Alfred Delp: como se faz um mártir jesuíta

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02 Junho 2020

Poucos dias após ser condenado à morte por traição pelos nazistas, um padre jesuíta começou a escrever uma obra de reflexão sobre Pentecostes permeada por um desejo de liberdade interior e um pedido de ajuda para se render àquilo que Deus havia planejado para ele.

O comentário é de Mary Frances Coady, publicada em The Tablet, 28-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Um dia em meados de janeiro de 1945, Alfred Delp escreveu à sua secretária a partir da sua cela na prisão de Tegel, em Berlim: “Eu comecei a escrever algumas reflexões sobre a oração de Pentecostes para você”.

A carta foi datada mais tarde de “após 11 de janeiro”. Essa data, 11 de janeiro, era significativa: uma linha de demarcação. Naquela tarde, depois do seu julgamento de dois dias por alta traição, Delp estava diante do juiz do “Tribunal Popular” do Terceiro Reich e recebeu seu veredito: culpado. A sentença: morte por enforcamento. Delp foi incluído na varredura de resistentes, presos após o atentado fracassado contra a vida de Hitler, em 20 de julho de 1944.

Nascido em Mannheim, filho de mãe católica e pai protestante, Delp havia sido criado e confirmado como luterano antes de ser recebido na Igreja Católica aos 14 anos. Ele ingressou nos jesuítas em 1926 e, após sua ordenação em 1937, trabalhou como jornalista da Stimmen der Zeit. Quando a revista jesuíta foi suprimida em 1941, ele foi nomeado reitor da Igreja de São Jorge, em Munique.

Ele fazia parte do “Círculo de Kreisau”, um grupo de resistência nomeado segundo o estado de origem do seu líder, Helmuth von Moltke. O grupo planejava uma Alemanha reconstruída, e tinham certeza de que essa seria a derrota final do Terceiro Reich.

O superior provincial de Delp, Augustin Rösch, havia sido trazido para o grupo como um canal para a hierarquia católica alemã e havia convidado Delp, um especialista em ensino social da Igreja, e outro jesuíta, Lothar König, para se juntar a eles. Delp explicou uma vez a importância da resistência com estas palavras: “Quem não tem a coragem de fazer história está fadado a se tornar seu objeto. Temos que agir”.

Os outros dois jesuítas haviam se escondido depois da tentativa de assassinato, mas Delp, esperando fazer seus votos finais como jesuíta no dia 15 de agosto, decidiu permanecer em sua paróquia em Munique. Naquele período, ele estava sendo submetido a um “interrogatório aprimorado” em uma prisão da Gestapo em Berlim e foi encontrado do lado de fora de sua igreja por dois funcionários e um carro que estava à sua espera quando ele saiu da missa da manhã do dia 28 de julho.

Sobre o interrogatório e a tortura que ele sofreu naquela noite, ele escreve: “Como eu rezei a Deus para que Ele pudesse enviar a morte para me libertar, por causa do sofrimento e da dor que eu não podia mais aguentar, e da violência e do ódio a que eu não estava mais à altura. Como eu lutei com Deus naquela noite e, finalmente, na minha grande necessidade, eu rastejei até Ele, chorando. Somente de manhã uma grande paz veio até mim, uma feliz consciência da luz, da força e do calor...”.

Depois de algumas semanas, ele foi enviado à prisão de Tegel para aguardar o seu julgamento. Outros membros do Círculo de Kreisau também estavam lá e criaram um sistema de batidas nas paredes das celas para anunciar uns aos outros os seus momentos de oração. Duas amigas criaram um método para contrabandear materiais de escrita para Delp através da lavanderia. Suas mãos estavam quase sempre algemadas. As semanas se tornaram meses. Dentro da sua pequena cela, Delp trabalhava em sua defesa e ficou frente a frente com a sua própria fragilidade. Ele chorava e rezava. Ele chegou quase ao desespero; outras vezes, ele se sentia inundado de graça.

“Uma coisa é clara e tangível para mim de uma forma que raramente foi”, escreve ele em uma carta de 17 de novembro. “O mundo está cheio de Deus. A partir de todos os poros, Deus corre até nós, por assim dizer.” Alguns dias depois, notando que Deus o despojava e purificava de uma forma que ele não esperava nem desejava, ele escreve que Deus “derrubou todos os meus bens das minhas mãos e deixou a minha autoconfiança se despedaçar...”

Todos os dias, ele era invadido pelo medo. Uma virada ocorreu na manhã do dia 8 de dezembro, quando ele recebeu uma visita surpresa do seu amigo Franz von Tattenbach. Esse jovem jesuíta havia sido indicado pelo seu superior provincial para receber os votos finais de Delp. Na pequena sala de encontro, sob a cuidadosa vigilância de um guarda da prisão, sem saber o que estava acontecendo, Delp pronunciou em voz alta a fórmula latina, com sua voz desfazendo-se em soluços.

Em uma carta a Tattenbach no dia seguinte, ele se desculpou por ter sido “mole”, mas fazer seus votos finais em circunstâncias tão extremas liberava novas energias nele. “Eu entreguei a minha vida completamente”, escreve ele na mesma carta. “As correntes externas não significam mais nada, agora que Deus me achou digno da vincula amoris (correntes de amor).”

Alguns dias antes, no Primeiro Domingo do Advento, ele havia começado a escrever uma reflexão sobre o significado da primeira estação do ano da Igreja. Agora começava uma continuação dessa reflexão, e, com o passar das semanas, seguiram-se meditações sobre o Natal e a Epifania.

Após o julgamento de janeiro e da sua condenação à morte, ele voltou à prisão de Tegel e à rotina diária de grilhões e de espera. De medo misturado com esperança. Ele se permitiu imaginar se poderia receber uma anistia, embora, escrevendo sobre o julgamento para seus amigos, ele disse: “A atmosfera é tão cheia de ódio e de hostilidade que não há dúvida sobre o que vai acontecer”. Mesmo assim, pelo bem de sua mãe, ele pediu aos que trabalhavam em seu nome que submetessem um recurso.

Novamente, novas energias foram liberadas. Ele começou a escrever meditações sobre a Ladainha do Sagrado Coração e a Oração do Senhor. Depois, voltou sua atenção para a antiga Sequência Veni Sancte Spiritus (Vinde, Espírito Santo) recitada ou cantada durante a missa da festa de Pentecostes. Sua reflexão sobre a oração – na qual ele descreve a terceira pessoa da Trindade como “o sopro da criação” – é permeada pelo anseio de uma liberdade interior e pelo grito de ajuda para se render ao que Deus quisesse.

A rendição não foi fácil para Delp. Ele frequentemente se irritava com a obediência jesuíta. Um companheiro jesuíta que havia estudado com ele o descreveu como um enfant terrible. Um adolescente que participara de suas palestras clandestinas para jovens católicos lembrava-se de um padre que transbordava de alegria de viver. Ele tinha uma mente excepcional.

“Esses últimos meses implodiram grande parte do meu trabalho; de acordo com o veredito, talvez a minha própria existência nesta terra deve chegar a um fim”, escreve em sua meditação sobre Pentecostes. “No entanto, houve milagres. Deus tomou meu caso inteiramente em suas mãos. Aprendi a enviar meu grito e a esperar a mensagem de encorajamento das colinas eternas.”

Durante a sua prisão, Delp usou várias metáforas para descrever a sua situação: ele era Pedro, com medo de se afogar nas ondas; ele era um equilibrista, mal conseguindo manter seu equilíbrio; ele era um alpinista, respirando o ar rarefeito. Cada vez mais, com o passar das semanas, ele era a semente que cai no chão. “A terra está sendo lavrada, e uma nova semente está sendo semeada”, escreve ele na meditação de Pentecostes.

Em sua reflexão sobre a penúltima estrofe da Sequência (“Dai aos vossos fiéis, que confiam em vós, os sete dons sagrados...”), Delp escreve: “Apesar do Espírito que habita em nós, muitas vezes nos sentimos cansados, assustados e desanimados, porque não confiamos o suficiente no Espírito de Deus, para que Ele possa fazer algo em nós. Acreditamos mais na nossa própria indignidade do que no impulso criativo de Deus”.

No dia 23 de janeiro, os camaradas de Delp do Círculo de Kreisau foram levados da prisão de Tegel e executados. Não se sabe por que Delp foi deixado. Rösch, seu superior provincial, havia sido capturado no início de janeiro e estava passando pelos mesmos duros interrogatórios que Delp havia sofrido e foi escarnecido com a perspectiva de que os dois seriam submetidos a um “julgamento jesuíta” (por alguma razão, isso não aconteceu, e Rösch seria libertado no fim da guerra).

A porta da cela de Delp foi aberta no dia 31 de janeiro, e ele foi levado a um carro que o levou à prisão de Plötzensee, o local da execução. Lá, ele escreveu seu nome em suas roupas com uma mão trêmula e vestiu as roupas da prisão. Ele foi autorizado a manter o seu terço. Quando o capelão da prisão foi visitá-lo, ele pediu uma cópia de “A imitação de Cristo”, de Tomás de Kempis.

No dia 2 de fevereiro, ele foi conduzido para fora de sua cela até a câmara, onde cinco ganchos de carne pendiam de uma viga. Ele foi levado para debaixo de um deles. Após sua morte, o capelão encontrou na cela de Delp o seu terço, a cópia de “A imitação de Cristo” e um par de óculos quebrados.

As palavras finais da meditação de Pentecostes de Alfred Delp são: “Tudo gira em torno da confiança, se estamos dispostos a receber a bênção criativa de Deus e deixá-la preencher as nossas vidas... Bem-aventurados os que têm fome e sede.”

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