"A nossa casa arde", o livro de Greta Thunberg

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07 Junho 2019

"Para aqueles que, como eu, se encontram no espectro do autismo, quase tudo é preto ou branco. Não somos muito bons a mentir e normalmente não temos grande interesse em participar no jogo social, algo de que a maioria de vocês parece gostar muito.

Acho que, em muitos aspectos, nós, os autistas, somos as pessoas normais e vocês é que são estranhos.

Sobretudo no que toca às crises de sustentabilidade, porque toda a gente continua a dizer que as alterações climáticas são uma ameaça existencial e que são o assunto mais importante de todos. Mas, apesar disso, continuam a agir como antes.

Não consigo compreender isso. Se as emissões têm de parar, então temos de travar essas emissões. Para mim é preto ou branco. Não há áreas cinzentas quando se trata da sobrevivência. Ou continuamos a ser uma civilização ou não continuamos. Temos de mudar.", afirma Greta Thunberg, no livro A Nossa Casa arde.

O livro conta a história de Greta Thunberg, dos seus pais e da irmã. É o relato de como uma família decidiu confrontar-se com uma crise iminente que afeta o nosso planeta. O P3 publica, em primeira mão, o primeiro capítulo do livro, com lançamento marcado em Portugal, para 19 de junho pela Editorial Presença.

A reportagem é publicada por Público, 06-06-2019.

Eis o primeiro capítulo.

"Chamo-me Greta Thunberg. Sou uma ativista sueca pelo clima.

(1) Quando tinha mais ou menos oito anos, ouvi falar pela primeira vez de uma coisa chamada alterações climáticas, ou aquecimento global. Pelo que percebi, tratava-se de uma coisa que os seres humanos tinham criado por causa do seu modo de vida. Disseram-me para desligar as luzes para poupar energia e para reciclar papel de modo a poupar recursos.

Lembro-me de ter pensado que era muito estranho que os seres humanos, uma espécie animal entre tantas outras, tivessem capacidade para alterar o clima da Terra. Porque, se tivéssemos mesmo essa capacidade e se isso estivesse realmente a acontecer, não se poderia falar de outra coisa. Assim que ligássemos a televisão, só ouviríamos falar disso. Nas notícias, nas estações de rádio, nos jornais. Nunca leríamos nem ouviríamos falar de mais nada. Seria como se estivesse a decorrer uma guerra mundial.

Mas... Ninguém falava disso. Nunca.

Se queimar combustíveis fósseis era assim tão mau, ao ponto de ameaçar a nossa própria existência, como é que as pessoas conseguiam continuar a agir como antes? Porque não havia restrições? Porque não passava a ser ilegal fazê-lo?

Para mim, nada daquilo fazia sentido. Era demasiado absurdo.

(2) Depois, quando fiz onze anos, fiquei doente. Entrei em depressão. Deixei de falar. E parei de comer. Em dois meses, perdi cerca de dez quilos.

Mais tarde, diagnosticaram-me síndrome de Asperger, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e mutismo seletivo. Na prática, isto significa que só falo quando acho que é necessário. Por exemplo, agora.

Para aqueles que, como eu, se encontram no espectro do autismo, quase tudo é preto ou branco. Não somos muito bons a mentir e normalmente não temos grande interesse em participar no jogo social, algo de que a maioria de vocês parece gostar muito.

Acho que, em muitos aspectos, nós, os autistas, somos as pessoas normais e vocês é que são estranhos.

Sobretudo no que toca às crises de sustentabilidade, porque toda a gente continua a dizer que as alterações climáticas são uma ameaça existencial e que são o assunto mais importante de todos. Mas, apesar disso, continuam a agir como antes.

Não consigo compreender isso. Se as emissões têm de parar, então temos de travar essas emissões. Para mim é preto ou branco. Não há áreas cinzentas quando se trata da sobrevivência. Ou continuamos a ser uma civilização ou não continuamos. Temos de mudar.

Países ricos como a Suécia têm de começar a reduzir as emissões pelo menos 15% todos os anos. E isso é só para nos mantermos abaixo da meta dos 2 graus de aquecimento. Contudo, tal como o IPCC (Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas) demonstrou recentemente, apontar antes para 1,5 °C reduziria significativamente os impactos no clima, mas só podemos imaginar o que isso significa em termos da redução de emissões. Seria de esperar que os nossos líderes e os meios de comunicação social só falassem disso, mas nunca ninguém menciona a questão. Tal como ninguém diz nada sobre os gases com efeito de estufa já introduzidos no sistema ou que a poluição do ar mascara o aquecimento, de modo que, quando deixarmos de queimar combustíveis fósseis, já teremos um nível de aquecimento global que se pode situar entre 0,5 °C e 1,1 °C.

Além de que praticamente ninguém menciona sequer que estamos no meio da sexta extinção em massa e que cerca de duzentas espécies extinguem-se todos os dias. E que a taxa de extinção natural hoje em dia é entre mil e dez mil vezes mais elevada do que se considera normal.

Como se não bastasse, nunca ninguém fala do princípio da equidade, ou justiça climática, clara e amplamente enunciado no Acordo de Paris, que é absolutamente necessário para fazê-lo funcionar a uma escala global. Isso significa que os países ricos têm de reduzir as emissões até zero dentro de seis a doze anos, para que as pessoas nos países mais pobres possam melhorar o seu nível de vida, construindo algumas das infraestruturas que nós já construímos, tais como estradas, hospitais, redes elétricas, escolas e aquedutos. Como podemos nós esperar que países como a Índia ou a Nigéria se preocupem com a crise climática se nós, que já temos tudo, não nos preocupamos nem um segundo que seja com isso ou com os compromissos que assumimos no âmbito do Acordo de Paris?

Enfim, porque não estamos reduzindo as nossas emissões? Porque é que, na verdade, elas continuam a aumentar? Causaremos conscientemente uma extinção em massa? Seremos cruéis?

Não, é claro que não. As pessoas continuam a agir como agem porque a grande maioria não faz a mínima ideia das consequências do seu modo de vida. E não sabem que as mudanças têm de acontecer muito rapidamente.

Todos pensamos que sabemos e achamos que toda a gente também sabe. Mas não sabemos. Como poderíamos saber?

Se realmente houvesse uma crise, e se essa crise fosse causada pelas nossas emissões, no mínimo veríamos alguns sinais, certo? Não veríamos apenas cidades inundadas, dezenas de milhares de mortos e nações inteiras reduzidas a escombros de edifícios ruídos. Veríamos algumas restrições.

Mas não. E quase ninguém fala disso. Não há manchetes, não há reuniões de emergência, não há notícias de última hora. Ninguém se comporta como se vivêssemos uma crise. Até mesmo a maioria dos políticos ambientalistas e dos climatólogos continua a viajar de avião pelo mundo fora, comendo carne e consumindo laticínios.

Se eu viver até aos cem anos, ainda estarei viva no ano 2103.

Quando pensamos no "futuro" hoje, não pensamos além do ano 2050. Nessa altura, se chegar aos cem anos, não terei vivido sequer metade da minha vida. O que vai acontecer a seguir?

No ano 2078, farei setenta e cinco anos. Se eu tiver filhos ou netos, talvez eles passem esse dia comigo.

Talvez eles me façam perguntas sobre vocês, os adultos que andavam por cá em 2018.

Talvez eles me perguntem porque é que vocês não fizeram nada enquanto ainda havia tempo para fazer alguma coisa.

O que fizermos ou não fizermos agora, neste preciso momento, vai afetar toda a minha vida e as vidas dos meus filhos e dos meus netos.

O que fizermos ou não fizermos neste momento, eu e a minha geração não vamos conseguir desfazer no futuro.

Por isso, quando as aulas começaram em agosto deste ano, decidi que estava farta. Sentei-me no chão em frente ao Parlamento sueco. Fiz greve às aulas pelo clima.

Há quem diga que eu devia era estar na escola. Há quem diga que eu devia estudar para me tornar uma climatóloga e depois "resolver a crise climática". Mas a crise climática já foi resolvida. Nós já estamos na posse de todos os fatos e de todas as soluções. Tudo o que temos de fazer é acordar e mudar.

E porque hei-de estudar para um futuro que daqui a pouco poderá deixar de existir, quando ninguém está a fazer absolutamente nada para salvar esse futuro? E de que vale aprender fatos dentro do sistema educativo quando os fatos mais importantes transmitidos pelos melhores cientistas desse mesmo sistema educativo claramente não significam nada para os nossos políticos e para a nossa sociedade?

Muita gente diz que a Suécia é um país pequeno, que pouco importa o que nós fazemos. Mas eu acho que, se umas quantas crianças conseguem ser notícia em todo o mundo só por faltarem às aulas durante algumas semanas, então imaginem o que conseguiríamos fazer todos juntos se quiséssemos.

[...]

Neste ponto, as pessoas normalmente começam a falar de esperança. Painéis solares, energia eólica, economia circular e por aí fora.

Mas eu não vou fazer isso. Há trinta anos que andam a fazer discursos motivacionais e a tentar vender-nos ideias positivas. Tenho muita pena, mas isso não funciona. Porque, se tivesse funcionado, as emissões já teriam baixado por esta altura. E não baixaram.

E sim, precisamos de esperança, claro que precisamos. Mas aquilo de que precisamos, mais do que de esperança, é de ação. Quando começarmos a agir, a esperança surgirá em todo o lado. Por isso, em vez de confiarmos na esperança, procuremos agir. Então, e só então, a esperança surgirá.

Atualmente, consumimos cem milhões de barris de petróleo por dia. Não existem políticas para mudar esta prática. Não existem regras que obriguem a manter esse petróleo no subsolo.

Tudo tem de mudar. E essa mudança tem de começar hoje.”

Notas

(1) Palavras retiradas do discurso proferido na Parliament Square, em Londres, no dia 31 de outubro de 2018.

(2) Palavras retiradas do discurso proferido na conferência TedX no dia 24 de novembro de 2018.

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