Fidel Castro jesuíta vermelho

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29 Janeiro 2020

"O livro de Zanatta não é inteiramente dedicado às relações entre Fidel e a Igreja. Na verdade, quer ser (e é) uma biografia meticulosa de todos os aspectos da vida política do líder cubano", escreve Paolo Mieli, escritor italiano, em artigo publicado por Corriere della Sera, 28-01-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo. 

Se você quiser entender algo mais sobre a Cuba de Castro, deve ler um livro escrito há mais de um século, em 1883, por Eberhard Gothein: O Estado Social Cristão dos jesuítas no Paraguai (La Nuova Italia, 1987). O que os jesuítas do Paraguai têm a ver com Fidel Castro? A construção desses religiosos do século XVI-XVII, escrevia Gothein, aspira criar um "organismo político" para "fazer com que a autoridade do estado coincida totalmente com a da religião". O deles era um estado teocrático em que "apenas alguns lados do ser humano" eram cultivados e "a constituição política era usada para reprimir" todo o resto.

Aquele dos jesuítas tinha a ambição de ser um "estado moral", onde a "consciência da personalidade jurídica do indivíduo" estava completamente ausente. O "sentimento mais vivo" era "veneração pelos sacerdotes". Os índios das missões tinham "fé no poder milagroso do padre jesuíta", no qual percebiam "a intervenção permanente do sobrenatural". Os sacerdotes, por sua vez, compensavam o culto do qual eram objeto com "distinções morais", prêmios simbólicos e lisonjas em nome do estado. Estado que tinha o monopólio da educação das crianças. E, depois das crianças, vinham os outros: a vida do índio, escrevia Gothein, consistia em uma educação permanente. Ele era "treinado, supervisionado, punido, recompensado". Uma educação de tipo militar: a imagem do jesuíta que instruía na arte das armas e depois "marchava para a luta à frente do contingente de sua redução" era constitutiva daquele modelo. Mesmo em tempos de paz, quando a maioria estava destinada a trabalhar nos campos. Trabalho que era supervisionado pelos próprios sacerdotes. O crime não era "uma ilegalidade", mas uma "falha moral" e precisava ser punido, mesmo nos casos mais graves, com "uma penitência". Os infratores eram forçados a uma "reeducação". Em casos extremos, expulsos das aldeias.

Reprodução da capa do livro de Loris Zanatta

Loris Zanatta - no interessante Fidel Castro. L’ultimo “re cattolico” (O último "rei católico", em tradução livre, que chega às bancas na quinta-feira 30 de janeiro pela Salerno) - destaca as semelhanças entre o modelo do Paraguai de três séculos atrás e a Cuba da pós-revolução de 1959. Para Zanatta, o que na biografia de Tad Szulc (editada pela Sugarco) foi Fidel, o caudilho vermelho, é, ao contrário, um "rei católico". Em que sentido? Poderíamos nos surpreender - escreve Zanatta - pelo fato de que "o comunismo de Castro, seu universo moral e seu sistema social estejam imbuídos dessa herança antiga". Mas não de forma alguma surpreende que o último "soberano comunista" do século XX "seja herdeiro ideal dos monarcas católicos do passado". Soberano "em uma ilha que foi Espanha por séculos, em um ambiente familiar e social hispânico e católico". Tampouco é "sua reação desdenhosa à disseminação, em Cuba e na América Latina, dos valores e práticas do liberalismo anglo-saxônico e protestante". O nacionalismo católico antiliberal e anticapitalista é uma característica comum de toda a tradição populista latino-americana "na qual Fidel", escreve Zanatta, "se inscreve plenamente".

Os pilares éticos e materiais do antiliberalismo de Castro são aqueles da cristandade hispânica. O primeiro é a "fusão entre política e religião": papel do Estado, para Fidel Castro, "é converter os cidadãos à única verdadeira fé, à ideologia do regime, através de uma catequese capilar"; o estado é "o primeiro apóstolo". O segundo pilar é a "impermeabilidade ao pluralismo": nação e povo são para ele "organismos vivos", cujo estado natural é de "unanimidade e harmonia"; "incluem a todos e a todos atribuem funções"; "dissenso e conflito são patologias que os minam e, portanto, devem ser extirpados". O terceiro pilar é o corporativismo: a sociedade castrista, como a sociedade das colônias cristãs, é composta de corpos, as organizações de massa nas quais se enquadra cada cubano; o indivíduo "tem apenas os direitos que o pertencimento a um corpo lhe conferem"; caso contrário, ele é excluído. Estamos na presença de "uma ordem social em que o indivíduo está sujeito à coletividade, sobre a qual zela a Igreja, garante da ortodoxia e da unidade de fé", ou seja, "o partido". E sobre ela, o rei, no nosso caso Castro, "investiu com poderes temporais e espirituais".

Pobre, analfabeta e extremamente católica foi a mãe de Fidel, Lina Ruz, que escolheu o colégio La Salle de Santiago para a educação do menino. Não surpreende, escreve Zanatta, que o casamento tardio dos pais (quando já tinham sete filhos) expôs o futuro líder da revolução cubana a constrangimentos e tensões. Nem que em torno de seu batismo, que ocorreu quando ele já tinha nove anos, reine o mistério; a demora "deve ter incomodado, já que sempre se lembrou que seus colegas de escola zombavam dele chamando-o judio, judeu". A explicação mais plausível é que Fidel não poderia ser batizado até que seu pai resultasse casado com sua primeira esposa, o que fez do pequeno Castro um filho ilegítimo, um status doloroso naquele mundo. Curioso, ressalta o autor, aquela de Castro é uma história semelhante à de Eva Perón "com quem Fidel compartilha a poderosa ansiedade da redenção". Também por esse motivo, entre ele e os filhos da burguesia conhecidos no colégio havia "ódio à primeira vista". Depois, foi transferido para o prestigioso colégio jesuíta de Dolores e, posteriormente, para outra instituição jesuíta, o Belén de Havana, igualmente importante e severo.

Desde então, sua existência foi "marcada pelos tempos da vida religiosa" daqueles jesuítas espanhóis. Convento e quartel, "disciplina militar e rigor moral". A política veio mais tarde e foi para ele uma "costela da religião", "a arena do conflito entre salvação e danação". Desde jovem, era obcecado com a morte, "a morte heroica do mártir", "a morte do inimigo infiel". Nos tempos do Belén, ele teve suas primeiras experiências políticas, entrando em conflito com os comunistas, que o definiram com desprezo um "pombinho dos jesuítas". Comunista logo se tornou seu irmão Raul; em vez disso, ele se fortaleceu na ambígua batalha contra Ramon Grau San Martin, defensor de uma constituição democrática, eleito presidente em 1944. Ele também participou de algumas tentativas irrealistas de matar Grau, mas não se limitou a Cuba: em 1947, participou da conspiração dos doze mil voluntários que se reuniram na ilhota de Cayo Confites para libertar Santo Domingo da ditadura de Rafael Trujillo. Em maio, se juntou ao Partido Ortodoxo de Eddy Chibas, que, no entanto, desconfiava de sua paixão.

Em novembro daquele ano, sua foto foi publicada no "Bohemia" e essa foi sua consagração definitiva. Em 1948, o partido Ortodoxo foi derrotado nas eleições e um novo presidente, Carlos Pio Socarras, foi eleito. Chibas, com Fidel ao seu lado, desencadeou uma violenta campanha contra Socarras, mas, em 1951, não conseguindo provar suas acusações, cometeu suicídio durante uma transmissão de rádio ao vivo. Alguns meses se passaram e, em março de 1952, Fulgêncio Batista (que tentara atrair Castro para o seu lado) chegou ao poder com um golpe. Desde os primeiros momentos, Fidel se posicionou contra ele, como havia feito em relação a Grau e Socarras. Seu primeiro gesto marcante foi o ataque ao Moncada, o quartel de Santiago de Cuba, em 26 de julho de 1953. Ele foi preso com todo seu grupo. A mãe correu para Santiago e procurou o arcebispo galego Enrique Pérez Serantes, amigo de família. Ele contatou o chefe militar da província e obteve que a vida de Fidel fosse poupada. Então, não confiando nas garantias, "escreveu uma carta pastoral para tornar público o compromisso com a clemência”. Mais tarde, Castro fez de tudo para fazer esquecer a intervenção de Pérez Serantes e para exaltar sua própria autodefesa diante do tribunal. Foi, aquele em sua defesa, um discurso que durou horas: "Condene-me, não importa, a história vai me absolver", disse naquela ocasião, citando entre outros São Tomás de Aquino e Juan de Mariana, um jesuíta espanhol do século XVI. Seu discurso foi, segundo Zanatta, "o discurso de um jesuíta inflamado". Ele foi condenado a quinze anos de detenção, mas em 15 de maio de 1955, graças a uma ordem de anistia apresentada por Batista, ele foi libertado da prisão.

Desde 1956, Castro retomou a luta na Serra Maestra. A Igreja - não aquela romana, extremamente perplexa - confiou nele e lhe deu uma mão. Seu grupo se reunia em Havana, na paróquia do padre Boza Masvidal. O "New York Times" - tranquilizado por esses relatos - enviou Herbert Matthews a Cuba, cujos artigos nos Estados Unidos geraram simpatia pelo "líder idealista que queria derrubar a ditadura e introduzir a democracia em Cuba". Em 1º de janeiro de 1959, Fidel conquistou o poder e a Igreja o fez garante uma transição (quase) sem derramamento de sangue. Naquele momento, Castro quis Pérez Serantes ao seu lado e falou de uma primeira revolução, a sua, realizada com o apoio da Igreja. A Igreja não entendeu o significado dessas declarações e, por alguns meses, achou que tinha mão livre. Mas Fidel a desiludiu e, após a manifestação de um milhão de católicos em Havana, ela se aproximou dos comunistas e criou problemas tanto para a Ação Católica quanto para o próprio Pérez Serantes. Queria deixar claro que ele era a autoridade suprema do país, mesmo no campo religioso.

A Santa Sé foi pega no contrapé. Mas, em sintonia com o Concílio Vaticano II, nomeou Cesare Zacchi como núncio em Cuba, que soube retomar um diálogo frutífero com Fidel. Que, já em 1963 se vangloriou publicamente e desviou suas invectivas contra supostas "seitas religiosas a serviço da CIA". A partir desse momento, seu alvo se tornou o mundo americano, começando pelo presidente John Kennedy, que nas últimas semanas de vida - apesar de uma mediação malsucedida do jornalista francês Jean Daniel - foi definido pelo líder cubano como "demagogo" e "rufião".

O livro de Zanatta não é inteiramente dedicado às relações entre Fidel e a Igreja. Na verdade, quer ser (e é) uma biografia meticulosa de todos os aspectos da vida política do líder cubano. Mas é curioso observar algumas analogias entre o percurso de Castro e aquele do primeiro pontífice latino-americano, o papa Francisco. Ambos envolvidos com a teologia da libertação, Fidel mais explicitamente entusiasta. Em novembro de 1971, durante uma viagem ao Chile, causou constrangimento a Salvador Allende (na época ansioso para ser considerado moderado) com as palavras incendiárias que usa para exaltar a experiência dos "cristianos para el socialismo". Em 1974, Henry Kissinger tenta estabelecer contato com ele, mas percebe que sua hostilidade ao mundo anglo-saxão é incomparavelmente mais acentuada do que a dos russos e até a dos chineses de Mao Zedong. E foi com base nisso que já em 1978 Castro "encontrou" (naquela época ainda não fisicamente) Karol Wojtyla. Ele imediatamente gostou da hostilidade do papa João Paulo II ao ethos liberal, que para ele era mais importante do que o anticomunismo.

Nessa chave, Fidel encontrou uma nova pátria em Manágua, onde fez amizade com o brasileiro Frei Betto (com quem escreveu o livro Minha Fé, publicado pela Paulinas), o sacerdote ministro Ernesto Cardenal e um jovem cristão também brasileiro e destinado a se tornar presidente de seu próprio país: Luiz Inácio Lula da Silva. Foi naquela época que o padre geral jesuíta, Pedro Arrupe, disse estar orgulhoso de Fidel. E Wojtyla não rejeitou as ofertas de diálogo. Pelo contrário. Ele concedeu-lhe uma audiência privada no Vaticano (novembro de 1996) e, algum tempo depois, confidenciou ao presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso que tinha gostado daquele cubano. De fato, dois anos depois, ele retribuiu a cortesia e foi encontrá-lo em Cuba. Na ocasião, Castro falou publicamente sobre as "culpas", aliás sobre os "horrores" da Igreja na época da conquista espanhola e propôs ousadas comparações entre aqueles erros e política dos Estados Unidos de Bill Clinton na segunda metade dos anos noventa. O Santo Padre, em vez de ficar preocupado, ficou satisfeito. Um sinal, observa Zanatta, de que "o antiliberalismo unia mais que o socialismo dividia". Castro não ficou nada entusiasmado com a visita "histórica" de Obama a Havana. Ficou muito mais - e é normal – com aquela do Papa Bergoglio, mas da mesma maneira - e isso parece menos óbvio - com o encontro com o papa Ratzinger.

 

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