Religião remixada

Mais Lidos

  • “Os israelenses nunca terão verdadeira segurança, enquanto os palestinos não a tiverem”. Entrevista com Antony Loewenstein

    LER MAIS
  • Golpe de 1964 completa 60 anos insepulto. Entrevista com Dênis de Moraes

    LER MAIS
  • “Guerra nuclear preventiva” é a doutrina oficial dos Estados Unidos: uma visão histórica de seu belicismo. Artigo de Michel Chossudovsky

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

06 Julho 2020

Costuma-se dizer que vivemos em uma era sem Deus – que a sociedade ocidental é secular e “pós-cristã”. De fato, está acontecendo algo mais sutil: continuamos “religiosos”, mas a espiritualidade é pessoal e ilusória – e externa ao status quo institucional.

O comentário é de Tara Isabella Burton, jornalista que escreve sobre religião e secularismo para a National Geographic, o Washington Post e o New York Times. O artigo foi publicado por The Tablet, 02-07-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Vivemos em uma era sem Deus. Não é verdade? A narrativa cultural dominante, é claro, defende que sim. Antigamente, continua essa narrativa predominante, nós – pelo menos, nós no Ocidente moderno – vivíamos em uma era religiosa; além disso, vivíamos em uma era especificamente cristã.

Durante séculos – de fato, milênios – as pessoas estavam unidas pelas suas crenças, pelos seus valores compartilhados, pelo seu investimento compartilhado em uma comunidade repleta de apreciação pelo transcendente e sob a sua influência.

As pessoas viviam suas vidas em diálogo com o sagrado. Estruturavam seus dias, semanas, meses, anos, em torno de rituais religiosos e de calendários litúrgicos. Acendiam velas nas igrejas. Rezavam pela libertação da doença e, às vezes, tentavam obter a cura com magias folclóricas ou feitiços à base de ervas. Acreditavam que objetos materiais – as relíquias dos santos, por exemplo – estavam carregados de energia espiritual, e que o mero fato de tocá-los poderia transformar seu corpo e sua saúde.

Para esses fiéis, o mundo era o que o teórico político e econômico alemão Max Weber descreveu como um “jardim encantado”: um mundo em que as fronteiras entre o sagrado e o profano são muitas vezes porosas, escorregadias e mal definidas.

Então, tudo mudou. Seja pelo alvorecer do Iluminismo europeu, ou pela ascensão do capitalismo e do industrialismo, ou por desenvolvimentos na ciência moderna, ou pelas guerras nos campi universitários dos anos 1950 e 1960 – diferentes versões da narrativa colocam o ponto de virada em diferentes lugares da história –, em algum lugar, de alguma forma, nós, no Ocidente, nos tornamos pessoas fundamentalmente, fundacionalmente seculares. De um jeito ou de outro, Deus morreu.

Em algumas versões, muitas vezes progressistas, dessa narrativa, libertamo-nos dos grilhões de superstições antiquadas e de uma servidão ultrapassada, libertando nossas vidas dos auspícios das instituições opressivas a fim de celebrar a plenitude do potencial humano na ausência de um supervisor divino.

Em outras versões mais reacionárias, caímos na apatia e na decadência espiritual, vagando letargicamente em um mundo desencantado, apodrecendo em nossa própria decadência moral.

O problema é que ambas as narrativas estão erradas.

É verdade que, à primeira vista, somos muito menos religiosos do que há 50 ou 100 anos. Nos Estados Unidos, pelo menos, os números são impressionantes. Cerca de um quarto dos estadunidenses agora dizem que são “não afiliados religiosamente”. Entre os jovens millennials e a Geração Z – aqueles nascidos aproximadamente depois de 1985 – esses números sobem para surpreendentes 36%. Entre os estadunidenses queer, essa porcentagem aumenta para quase a metade. Em 20 Estados dos EUA, os “nones” religiosos [sem religião] – como esse grupo é frequentemente conhecido – compõem o maior bloco religioso. Apenas 22% dos estadunidenses se casaram em um local de culto religioso em 2017 – uma queda em comparação com os 41% de 2009. E cerca de 30% dizem que não querem um funeral religioso quando morrerem.

Mas, olhando um pouco mais de perto, os números contam uma história muito mais complicada. Os “não afiliados religiosamente” podem não ser religiosos no sentido organizado ou formal, mas – pelo menos nos EUA – são profundamente engajados espiritualmente, porém. Setenta e dois por cento deles dizem acreditar em alguma forma de poder superior, embora nebuloso, e quase 20% dizem acreditar no Deus da Bíblia.

Quarenta e seis por cento deles conversam regularmente com o poder superior. Treze por cento dizem que ele responde. Quase a metade acredita que foram protegidos por um poder superior. Trinta e oito por cento dizem acreditar na reencarnação.

Os não afiliados religiosamente – sejam eles quem forem – não são totalmente ateus ou cidadãos de algum mundo desencantado. Em vez disso, são espiritualmente interessados e engajados – mas apenas fazem isso fora dos canais religiosos tradicionais.

No entanto, a história do nosso panorama religioso contemporâneo em mudança não é apenas a história dos autoproclamados “nones”. É também uma história daqueles que se identificam como pertencentes a uma tradição religiosa estabelecida, mas cujas crenças, práticas e rituais sugerem uma abordagem mais eclética da fé.

Cerca de 30% dos autodenominados cristãos, por exemplo, dizem acreditar na reencarnação – algo que quase qualquer teólogo cristão ortodoxo diria que é incompatível até mesmo com a iteração mais liberalmente interpretada da doutrina da Igreja. Dos autoproclamados “espirituais, mas não religiosos” – distintos dos “nones” – 37% se identificam como protestantes, e 14%, como católicos.

Simplesmente olhar quem marca a opção “cristão” ou “judeu” em um formulário não é suficiente: muitas pessoas ainda podem se associar a uma tradição, mesmo que a sua teologia interna e o seu senso de autopercepção estejam em outro lugar.

A história mais ampla do nosso mundo “encantado” em mudança, portanto, não é apenas uma história sobre secularismo, descrença e desfiliação. Pelo contrário, é uma história de mudanças nas próprias atitudes religiosas: uma transição de uma cultura de “loja única” da filiação religiosa pública e pessoal, na qual os membros de uma determinada fé podem definir a si mesmos e às suas comunidades pelos seus dogmas, rumo a um bazar espiritual dinâmico, no qual os que aderem a uma fé, ou a fé alguma, constroem uma identidade espiritual pessoal voltada para dentro e misturando e combinando tradições e práticas que, segundo muitos, têm um apelo pessoal a eles.

Esse modo de pensar é firmemente anti-institucional e profundamente intuitivo, suspeito em relação à doutrina externa e à autoridade organizada, e baseado no eu afetivo – de seus desejos, seus instintos – como árbitro da verdade moral e espiritual.

No meu livro “Strites Rites”, eu chamo isso de “remixagem religiosa” [religious remixing]: não secularismo, nem fé tradicional, mas sim um espaço livre entre eles, em que uma geração de millennials (e Zoomers) famintos espiritualmente procura práticas, comunidades e fontes de sentido que ressoem pessoalmente para eles.

Eles costumam fazer isso especificamente dentro dos construtos do capitalismo consumista: a compra de produtos – aulas de ginástica, velas perfumadas, ervas de limpeza, grãos de café cultivados eticamente – impregnados, através de uma publicidade inteligente, de um senso de valor moral ou espiritual.

Algumas dessas “novas religiões” são explicitamente espirituais. A ascensão da bruxaria e do ocultismo modernos, por exemplo, está entre as mais predominantes novas espiritualidades atuais. Em 2014, havia cerca de um milhão de bruxas autoidentificadas – incluindo praticantes da Wicca, neopagãos mais amplos e praticantes solitários mais ecléticos – nos EUA: tornando-o um grupo maior do que os budistas estadunidenses e várias denominações cristãs.

Desde 2016 e da eleição de Donald Trump como presidente – uma força estimuladora do jovem ativismo progressista e do pensamento feminista – esses números só aumentaram, enquanto dezenas de jovens progressistas, muitos desiludidos com a aparente aliança do cristianismo (evangélico branco) com o Partido Republicano, adotaram o simbolismo retórico e quase feminista transgressivo da bruxaria como uma força explicitamente política e de oposição.

Alguns são mais políticos: o surgimento, por exemplo, da cultura da justiça social, com a sua visão escatológica de um mundo melhor e mais justo, e a sua linguagem cada vez mais codificada de justiça, arrependimento e renovação, e o seu potencial de desencadear o tipo de reuniões catárticas em massa que vimos nos EUA e no mundo nas últimas semanas.

Da mesma forma, a ascensão do seu inverso político: o atavismo reacionário – dos fãs de Jordan Peterson às alas extremas da alt-Right – que buscam no levantamento de pesos, nas dietas da carne e na frenologia amadora um retorno a uma era imaginária de gênero essencial e de heroísmo masculinista.

Alguns também são totalmente individualistas: o surgimento, por exemplo, da cultura do bem-estar, com foco na melhor “autoajuda” encapsulada em caras aulas de exercícios como o SoulCycle, caros produtos de saúde como as saladas Sweetgreen ou objetos do site de Gwyneth Paltrow, Goop e onerosas rotinas de beleza e “limpeza” em várias etapas, ou o tecnoutopismo hiperlibertário do Vale do Silício: com a sua visão da eficiência como o ápice da conquista humana, na qual todos podemos alcançar nossos desejos mais profundos com o toque de uma tela.

No entanto, o que todas essas “novas religiões” têm em comum é uma desconfiança compartilhada em relação ao status quo cívico, religioso e institucional. Elas celebram, de diferentes maneiras, a virada interior, a possibilidade humana de autocriação e de autoimaginação, reescrevendo “roteiros” de comportamento e encontro humanos, e de levar uma vida espiritual pessoal e sob medida. Elas compartilham uma relação de amor e ódio com o capitalismo neoliberal, dentro do qual elas existem constantemente em diálogo: ao mesmo tempo ansiando por autenticidade além das instituições corporativas que elas tanto desprezam e comprando os produtos (dos suplementos anunciados pela Infowars, de Alex Joes, aos da Sex Dust indicados por Gwyneth Paltrow: os dois são quimicamente idênticos) que reificam e afirmam essas novas filiações de grupo. Elas celebram o desejo, o anseio, a conquista individuais: às vezes confundindo a linguagem da resistência política com os mantras individualistas da autoajuda.

Não vivemos em um mundo sem Deus, nem em um mundo secular, nem mesmo em um mundo desencantado. Mas vivemos, sim, em um mundo em que a fome espiritual e a ordem capitalista existem em tensão perpétua: um mercado espiritual fervilhante no qual cada vez mais pessoas, desiludidas pelas instituições civis, eclesiásticas e econômicas que elas acham que fracassaram com elas, não têm outra escolha senão “comprar”: ao mesmo tempo, tentando criar suas próprias identidades religiosas para além da máquina liberal, enquanto são envolvidas por ela.

No fim, a batalha fundamental da nova era pode não ser, digamos, entre bruxas progressistas e os atavistas de Jordan Peterson. Pode ser a batalha que sempre foi travada: entre Mamon e Deus.

Leia mais

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Religião remixada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU