Entre a teologia fechada de Dugin e Bannon e a de Francisco

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16 Fevereiro 2017

O discurso dirigido pelo Papa Francisco aos escritores da revista La Civiltà Cattolica, por ocasião da publicação do volume de número 4.000 da sua revista, inicia com uma expressão que é tão incomum nestes tempos a ponto de ser, no mínimo, intrigante: “Permaneçam em mar aberto! O católico não deve ter medo do mar aberto, não deve buscar o abrigo de portos seguros. Especialmente vocês, como jesuítas, evitem se agarrar a certezas e seguranças. O Senhor nos chama a sair em missão, a ir ao largo e não a se aposentar para acalentar certezas”.

O comentário é de Riccardo Cristiano, jornalista e escritor italiano, publicado por Reset, 13-02-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Segue-se logo em seguida outro ponto ainda mais incomum para os tempos atuais: o papa adverte os seus “escritores” que ser uma revista católica não significa simplesmente defender as ideias católicas, “como se o catolicismo fosse uma filosofia”. O ponto é ter o olhar de Cristo sobre o mundo, acrescentou, antes de lhes entregar três palavras-chave.

A primeiro é inquietação. Esta também não parece ser uma palavra na moda na era do choque entre medo e ódio, que obviamente se autoalimentam. E Francisco não hesita em dizer que, às vezes, confunde-se a segurança da doutrina com a suspeita da busca.

Ainda mais em tendência contrária é a segunda palavra que o papa recomendou. Talvez não seria exagerado defini-la como uma palavra “inimiga” do tempo presente: incompletude. Se Deus é Deus, deve poder nos surpreender, e, para se deixar surpreender por alguém, é preciso um pensamento incompleto, isto é, não fechado, não rígido, não óbvio.

Seguem-se palavras dirigidas a todos nós, que, mais do que com Deus, vemo-nos lidando com as crises e as dificuldades de hoje: “A crise é global, e, portanto, é necessário dirigir o nosso olhar para as convicções culturais dominantes e para os critérios mediante os quais as pessoas consideram que algo é bom ou mau, desejável ou não. Só um pensamento realmente aberto pode enfrentar a crise e a compreensão de aonde o mundo está indo, de como são enfrentadas as crises mais complexas e urgentes, a geopolítica, os desafios da economia e a grave crise humanitária ligada ao drama das migrações, que é o verdadeiro nó político global dos nossos dias”.

E assim chegamos ao ponto forte, para os senhores do hoje “avassalador”: o papa indica aos seus coirmãos um jesuíta de muito tempo atrás, muito famoso, Matteo Ricci. E o que Matteo Ricci fez de tão importante para hoje?

“Ele compôs um grande mapa-múndi chinês, representando os continentes e as ilhas até então conhecidos. Assim, o amado povo chinês podia ver retratadas, de forma nova, muitas terras distantes que eram nomeadas e descritas brevemente. Entre estas, também a Europa e o lugar onde o papa vivia. O mapa-múndi também serviu para introduzir ainda melhor o povo chinês às outras civilizações. Eis, com os seus artigos, vocês também são chamados a compor um ‘mapa-múndi’: mostrem as descobertas recentes, deem um nome aos lugares, deem a conhecer qual é o significado da ‘civilização’ católica, mas também deem a conhecer aos católicos que Deus também está trabalhando fora das fronteiras da Igreja, em cada verdadeira ‘civilização’, com o sopro do Espírito”.

Bergoglio acaba de nos surpreender ao indicar a terceira palavra-chave, imaginação, como indispensável para o discernimento. Alguém poderia pensar que, diante dos fatos da vida, saberá discernir com base na própria experiência, não na imaginação... Mas ele, Bergoglio, ou seja, o papa da Santa Igreja Romana, nos diz que não, nos diz que “a sabedoria do discernimento resgata a necessária ambiguidade da vida. Mas é preciso penetrar a ambiguidade, é preciso entrar nela, como fez o Senhor Jesus assumindo a nossa carne. O pensamento rígido não é divino, porque Jesus assumiu a nossa carne que não é rígida, senão no momento da morte”.

É frequente ouvir coisas assim? Não estamos todos divididos em categorias de pecadores com requisitos específicos e pré-estabelecidos de Ave-Marias e Pais-Nossos, para receber a absolvição? Ou talvez o pensamento rígido não é divino, porque Jesus assumiu a nossa carne que não é rígida, senão no momento da morte...?

Esse terceiro ponto me parece realmente o ato de ratificação de uma “teologia aberta” que faz respirar. Mas é o segundo, o mapa-múndi de Matteo Ricci, que pode nos interessar mais facilmente. Ouvir hoje o papa dizer que Deus está trabalhando fora das fronteiras da Igreja, em cada verdadeira civilização, deve nos abrir os olhos. Deus está trabalhando fora das fronteiras que nós queremos Lhe dar... as nossas fronteiras!

Portanto, só para dar um exemplo, Deus está trabalhando também no mundo islâmico ou no hindu. Comparemos essa visão com aquela exposta pelo conselheiro de Donald Trump, Steve Bannon, aos cardeais do Dignitatis Humanae Institute em 2014: “Se refizermos a longa história da luta do Ocidente judaico-cristão contra o Islã, eu acredito que os nossos antepassados mantiveram a sua posição e acredito que fizeram a coisa certa. Mantiveram-no fora do mundo, quer se tratasse de Viena ou de Tours ou de outra cidade. E nos deixaram como herança o uso da grande instituição que é a Igreja do Ocidente. [...] Vejam o que está acontecendo e vocês verão que estamos em uma guerra de proporções imensas. Os nossos antepassados foram capazes de derrotá-lo e foram capazes de nos deixar como herança uma Igreja e uma civilização que é a flor da humanidade. Eu acredito que devemos fazer uma espécie de ‘controle intestinal’ e perceber qual é o nosso papel nesta batalha que temos pela frente”.

Comparação que se torna ainda mais estimulante se a unimos a outra, com aquilo que foi afirmado pelo conselheiro de Vladimir Putin, Alksander Dugin, perante outro auditório, também na Itália: “A Europa e a Rússia têm um inimigo comum, ou seja, liberalismo. Mas não nos resultados, mas sim na sua essência. E isso significa que ele deve ser repensado, porque se baseia na identificação entre o homem e o indivíduo, entendido como instrumento para medir todas as coisas. A essência do liberalismo é a de libertar o indivíduo de todos os vínculos, começando pela Igreja entendida como religião, seja em nível coletivo, seja individual. Depois disso, passa-se à destruição das nações, no sentido de que se tende a colocá-las todas juntos, em um único caldeirão. A última peça desse liberalismo exasperado diz respeito à esfera sexual, com o nascimento da ideologia de gênero, que tende a anular a diferença entre homem e mulher. Zerando todas as raízes, chega-se a essa política que representa a ideologia norte-americana, assim como declarado não por acaso por Hillary Clinton, que quer o casamento gay. Esse é o fim último do liberalismo que está destruindo a família, a sociedade, a religião, a nação e até mesmo a identidade sexual, pensando que é possível ser homem ou mulher em dias alternados!”.

Ninguém poderá pensar que Bergoglio tem simpatia pelo Isis, mas o pensamento de Bannon parece precisamente fechado, rígido, porque percebe que o cerco de Viena está sempre ao virar da esquina. É impossível mover um palito na cabeceira dos próprios pensamentos enquanto estivermos sob ataque.

Ninguém poderá acreditar que Bergoglio seja a favor do gênero, mas certamente o pensamento de Dugin parece ser muito completo, identificando “todo” o inimigo em “todo” o liberalismo, no qual não há nem poderá haver um único grão de bem. Como se deixar surpreender quando tudo é tão preto e tão branco?

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