Ética, saúde coletiva e pandemia. Artigo de Víctor Penchaszadeh

Foto: Reprodução Twitter @SPSobreTrilhos

30 Junho 2020

“As políticas de saúde para enfrentar a pandemia devem estar informadas, não somente pelo conhecimento científico mais atualizado, mas também pela ética. E para serem éticas, as políticas devem ter como valores orientadores o respeito à dignidade humana, a justiça e a equidade, e o reconhecimento de que os direitos humanos são indivisíveis e interdependentes. O direito à saúde não pode ser exercido em ausência dos direitos à educação, à alimentação, à moradia e ao trabalho, entre outros”, escreve Víctor Penchaszadeh, médico, mestre em saúde pública e genética médica, diretor do curso de pós-graduação em Genética, Direitos Humanos e Sociedade da UNTREF, em artigo publicado por Página/12, 26-06-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis o artigo.

 

A pandemia da covid-19 está afetando a humanidade inteira, em uma crise civilizatória maiúscula, em fronteiro com o apocalíptico. Não há verdades que concebamos como certas e incólumes que não estejam tropeçando por qualquer canto, entre elas as noções de Estado, justiça, progresso, poder econômico, democracia, distribuição da riqueza, prevenção de doenças, respeito à dignidade humana, ao meio-ambiente e mais.

Existem evidências de que a maioria das calamidades naturais que nos afetaram recentemente são resultados de atividades humanas que pouco tem de naturais. Entre essas calamidades incluem-se as epidemias de doenças não transmissíveis como a diabetes e a obesidade, fruto de práticas alimentícias insalubres promovidas pela agroindústria, e as recentes epidemias e pandemias virais (Ebola, SARS, gripe aviária, gripe suína e MERS), desencadeadas em contextos de exploração econômica descontrolada.

O sistema capitalista globalizado, que por um lado habilita 1% da população mundial a possuir 50% da riqueza global, por outro lado, altera ecossistemas e reduz a biodiversidade. Isso facilitou que certos vírus abandonem seus reservatórios naturais e infectem os seres humanos.

A pandemia de covid-19, o capítulo mais recente destes desastres ecológicos, foi antecipada com notável precisão pelo National Intelligence Council da CIA, em 2008, pelo Pentágono em 2017 e pela Organização Mundial da Saúde, em 2019. Apesar disso, os poderes políticos e econômicos, continuaram em muitos países estimulando privatizações dos sistemas de saúde, em vez de se preparar para prevenir e enfrentar a pandemia de forma oportuna e efetiva.

O anterior não foi uma conduta ética. A ética é filha da filosofia e depois de vários séculos, depois da Segunda Guerra Mundial, apareceu a bioética, como disciplina que promove a reflexão sobre o que está bem e o que está mal nas condutas humanas em questões da saúde e da vida.

Em seu começo, ocupou-se de problemas médicos individuais e das práticas dos integrantes do sistema de saúde, assim como a ética da pesquisa. Sem abandonar esses temas, a bioética evoluiu nas últimas décadas, particularmente na América Latina, em um enfoque mais social. Tomou como campos próprios de estudo e ação, entre outras coisas, as facetas éticas das ações de saúde coletiva, a equidade e a justiça dos sistemas de saúde e, mais no geral, o direito à saúde e à vida.

Também contribuiu à noção de que a existência e o bem-estar humano estão intimamente ligados a um ambiente saudável, em sintonia com saberes ancestrais de povos originários que defendem o direito à vida da mãe-terra. Essas novas preocupações pelas circunstâncias sociais da vida humana, levaram a bioética a adotar os postulados de justiça e direitos humanos como pilares de sua análise e ações, e a se tornar assim em uma disciplina mais social e política que biomédica. Procurou, mediante a reflexão interdisciplinar, identificar conflitos éticos nas condutas humanas e propor soluções.

Em consonância com a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos da Unesco, de 2005, a bioética passou a ser uma disciplina social baseada nos direitos humanos, que identifica injustiças sistêmicas, como os obstáculos à vigência real do direito à saúde, à depredação do ambiente, a deterioração do público em muitas ordens da vida, à geração de desigualdades sociais e à desvalorização da democracia.

A possibilidade de se proteger e se defender da covid-19 não é igual para todos: afeta desproporcionalmente mais os pobres, os socialmente marginalizados pelo racismo, homofobia ou as deficiências, os indígenas e os migrantes. Ademais, são mais vulneráveis as crianças, os idosos e os doentes crônicos de diversas enfermidades, entre outros.

As políticas de saúde para enfrentar a pandemia devem estar informadas, não somente pelo conhecimento científico mais atualizado, mas também pela ética. E para serem éticas, as políticas devem ter como valores orientadores o respeito à dignidade humana, a justiça e a equidade, e o reconhecimento de que os direitos humanos são indivisíveis e interdependentes. O direito à saúde não pode ser exercido em ausência dos direitos à educação, à alimentação, à moradia e ao trabalho, entre outros.

A ética em situação de pandemia compele às autoridades e a cada ator institucional ou individual a atuar com a menor imparidade possível da autonomia e das liberdades individuais, dando preponderância às necessidades coletivas sobre os interesses individuais. Exemplos de tais políticas são que os direitos à saúde e à vida tem maior hierarquia que o direito à propriedade, e que a atenção a comunidades e grupos vulneráveis historicamente postergados seja prioritária. Valores éticos, como equidade, justiça, solidariedade, transparência, proporcionalidade e reciprocidade devem estar presentes em forma universal em todas as políticas e ações sanitárias.

A aplicação desses princípios é dificultada na Argentina por desigualdades históricas na distribuição da riqueza, o crescente abismo entre ricos e pobres, e pelas falências do sistema público de saúde, historicamente subfinanciado e caracterizado entre elas, e com fraca autoridade central.

A chegada da pandemia veio a desnudar situações de injustiça social sistêmica muito profundas que existem desde muito tempo, e que são causa de muita doença, sofrimento e morte, particularmente entre os grupos mais vulneráveis. Isso não é ético.

O Estado tem uma dúvida ética com seus habitantes, que é garantir o direito à saúde com um sistema de saúde universal e gratuito com acesso a toda população e financiado adequadamente pelo Estado de forma equitativa, com critérios organizativos modernos e guiados pelos valores éticos mencionados.

Em sociedades democráticas o dissenso é parte da vida política e é legítimo que possa existir diferentes maneiras de enfrentar a pandemia. As experiências no mundo indicam claramente que além das medidas de higiene (distanciamento físico, lavagem das mãos, máscaras), a coluna vertebral do combate à propagação do vírus é a detecção precoce dos infectados, seu isolamento temporário e atenção médica, seguida do rastreamento de contatos e seu isolamento.

A queda nas economias, observada em todos os países, mais ou menos dependendo do caso, foi consequência da própria pandemia, que causa doenças e morte a milhões de pessoas, e não necessariamente devido a quarentenas. Infelizmente, interesses mesquinhos e espúrios estimulam a desinformação, o preconceito e as teorias absurdas da conspiração sobre a pandemia, particularmente sobre o valor do isolamento temporário. Geram confusão e medo em pessoas que não têm capacidade ou conhecimento para discernir sua falsidade. Isso não é ético.

A chegada da covid-19 no país contribuiu para despertar nossas instituições científicas, afetadas pelo neoliberalismo que prevaleceu nos últimos quatro anos. Com incrível vitalidade e energia, com objetivos, recursos e apoio precisos de uma clara liderança política, nossos cientistas colocaram à prova a ingenuidade proverbial que trouxe muitos cientistas argentinos ao exterior para o sucesso nas últimas décadas. Assim, estão sendo realizados testes rápidos de detecção de vírus, anticorpos, modelos nacionais de respiradores, uso de plasma convalescente e muitos outros desenvolvimentos, que apontam para uma soberania científico-tecnológica que a Argentina merece ter.

Não existem políticas e ações relacionadas à vida e à saúde que escapem ao escrutínio ético, como a avaliação ética da pesquisa em seres humanos, iniciada em 1948 com o código de Nuremberg. Nas últimas décadas, no entanto, o envolvimento da indústria internacional privada com fins lucrativos no desenvolvimento de novos medicamentos e vacinas prejudicou os direitos humanos dos participantes da pesquisa e o acesso equitativo a esses produtos da população.

Atualmente, os riscos éticos se multiplicam, entrelaçando-se com interesses políticos e econômicos, como demonstrado por muitos exemplos, a controvérsia sobre a hidroxicloroquina.

Da mesma forma, devido à urgência de se vacinar contra a covid-19, foi gerada uma corrida entre governos, empresas farmacêuticas e centros de pesquisa na qual os valores éticos podem ser anulados. Entre os riscos apontados estão os testes de vacinas em populações vulneráveis, a justificativa de inocular o vírus a voluntários pagos para provar a eficácia das vacinas e que o oportunismo ou o lucro econômico levam à aprovação prematura de uma vacina que não atende aos requisitos essenciais de eficiência e segurança. Por outro lado, o custo humano dos atrasos que poderiam impedir a dor se as vacinas fossem aprovadas mais rapidamente representa um dilema ético abrangente.

E, finalmente, um tópico extremamente preocupante: o risco de que o uso da tecnologia digital para controlar a pandemia, claramente útil para esse fim, seja seguido, após a pandemia, para o uso desse instrumento por empresas, instituições e governos, a fim de exercer controle político, social e econômico das ideias e comportamentos dos indivíduos e grupos aos quais eles pertencem, com uma clara perda de liberdade de pensamento e opinião, privacidade e democracia. Isso não seria ético.

 

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