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30 Junho 2018

Ineficaz e devastadora, atividade ocupa 83% das terras disponíveis, devasta biomas e elimina fauna selvagem. Entre as alternativas, reflorestamento nativo e carne cultivada.

(Foto: Outras Palavras)

O artigo é de George Monbiot, jornalista, escritor, acadêmico e ambientalista do Reino Unido e que escreve uma coluna semanal no jornal The Guardian, publicado por Outras Palavras, 28-06-2018. A tradução é de Inês Castilho.

Eis o artigo.

Mais do que qualquer outra coisa, a sobrevivência dos seres humanos neste e nos próximos séculos, e a possibilidade de outras formas e vida viverem conosco, dependem de como nos alimentamos. Podemos cortar o consumo de tudo o mais a quase zero, e ainda assim causaremos o colapso dos sistemas vivos — a não ser que mudemos nossa dieta.

Todas as evidências apontam agora numa direção: é crucial fazer a transição da dieta de base animal para uma dieta de base vegetal. Um artigo publicado na revista Science semana passada revela que, embora alguns tipos de produção de carne e laticínios sejam mais prejudiciais do que outros, todos são mais nocivos para os seres vivos do que cultivar proteína vegetal. O texto mostra que a criação de animais ocupa 83% da terra agriculturável do mundo, mas gera apenas 18% de nossas calorias. Uma dieta baseada em vegetais diminui o uso da terra para 76% e reduz à metade os gases de efeito estufa e outras formas de poluição causadas pela produção de alimentos.

A razão é em parte a extrema ineficácia de alimentar o gado com grãos: a maior parte de seu valor nutricional é perdido na conversão de proteína vegetal a proteína animal. Isso reforça meu argumento de que, se você deseja comer menos soja, deveria então comer soja: 93% da soja que consumimos, e que leva à destruição das florestas, savanas e das terras alagadas, estão incorporadas na carne, nos laticínios, ovos e peixe — e a maior parte é perdida na conversão. Quando a comemos diretamente, é preciso muito menos para obter a mesma quantidade de proteína.

A criação de gado à solta é ainda mais prejudicial: os impactos ambientais da conversão de grama em carne, ressalta o artigo, “são imensos sob qualquer método de produção praticado hoje”. Isso porque é necessária terra demais para produzir todos os bifes e costelas que consumimos. Embora as pastagens usem, no mundo inteiro, cerca de duas vezes mais terra do que o cultivo de grãos, elas proporcionam apenas 1,2% da proteína que consumimos. E mesmo que a maior parte dessas pastagens não sirva para cultivar grãos, as terras podem ser usadas para reflorestamento, para permitir que muitos ecossistemas ricos destruídos pela criação de gado se recuperem, absorvendo dióxido de carbono da atmosfera, protegendo bacias hidrográficas e interrompendo a sexta grande extinção planetária de espécies, que está a caminho. A terra que deveria ser consagrada à preservação da vida humana e do resto dos seres vivos está sendo usada neste momento para produzir uma ínfima quantidade de carne.

Sempre que levanto a questão crucial do rendimento por hectare, recebo uma enxurrada de críticas e afrontas. Mas não estou criticando os criadores, estou apenas demonstrando que os números não fecham. Não podemos nem alimentar a crescente população mundial nem proteger os sistemas vivos por meio da criação de animais. Carne e laticínios são uma extravagância que não podemos mais sustentar. Não há saída. Aqueles que defendem que a pecuária “regenerativa” ou “holística” imita a natureza iludem-se a si mesmos. Ela depende de cercas, enquanto na natureza os herbívoros selvagens vagam livremente, muitas vezes por grandes distâncias. Exclui ou extermina predadores, que são cruciais ao funcionamento saudável de todos os sistemas vivos. E tende a eliminar os brotos de árvores, provocando a ausência dos complexos mosaicos de vegetação lenhosa encontrados em muitos sistemas naturais — essenciais para sustentar uma ampla variedade de espécies de vida selvagem.

A indústria da carne exige ataques ainda maiores ao mundo dos seres vivos. Veja a matança de texugos no Reino Unido, espalhando-se agora por todo o país em resposta aos equivocados pedidos dos produtores de leite. As pessoas perguntam como eu justificaria o retorno dos lobos, sabendo que eles iriam matar algumas ovelhas. Eu pergunto como eles justificam a erradicação dos lobos e de uma grande variedade de outras vidas selvagens para dar lugar às ovelhas. A mais importante ação ambiental que podemos fazer é reduzir a quantidade de terra usada na agricultura.

A não ser que você saiba cozinhar bem — e muita gente não tem nem capacidade nem espaço para isso — uma dieta baseada em vegetais pode ser cara ou sem graça. Precisamos de refeições prontas veganas melhores e mais baratas, e substitutos rápidos e fáceis para a carne. A grande mudança virá com a produção em massa de carne cultivada. Há três restrições principais a ela. A primeira é que a ideia de carne artificial é, para alguns, repugnante. Se você sente assim, convido-o a verificar como os animais dos quais são feitos suas salsichas, hambúrgueres e empanados de frango são atualmente criados, massacrados e processados. Tendo trabalhado numa fazenda de criação intensiva de porcos, estou mais consciente que a maioria de quão repulsivas elas são.

A segunda objeção é que a carne cultivada mina a produção local de alimentos. Talvez aqueles que fazem essa restrição não tenham consciência de onde vem a alimentação animal. Fazer com que a soja argentina passe por um porco local antes de chegar até você não a torna mais local do que se fosse transformada em alimento humano diretamente. A terceira restrição tem um mérito maior: carne cultivada presta-se à concentração corporativa. De novo, a indústria de alimento animal (e, cada vez mais, a produção de carne) foi capturada por conglomerados gigantes. Mas deveríamos assegurar que a carne cultivada não siga o mesmo caminho: nesse setor, como em todos os outros, precisamos de fortes leis antitruste.

Essa poderia ser também uma oportunidade para romper com nossa completa dependência de nitrogênio artificial. Tradicionalmente, a criação de animais e o cultivo de plantas eram integrados através do uso do esterco. Perdas nesse sistema levaram a uma queda gradual da fertilidade do solo. O desenvolvimento de fertilizantes industrializados nos salvou da fome, mas a um alto custo ambiental. Hoje, a ligação entre pecuária e agricultura foi quase inteiramente rompida: as lavouras são cultivadas com produtos químicos industriais, enquanto o excremento dos animais se acumula, sem ser utilizado, em lagoas fedorentas, exterminando rios e criando zonas mortas no mar. Quando aplicado na terra, ameaça acelerar a resistência aos antibióticos.

Mudando para uma dieta baseada em vegetais, poderíamos fazer uso de uma ótima sinergia. Em sua maioria, as lavouras proteicas — de ervilhas e feijões — captam nitrogênio do ar, fertilizando a si mesmas e aumentando os níveis de nitrato no solo para uso das culturas subsequentes, tais como cereais e sementes oleaginosas. Embora seja pouco provável que a transição para a proteína vegetal elimine a necessidade de fertilizantes artificiais, o trabalho pioneiro de agricultores orgânicos veganos, que usam somente compostos baseados em vegetais e importam o mínimo de fertilidade possível de outros lugares, deve ser apoiado por pesquisas que os governos, até agora, não vêm financiando.

Compreensivelmente, a indústria da carne irá resistir a tudo isso, usando as bucólicas imagens e fantasias pastorais que nos têm fascinando por tanto tempo. Mas não pode nos forçar a comer carne. A mudança precisa ser feita por nós. E torna-se mais fácil a cada ano que passa.

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