O Evangelho segundo Madalena, a amante ''excessiva''. Artigo de Vito Mancuso

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17 Março 2018

O livro Maria Maddalena. Esercizi spirituali, de Carlo Maria Martini (Ed. Terra Santa), acaba de ser publicado. Trata-se dos textos dos Exercícios Espirituais que o cardeal Martini ministrou em Israel entre o fim de 2006 e o início de 2007.

O teólogo italiano Vito Mancuso, professor da Universidade de Pádua, comentou a obra para o jornal La Repubblica, 16-03-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

A simpatia do cardeal Martini por Maria Madalena parece evidente desde a primeira até a última palavra dos Exercícios Espirituais que ele ministrou em Israel entre o fim de 2006 e o início de 2007, assim como é evidente a sua simpatia pelas consagradas da Ordo Virginum da diocese de Milão, para as quais ele preparara os Exercícios e às quais dizia: “Reconheço vocês na sua beleza interior e exterior, porque, quando a alma permanece na sua constante proposta de serviço a Deus, ela permanece bela, e essa beleza se difunde”.

Eu penso que é exatamente isso, e acho que Martini, por sua vez, foi um exemplo dessa misteriosa conexão entre ética e estética sentida já pelos antigos gregos com o ideal da kalokagathía, porque a doença de Parkinson contra a qual ele já lutava e que o levaria à morte em 31 de agosto de 2012 nunca chegou a privá-lo de sua original e nobre beleza.

O que são os Exercícios Espirituais é explicado pelo próprio Martini, dizendo que não são um curso de atualização, nem uma leitura espiritual da Bíblia, nem uma oportunidade de oração; em vez disso, são “um ministério do Espírito Santo”, no sentido de que “é o Espírito Santo que fala ao meu coração para me dizer o que quer de mim agora”.

Os Exercícios Espirituais, portanto, são um tempo de escuta e de recolhimento para entender a própria situação aqui e agora e, como tais, preveem “um silêncio absoluto à mesa e também nos outros momentos”, porque, adverte Martini, “somente uma palavra dita aqui e acolá perturba a todos”.

Maria Madalena é “o sinal do excesso cristão, o sinal de ir além do limite, o sinal da superação”: no excesso da sua vida conturbada, mas sempre dominada pelo amor, está, para Martini, a chave privilegiada para “ser introduzido no coração de Deus”.

O coração de Deus

Mediante a história de Maria Madalena, Martini chega a falar de Deus, e, falando de Deus, chega a iluminar a lógica e o ritmo do ser, captando no amor o seu segredo mais profundo: “Deus é todo dom, está todo além do devido, e esse é o segredo da vida”. Identificar “o coração de Deus”, portanto, significa, para Martini, identificar “o segredo da vida”.

Nessa perspectiva, ele ilumina magistralmente o paradoxo da existência, assinalando a dinâmica profunda de acordo com a qual cumprimo-nos superando-nos, enriquecemo-nos esvaziando-nos, alcançamos o equilíbrio perdendo-o. É a loucura evangélica. Que, porém, como verdade do ser, é universal e, portanto, sentida também além do cristianismo, por exemplo, já por Platão, que captava a mesma lógica de excedência escrevendo que “a mania que provém de um deus é melhor do que a temperança que vem dos homens” (Fedro 244 d).

Maníaca, em sentido platônico, Madalena é definida por Martini como “amante extática”, isto é, literalmente “fora de si” e, desse modo, é indicada como via privilegiada para se ter acesso ao coração de Deus. Para ele, de fato, é evidente que “não pode compreender Deus quem busca apenas razões lógicas”, enquanto ele pode ser compreendido por “quem vive algum gesto de saída de si, de dedicação para fora de si, fora do devido”, porque Deus, símbolo concreto do mistério do ser, “é saída de si”, “dom de si”. Nessa perspectiva, a Madalena, perfeita exemplificação da lógica evangélica, dá a entender que “somente o excesso salva”.

Por “excesso”, Martini entende “um desequilíbrio da existência”. E é precisamente este o ponto: a vida se alimenta de tal desequilíbrio. O nosso universo, talvez, não vem de um excesso, isto é, da ruptura da simetria na origem do Big Bang? E a vida, por sua vez, não é desequilíbrio, sendo a morte, como disse Erwin Schrödinger nas lições no Trinity College em Dublin, “equilíbrio térmico”? E o que são o enamoramento e as paixões de que se nutre a nossa psique senão, por sua vez, desequilíbrio?

Afirma Martini: “Quando defino a mim mesmo, eu me defino diante do mistério de Deus e me defino como alguém que está destinado a se encontrar no dom de si (...) e tudo isso se dá porque Deus é dom de si”. Ele continua dizendo que muitos não entendem Deus porque não o conectam com essa dinâmica de saída de si, pois “somente quando aceitamos entrar nessa dinâmica da perda, do dar a perder, podemos nos colocar em sintonia com o mistério de Deus”.

Nessa perspectiva, Martini chega a falar de Deus de acordo com uma teologia da natureza que alegria o coirmão jesuíta Pierre Teilhard de Chardin, referindo-se àquela “força que poderíamos chamar de transcendente, porque está em toda a natureza física, moral e espiritual, e é a força que mantém o mundo unido (...) a força que pode ser concebida como uma luta contínua contra a entropia e o resfriamento”.

O voto de virgindade das consagradas às quais eles dirigia seus Exercícios também parece ser a Martini um sinal daquele excesso de amor que faz com que, no mundo, não haja apenas a força da gravidade que puxa para baixo, mas também “uma força que puxa para cima, para a transparência, a complexidade e também para uma compreensão profunda de si mesmo e dos outros, até chegar àquela transparência que é a revelação daquilo que seremos”.

Ou seja, conclui Martini, “a vida eterna”.

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