“Os tecnomundos deixaram de ser virtuais”. Entrevista com Javier Echeverría

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19 Junho 2020

A editora Trea acaba de publicar “Tecnopersonas: cómo las tecnologías nos transforman”, um ensaio de Javier Echeverría e Lola S. Almendros, que analisa as novas tecnologias, a falta de liberdade existente nos ambientes digitais e uma nova forma de dominação social nascida em tais ambientes. Javier Echeverría explica a origem desta obra que, inclusive, inclui um capítulo sobre a COVID-19.

A entrevista é de Marcos Gutiérrez, publicada por La Voz de Asturias, 14-06-2020. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Como surge a semente de “Tecnopersonas: cómo las tecnologias nos transforman”?

O livro “tecnopessoas” parte de duas hipóteses minhas muito antigas: a dos três ambientes (“Los Señores del Aire”, 1999) e a da revolução tecnocientífica (2003). Além disso, analisa as consequências de algumas novas tecnociências do século XXI, que não existiam há vinte anos, e que hoje em dia são predominantes: os smartphones, as redes sociais, a inteligência artificial e o Big Data, por exemplo. Lola Almendros acrescentou seu conhecimento profundo das redes sociais e, em particular, sua crítica premonitória à noção de transparência, que Mark Zuckerberg havia preconizado para que os usuários entregassem ao Facebook, alegre e temerariamente, o principal de sua vida privada e íntima.

Quando ela e eu nos conhecemos em San Sebastián, por ocasião de um mestrado sobre filosofia, ciência e valores, surgiu a ideia de escrever um livro juntos, que quatro anos depois se tornou realidade. Ainda que nesse meio, já publiquei algum artigo acadêmico sobre tecnopessoas, além de dar conferências sobre o tema, assim como ela.

Na obra, são apresentadas noções de tecnopessoas e tecnomundos. O que querem dizer?

Os tecnomundos são os habitats onde as tecnopessoas se relacionam e interagem, por exemplo, uma rede social, mas também um filme na Netflix ou uma casa automatizada. Distinguimos três tipos de tecnopessoas: as pessoas que usam cada vez mais as tecnologias digitais e dependem mentalmente delas, os robôs (indústria 4.0, como se diz na União Europeia, deep learning, etc.) e os personagens literários, cinematográficos e de videogames que são considerados como ciborgues.

Um dos propósitos de nosso livro consiste em atualizar a proposta de Donna Haraway sobre os ciborgues. Quando nos centramos mais nas tecnopessoas que surgem a partir de organismos humanos vivos, como é o caso de milhões de usuários de internet e das redes sociais, distinguimos graus maiores ou menores de tecnopersonificação de cada um.

Por outro lado, cada usuário pode gerar várias tecnopessoas suas, em função das diversas plataformas e redes sociais em que estiver ativo. Em último termo, nossas tecnopessoas são sistemas de dados geridos a partir das “Nuvens” digitais. Esses dados são sistematicamente apropriados pelas empresas tecnológicas que gerem as redes sociais, assim como os serviços de acesso.

As grandes bases de dados são, hoje em dia, o motor do capitalismo informacional, no qual as tecnopessoas e seus dados são, antes de tudo, puras mercadorias. Os tecnomundos por excelência são as assim chamadas “Nuvens”, que são na realidade grandes fábricas de tecnopessoas e tecno-objetos, com a robotização dos processos de geração, processamento, distribuição e comercialização do que há nas supostas “Nuvens” em um grau muito elevado.

Por certo que manter uma “Nuvem” (ou grande Centro de Dados) funcionando nas 24 horas do dia tem um enorme custo energético. O Greenpeace previu em seu relatório de 2017 que tais “Nuvens” serão, em poucos anos, as indústrias que mais eletricidade consumirão entre todas, e com diferença.

Nós nos tornamos tão dependentes das tecnologias, que nem nos damos conta disso?

Eu vejo meninos e meninas carregados em seus carrinhos com a chupeta na boca e o celular na mão. Em casos assim, falo de tecnochupetas. O grave é que são nessas idades que se formam as redes neuronais, de modo que os aplicativos tecnológicos formam em grande medida as mentes dos meninos e meninas. As redes? É o que há!, respondem agora os nativos digitais. Princípio de realidade!

O mundo está cada vez mais digitalizado e os tecnomundos fazem parte de nossa paisagem digital. A natureza e os animais se tornam conhecidos primeiro através de suas imagens digitais, não por seus corpos orgânicos, salvo exceções, como talvez Astúrias. Nós falamos de tecnonaturezas para destacar essa naturalização da artificialidade. As tecnologias digitais são o mais natural do mundo e servem para divertir, mas também para ganhar a vida.

Os tecnomundos deixaram de ser virtuais. São plenamente reais e influenciam cada vez mais nossas vidas. Isso ocorre desde muito pequeninos. As mentes humanas estão sendo cunhadas pelas tecnologias digitais e, portanto, por aqueles que projetam, desenvolvem e atualizam essas tecnologias. As tecnologias não nos dominam. Aqueles que as criam e gerem, sim.

Em um epílogo acrescentado após a explosão da pandemia de coronavírus, falam da condição de tecnopessoa viral que o próprio vírus adquiriu. Existe também a COVID-19 e a TECNOCOVID-19?

A pandemia não foi gerada pelo vírus, mas pelos seres humanos que, com base em viajar massivamente e muito apertados em aviões, trens, metrôs, ônibus e carros, transmitiram o vírus para outras pessoas. Por isso, ainda que o vírus seja combatido medicamente nos hospitais e nas UTIs, como deve ser quando infectou organismos humanos, para combater a pandemia foram tomadas medidas “contra as pessoas”, por assim dizer. Foi preciso nos privar de liberdade de movimentos e nos confinar em nossas casas, o que produziu espanto social, no mínimo.

Para conseguir isso, apelou-se a técnicas políticas e jurídicas (declaração de Estado de Alarme, proibição de muitas atividades humanas e sociais, distribuição de competências entre comunidades autônomas, ERTEs, etc.), assim como à polícia (controle do confinamento, multas, detenções, etc.) e inclusive ao exército. Sobretudo, recorreu-se aos meios de comunicação, tanto tradicionais (imprensa, rádio, televisão), como às redes sociais. Graças aos meios de comunicação, que tiveram a COVID-19 como tema único, incutiu-se o medo no corpo da imensa maioria da população. E em algumas pessoas, autêntico pavor. Também houve boatos, notícias falsas, dados enviesados, lendas urbanas sobre a origem da COVID-19, etc.

Pensamos que a COVID-19, sendo em sua origem uma doença viral, gerou uma doença informacional muito importante (a chamamos de infodemia), sobretudo, foi vista sendo implementada e desenvolvida por múltiplos sistemas técnicos e tecnológicos, incluindo a elaboração de um ícone para tornar o coronavírus um personagem social, assim como diversas técnicas de demonização dos vírus em geral (apesar de ser natureza, não se deve esquecer).

Em suma: a tecnopolítica se apropriou da COVID-19 e da pandemia. A essa evolução do vírus, que é uma entidade biológica, não tecnopolítica, nem política, chamamos de TECNOCOVID-19. Traz um desenvolvimento político da pandemia baseado em objetivos políticos precisos, mas ocultos, muito diferentes dos objetivos propriamente sanitários. Isso se manifestou claramente na gestão dos dados, que experimentou vários giros, suscitando fortes debates políticos. Além dessa espécie de competição entre comunidades autônomas e cidades para ver quem geria melhor a crise sanitária.

Durante a pandemia, gerou-se uma dialética quase bélica em torno da emergência sanitária. A famosa “batalha” contra a COVID-19. Inclinou-se a criar uma espécie de personificação do coronavírus para conferir ao “público” o “rosto” de um “inimigo” que, por outro lado, é intangível?

O Chefe do Estado Maior [Espanha] que disse em março na televisão que contra o coronavírus todos somos soldados (continuaria sendo general, curioso), ainda não renunciou, nem foi retirado. Essa tentativa de militarização da sociedade não progrediu, por sorte. Mas o disciplinamento social que se promoveu no último mês de março, sim, foi uma realidade e, portanto, a perda parcial de liberdades. Com a desculpa da pandemia, surgiu um autoritarismo de novo cunho.

A respeito da conversão do coronavírus no inimigo público número 1, demonizar a natureza foi muito habitual na história da humanidade. Reação muito primitiva, portanto. E muito pouco racional. Por outro lado, Hobbes disse claramente que para unificar o Estado, não existe nada melhor que um inimigo comum. Pois bem, isso é o que se tentou com lemas como “venceremos este vírus” ou “todos unidos ou paramos”, etc. A publicidade tecnopolítica funciona assim. Recorre a slogans muito simples e que sejam aglutinadores socialmente, na avaliação dos especialistas em marketing social.

De minha parte, penso que o vírus não é o responsável pela pandemia, ainda que, sim, pela doença COVID-19, tal e como esta se manifesta em um corpo humano concreto. Trata-se de uma infecção viral, certamente grave, mas não de uma guerra. Militarizar a luta contra a pandemia tinha e tem uma clara intenção política. Isso se deve, como já disse, a que foram os seres humanos os responsáveis pela propagação do vírus e, portanto, da pandemia. A guerra está chegando, mas será uma batalha entre partidos e agentes sociais para exigir responsabilidades de pessoas físicas e jurídicas. Tecnopolítica, portanto.

No livro, não se recorre à tecnofobia, mas, ao contrário, adverte-se sobre o uso ou abuso que corporações e grupos de poder fazem dessas novas tecnologias.

No livro, defende-se a ampliação dos Direitos Humanos de 1948, como forma de combater o neofeudalismo dos Senhores do Ar e das “Nuvens” (Google, Apple, Facebook, Twitter, Amazon, Alibaba, etc.) e promover a democratização do terceiro entorno, que é necessário. Hoje em dia, nós, usuários e clientes dessas grandes empresas, somos súditos delas, quando não servos. Cada Senhor do Ar coloca as normas que quer em seu feudo informacional e marca as mentes humanas com os formatos que fabricou para suas plataformas tecnológicas, que devem ser aceitos imperativamente.

Em uma situação assim, compreende-se que surjam atitudes tecnofóbicas. Não é nossa postura. Ao contrário. Convidamos os usuários a se apropriar mentalmente das tecnologias digitais e as utilizar cada vez melhor, mas com o objetivo de emancipar tais usuários da dominação atual por parte dos Senhores das Nuvens. Há tecnologias para a dominação e tecnologias para a libertação, como as baseadas em software livre e em acesso aberto. Somos a favor das segundas e contra as primeiras. Por isso, nós nos declaramos dominofóbicos, não tecnofóbicos.

Por que o ser humano na Internet ou nas redes sociais tende a renunciar direitos, aceitar condições de uso ou compartilhar dados de um modo despreocupado, algo que na vida “real” nunca se imaginaria?

Em primeiro lugar, porque o mito romântico sobre a Internet, segundo o qual a rede é horizontal, ainda tem profunda influência. Em segundo lugar, por uma tendência tipicamente humana em se comportar majoritariamente como um animal de rebanho, confundindo socialização com moda e com fazer o que todos fazem. Em terceiro lugar, porque se segue pensando que quem tem o poder são os Estados e, portanto, deve-se exigir deles os direitos, o que não é certo no terceiro entorno.

Quando os usuários do Facebook pedirem a renúncia de Zuckerberg com a mesma energia em que pedem a renúncia dos chefes de governo, a democracia no terceiro entorno terá avançado algo, posto que será exercido o direito (não reconhecido) de criticar ao monarca absoluto em seu próprio feudo ou domínio. Então, começará a existir liberdade de expressão e de crítica. E talvez também de manifestação.

Em quarto e último lugar, não se pensa nas redes sociais como um espaço político, apesar de cada vez mais se constituírem assim. As políticas de censura de conteúdos e as expulsões de usuários díscolos aumentaram muito nos últimos anos de Facebook. Isso mostra que começa a existir certa conscientização política dos usuários das redes sociais.

No mundo atual, acabou com a tradicional divisão de poderes?

Nos Estados democráticos não. E ainda restam alguns, por exemplo, na Europa. Ao passo que no terceiro entorno, nesse novo espaço social, nunca houve divisão de poderes, pela simples razão de que nunca houve Estado democrático aí. Os poderes militares e financeiros operam em pleno rendimento nas redes telemáticas, desde os anos 1980. Somos muito poucos os que continuamos falando disso. Parece algo de tom ruim, existindo a ilusão da Internet, com milhares de mensagens “like” e com cada um tendo centenas de “amigos” e “seguidores” nas redes sociais.

No entanto, os conflitos nas redes sociais aumentam e são necessários juízes independentes, capazes de julgar por corrupção, prevaricação e abuso de poder, por exemplo, aos diretores das empresas que promovem e gerem as redes sociais. Também por machismo, claro. Alem disso, é necessário um Parlamento democraticamente eleito pelos usuários, por exemplo, no Facebook. Essa tecnoassembleia diria a Zuckerberg e a seus ministros como devem agir, que leis e normas precisam aplicar e que direitos dos usuários são inalienáveis. Isso não acontece agora, nem remotamente. Mas virá.

Esse é o projeto de Telépolis, que propus há mais de um quarto de século. Definir e aprovar democraticamente os direitos e responsabilidades dos usuários nas redes sociais é um primeiro passo para acabar com o feudo e civilizar o terceiro entorno.

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