Uma agenda para a internet cidadã

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28 Outubro 2017

“As grandes corporações da internet e os serviços de segurança se aproveitam das lacunas regulamentares (nacionais e internacionais) para impor suas regras. A população fica desamparada para defender seus direitos e desenvolver projetos autônomos. Foi diante da constatação dessa situação que nasceu a iniciativa de promover o Fórum Social da Internet (FSI), como um espaço mundial autônomo de organizações sociais e de cidadãos dos diversos setores sociais para debater e buscar respostas para essa situação”. A reflexão é de Sally Burch, jornalista britânico-equatoriana e diretora executiva da ALAI, em artigo publicado por ALAI, 26-10-2017. A tradução é de André Langer.

Eis o artigo.

Se a internet já está presente em quase tudo, e somos nós que lhe damos vida e conteúdo, faz sentido continuar a sermos simplesmente usuários de serviços que as grandes empresas do setor nos oferecem sob suas condições? Ou deveríamos tomar medidas sobre como ela se desenvolve e poder decidir sobre o uso que se faz das nossas contribuições? As respostas a essas perguntas estão se perfilando entre os grandes desafios deste século.

Vale lembrar que, quando a web nasceu, há apenas um quarto de século (1993), e o uso da internet começou a se expandir, muitos atores populares e cidadãos a acolheram como uma oportunidade para democratizar a comunicação, compartilhar informações, ideias e conhecimentos e tecer redes horizontais. Isso coincidiu com o auge das lutas dos movimentos sociais contra a globalização neoliberal, particularmente no Sul. A internet tornou-se uma ferramenta indispensável para unir as lutas populares em todo o planeta, gerar novas mídias populares, interconectar pesquisa acadêmica, facilitar iniciativas de desenvolvimento comunitário e muito mais. Nasceu a internet cidadã e multiplicou-se através de um número infinito de iniciativas em conectividade, software, programas, plataformas, conteúdos, sítios, etc. Pode-se dizer que a internet se apresentava como o rosto amigável da globalização.

Desde o final do século XX, houve um rápido aumento de investimentos privados no setor; nasceram redes sociais digitais e o acesso se massificou. Paralelamente, começaram a predominar as grandes plataformas privadas, onde hoje se concentra a maioria das interações da internet, sob o controle de um punhado de megaempresas. A internet cidadã, baseada nos comuns, ainda está viva, mas cada vez mais encurralada por essa ofensiva corporativa.

Agora estamos entrando a passos acelerados em uma nova fase: a era da internet das coisas, da economia digital, da inteligência artificial. Os dados em massa são o principal insumo e fonte de valor desta economia: eles são vendidos para anunciantes, processados por algoritmos que governam em cada vez mais áreas da vida e são o combustível da inteligência artificial. Eles também são assediados por programas de vigilância, espionagem e ciberguerra. Quem armazena e controla os dados concentra poder e riqueza. As grandes corporações da internet e os serviços de segurança se aproveitam das lacunas regulamentares (nacionais e internacionais) para impor suas regras. A população fica desamparada para defender seus direitos e desenvolver projetos autônomos.

Foi diante da constatação dessa situação que nasceu a iniciativa de promover o Fórum Social da Internet (FSI), como um espaço mundial autônomo de organizações sociais e de cidadãos dos diversos setores sociais para debater e buscar respostas para essa situação. Optou-se por fazê-lo sob o guarda-chuva do processo do Fórum Social Mundial, por sua afirmação de que "outro mundo é possível" diante da postura neoliberal de que "não há alternativas".

Como contribuição para esta iniciativa, em 2017, várias organizações latino-americanas (1) promoveram um processo de intercâmbio para orientar a formulação de propostas e iniciativas desde uma perspectiva regional. Com uma combinação de intercâmbios virtuais e presenciais e a divulgação sobre a problemática, esse processo desembocou no Encontro Diálogos para uma Internet Cidadã: Nossa América rumo ao Fórum Social da Internet (Quito, 27-29 de setembro de 2017).

O Encontro priorizou três eixos de debate: 1) conhecimento; 2) Organização Mundial do Comércio, comércio eletrônico, trabalho e território; e 3) democracia, segurança e Estado. A dinâmica partiu de um diagnóstico do contexto global e regional nestas três áreas, para em seguida concentrar-se no intercâmbio em mesas temáticas para construir uma agenda regional. Além disso, foram compartilhadas várias destacadas experiências de internet cidadã.

Prioridades: direitos e proteção de dados

Nas mesas foram construídas propostas (2) para a região, bem como para o Fórum Social Mundial da Internet (programado para ser realizado na Índia em 2018), tanto no campo das políticas públicas como da ação e iniciativas cidadãs. Dali saíram alguns fios comuns e temas transversais, em particular os direitos humanos e a proteção de dados.

Neste sentido, foram identificadas algumas ações cidadãs prioritárias para os próximos meses, que incluem:

– Realizar uma ampla campanha de comunicação para sensibilizar as organizações sociais, o público e as autoridades sobre as atuais tendências na internet e nas tecnologias digitais, uma vez que se trata de temas novos cujas implicações ainda não são claras para a maioria da população, nem, em muitos casos, para os formuladores de políticas públicas. Entre os temas a serem priorizados destacaram-se: o gerenciamento dos dados e seus impactos na democracia; a inteligência artificial e algoritmos e a urgência de estabelecer normas; segurança e privacidade e como diferenciar as ferramentas a serem usadas, seja para divulgar informações públicas, seja para fazer intercâmbios privados (canais de mensagens seguros); o significado da proposta de negociar o comércio eletrônico na OMC; o perigo das ciberarmas; o governo eletrônico e seu papel na promoção da participação cidadã...

– Como prioridade urgente, desenvolver um debate público em cada país e tirar critérios para legislação em matéria de proteção e gerenciamento de dados e contra a violência digital. Para contribuir com este debate, propõe-se a partilha de experiências e propostas entre os diferentes países; e entre os critérios a serem considerados estão:

  • Garantir a segurança e a privacidade das pessoas, como prioridade.
  • Criar agências de proteção de dados que garantam a proteção cidadã. Os dados devem ser descentralizados e não concentrados nas mãos do Estado.
  • Garantir a transparência na gestão e no uso de dados pessoais nos setores público e privado.
  • Os dados pessoais ou aqueles que permitem identificar uma pessoa devem ser declarados não mercantilizáveis. Prioridade à proteção de dados pessoais sobre o consumo e os serviços.
  • Limitar e regular o uso de registros biométricos.
  • Estabelecer que os dados públicos não sejam depositados em servidores estrangeiros.

A este respeito, assinala-se também que o debate público exige a ressignificação da natureza dos dados, que não devem ser considerados uma mercadoria, mas poderiam ser considerados um bem social útil para as políticas públicas. Também implica definir quais dados devem ser públicos ou abertos e quais devem ser considerados privados. Os dados produzidos pelos Estados normalmente devem ser considerados públicos; aqueles que estão vinculados a pessoas são aqueles que necessitam de proteção.

– Compartilhar e sistematizar insumos e experiências que alimentam a ação cidadã, tais como: um guia para programas de software livre e ferramentas de segurança para diferentes necessidades; uma compilação de boas práticas de internet cidadã; insumos sobre leis e políticas públicas nos diferentes temas; materiais de capacitação.

Além disso, para a agenda dos próximos meses, ficou acordado:

– Participar da campanha de sensibilização e das mobilizações contra a negociação do comércio eletrônico na Organização Mundial do Comércio (e também dos tratados de livre comércio), uma vez que se trata de uma ofensiva das grandes transnacionais digitais e seus governos para desregulamentar todo o setor a seu favor e garantir a exploração dos dados sem qualquer restrição.

– Desenvolver propostas de direitos digitais para o Tratado Vinculante sobre Empresas Transnacionais e Direitos Humanos, cuja primeira sessão de negociação no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas realiza-se em outubro de 2017.

– Apoiar a campanha global contra robôs assassinos e ciberarmas.

– Canalizar propostas para os processos de integração regional em matéria de soberania tecnológica e direitos digitais.

– Em preparação para o Fórum Social Mundial da Internet, avançar nos debates desses temas em espaços internacionais, tais como: os eventos paralelos ao Encontro Ministerial da OMC (Buenos Aires, 9 a 14 de dezembro de 2017); o Fórum Social Mundial (Salvador, Bahia, março de 2018).

Propõe-se também a construção de contribuições para uma declaração universal sobre o acesso, uso e desenvolvimento da internet, como contribuição regional para o Fórum Social da Internet.

Políticas públicas

As mesas também formularam diversas propostas referentes às políticas públicas. Entre elas, destaca-se a necessidade de considerar a internet como um bem público ou um serviço essencial, de acesso universal, em vez de um serviço de mercado; e que os serviços provedores de internet sejam considerados serviços públicos.

Em matéria de segurança e vigilância, enfatiza-se uma concepção de segurança humana (ao contrário de considerar apenas a segurança da infraestrutura e de seus proprietários). Isso implica tipificar a violação da privacidade e da violência digital, diferenciando os bens jurídicos violados e os tipos de atores: Estado, empresa, pessoa. Apela-se também à transparência no uso dos orçamentos públicos nas agências de segurança e avaliar sua efetividade (por exemplo, câmeras de vigilância).

Além disso, é necessário criar um marco jurídico para regular a aplicação da inteligência artificial e garantir que os algoritmos sejam transparentes.

No que diz respeito à soberania tecnológica, destaca-se uma perspectiva de soberania popular, cuja premissa é o interesse público. Concordou-se em promover a obrigatoriedade do uso de software livre nos sistemas de interesse público, particularmente no sistema educacional, com incentivos ao desenvolvimento local de software. E criar leis para garantir a neutralidade da rede: isto é, um tratamento igualitário a todas as fontes, sem favorecer determinadas empresas ou políticas de controle. Propõe-se também exercer incidência para tirar a gestão da propriedade intelectual do campo penal e transferi-la para o âmbito do direito civil.

Neste sentido, é importante promover a cooperação Sul-Sul, por exemplo, para a infraestrutura intra-regional de conectividade (anel óptico, satélites); laboratórios colaborativos públicos e cidadãos de criação de inteligência artificial; fabricação de componentes de telecomunicações; desenvolvimento de plataformas regionais na internet em função de interesses próprios e para reduzir a dependência das grandes plataformas transnacionais, entre outros.

O currículo educacional deve, entre outros, contemplar de maneira transversal a Ciência, a Tecnologia e a Sociedade; promover uma educação crítica; promover a compreensão da internet como artefato e como cultura; e promover o uso consciente das tecnologias e seus impactos na sociedade e a importância da privacidade e da criptografia.

Em matéria de trabalho e economia popular, são necessárias políticas para garantir os direitos dos trabalhadores face à tendência de uma maior precarização resultante da automação e das formas de operação das novas empresas digitais (exemplo: as empresas de transporte que não reconhecem os motoristas como seus funcionários). E políticas para fomentar o comércio eletrônico que favoreçam as pequenas e médias empresas e produtores rurais nacionais, em vez de criar dependência das empresas transnacionais.

Rumo à internet cidadã

A internet cidadã constrói-se também através de uma multiplicidade de ações desenvolvidas por diferentes setores. Este processo teve como objetivo fortalecer os vínculos entre elas. Algumas das ideias que foram mencionadas incluem:

– Que a população se aproprie do mundo digital, produzindo conteúdos próprios, que respondam à sua identidade, interesses, problemáticas e diversidade. (Por exemplo, para diversificar os conteúdos na Wikipedia.) E que assuma o seu poder de usar ou descartar redes ou empresas abusivas.

– Produzir material didático e de divulgação; formar brigadas de formação e conscientização; realizar atividades formativas sobre a tecnologia e a cultura livres.

– Promover trocas, informações, análises, sobre o impacto das mudanças tecnológicas no mercado de trabalho (precarização do trabalho), na agricultura, no meio ambiente, nas cidades, etc. E alertar sobre propostas adversas em áreas como geoengenharia, economia verde, genômica, que tendem a se aprimorar com as tecnologias digitais.

– Buscar a convergência entre setores tecnológicos, tecnopolíticos, movimentos populares, organizações cidadãs e entidades do setor público, para construir uma força social organizada que impulsione essa agenda.

Para mais informações sobre o Encontro e o processo regional Internet Cidadã, acessar clicando aqui.

Notas:

(1) ALAI, FCINA, ALER, Pressenza, Corape, Medialab-UIO.

(2) Os acordos completos das mesas e da plenária podem ser vistos clicando aqui.

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