teologia que liga, com grande clareza, a Eucaristia à crise alimentar em curso, visibilizada pela pandemia.

Em The Meal that Reconnects (A refeição que religa, em tradução livre), a Irmã Mary E. McGann – da Congregação do Sagrado Coração de Jesus, professora de estudos litúrgicos na Faculdade Jesuíta de Teologia, da Universidade Santa Clara, em Berkeley, Califórnia – sustenta que uma forma de superar esses rompimentos e as múltiplas injustiças decorrentes é recuperando-se o caráter fundamental de refeição da celebração eucarística, como se vê claramente nos Evangelhos e conforme praticado nas reuniões da comunidade primitiva cristã. E uma dimensão essencial dessas “fraternidades de refeição” era a de alimentar os pobres e famintos, não só adorar um Deus transcendente ou encenar a Santa Ceia.

McGann divide em três partes este seu entrelaçamento extraordinário da prática eucarística cristã com as realidades sociais, econômicas e ecológicas atuais. Na primeira parte, “Eating as Relationship” (Comer como uma relação), a autora mostra que a maneira como comemos é uma manifestação do tipo de relação que temos com o mundo, seja de consagração, seja de profanação. O modo como comemos pode impactar enormemente nas relações entre o passado e o presente, bem como entre as comunidades.

A agricultura industrial é um exemplo perfeito dessa profanação, ao dissociar o ato de comer de suas dimensões humana e biológica. O papel essencial do alimento no ministério de Jesus, como vemos particularmente nos evangelhos de Lucas e João, nos dá uma alternativa revolucionária a essa dessacralização industrial, a essa desencarnação do ato de comer. O terceiro capítulo do livro, ao detalhar a centralidade dos banquetes na comunidade cristã primitiva e a ênfase desses banquetes na multiplicação de Jesus e na partilha de alimentos com os pobres, é, para mim, uma das partes mais reveladoras do estudo de McGann.

A parte dois, “Broken Relationships: Dining in the Industrial Food System” (Relações rompidas: comer no sistema industrial de alimentos), analisa o método corporativo / industrial de produção de alimentos no cerne das relações alimentares fraturadas de hoje. Nessa seção, McGann documenta como, após a Segunda Guerra Mundial, uma coalizão de empresários, economistas e especialistas em relações públicas desencadeou uma mudança das práticas agrícolas holísticas seculares na direção de um controle do mercado inteiro de alimentos, controle assumido por algumas poucas fazendas industrializadas. Isso levou à globalização da produção alimentar, à produção de cada vez mais alimentos processados e à desregulamentação do comércio. Tudo isso contribuiu para a cultura pouco saudável do fast-food, de lanches e refeições intermináveis em frente aos aparelhos de TV, e não em volta da mesa.

Outros efeitos da mudança para a agricultura industrial incluem: um declínio significativo na produção mundial de alimentos provocado pela destruição do solo; danos aos recursos hídricos decorrentes de escoamentos químicos; fome agravada pela mudança de culturas alimentares para uso na produção de biocombustíveis; aumento das emissões de CO2 com o transporte de alimentos não cultivados localmente; aumento da temperatura planetária com o desmatamento para a agricultura comercial; aumento dos preços dos alimentos; e o abuso de trabalhadores rurais em todo o mundo. Como alternativa, McGann propõe uma agricultura regenerativa: local, em pequena escala, de base orgânica e comprometida com a justiça alimentar para todos, e não com o lucro.

Mas como provocar uma transformação tão radical? A parte três do livro enfoca precisamente na Eucaristia como um meio de reconexão diante da crise alimentar mundial e nas relações humanas e planetárias subjacentes que acabaram rompidas. Para isso, no entanto, nós cristãos precisamos reconstruir radicalmente a compreensão que temos da Eucaristia e das formas rituais nas quais a celebramos.

Em primeiro lugar, este sistema alimentar rompido e a atual crise ambiental exigem que tomemos a Eucaristia como uma fraternidade fundamental de refeição. Isso inclui reconhecer-nos como comunidade reunida, vocacionada a agir contra os males políticos e sociais do mundo. Para isso, precisamos nos reunir ao redor de uma mesa comum, onde nos engajemos não só em rituais, mas também no serviço diaconal a todos. Também precisamos usar, como literalmente faziam os discípulos, um pão feito com grãos locais, não as hóstias industrializadas de hoje, e beber um copo de vinho produzido localmente.

E mesmo ao partilharmos essa refeição, precisamos demonstrar a abundância ilimitada da Terra, oferecendo alimento a todos, como faziam as comunidades cristãs primitivas, e não apenas o pão e o vinho consagrados. Por fim, esta fraternidade de refeição torna-se uma oferta em agradecimento a toda a criação, oferta que gerará uma “economia alternativa” por meio da celebração, educação e ação, que nos levará a abraçar a nossa integração terrena. É uma refeição que não só nos liga, mas nos religa, a Deus em todos.

Em uma resenha desse tamanho, é impossível fazer jus à riqueza da teologia eucarística de McGann e ao extraordinário leque de fontes que ela torna acessível ao construir seu texto. Fiquei particularmente impressionada com a integração matizada da encíclica do Papa Francisco, “Laudato Si’ – Sobre o cuidado da casa comum”, à parte final de seu estudo. Especialmente no último capítulo, onde aborda possíveis maneiras de revitalizar a integração ecológica, social e econômica da alimentação eucarística, o envolvimento de McGann com as obras de Norman Wirzba, Ched Myers, William Cavanaugh, Wenonah Hauter e muitos outros, expandiu grandemente a minha lista de leituras acadêmicas.

No entanto, livro algum, nem mesmo uma publicação esplêndida como The Meal that Reconnects, é escrito sem falhas pontuais. Neste caso, a ânsia da autora em tornar o seu debate acessível parece resultar em um uso exagerado de listagens numéricas em várias partes de seus argumentos. Fazer isso ocasionalmente é uma ideia sensata, mas fazê-lo com muita frequência, como McGann faz, corre o risco, às vezes, de confundir ao invés de esclarecer o material. Entretanto, à luz da muito necessária contribuição dada por The Meal that Reconnects, tal problema é bastante trivial.

 

Nota:

[1] “A doença em nossa cadeia alimentar”. Disponível aqui em inglês.

 

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