Scalfari e Francisco, a comoção de um iluminista insatisfeito

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19 Julho 2017

O relacionamento entre Eugenio Scalfari e o Papa Francisco, suas entrevistas mais ou menos confiáveis, foram o cenário de ataques e críticas por parte de setores católicos que não gostam desse pontificado. As simpatias por Bergoglio do ex-dirigente do La Repubblica, por anos ferrenho representante do anticleralicalismo e do secularismo, são a confirmação, para os antipapais, da "venda" ao século de Francisco, símbolo evidente do seu ajoelhamento ao mundo.

O comentário é de Massimo Borghesi, professor de Filosofia Moral na Universidade de Perugia, Itália, e presidente da Associação Cultural Antonio Rosmini, publicado por Vatican Insider, 17-07-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.

O modernismo de Bergoglio teria a sua refutação no apreço de Scalfari. Como pode um papa ser fiel à tradição - esta é a pergunta - se ele resulta tão simpático a um personagem que, no passado, mostrou-se tão hostil à Igreja?

O que os críticos não levaram em consideração é a complexidade da figura de Scalfari, bem como, sob alguns aspectos, a sua "evolução". Numa recente reunião na sede da "La Civiltà Cattolica", em 20 de maio passado, o padre Antonio Spadaro disse que Francisco é sensível às "fraturas" do pensamento único. Isso, nós acrescentamos, vale não apenas para os cenários internacionais, mas também para as relações com as pessoas. É inegável que entre Scalfari e Bergoglio  exista uma forte simpatia humana, assim como é inegável que Francisco não tem nenhuma propensão ao proselitismo. E, no entanto, é evidente que ambos se comunicam através de uma "fissura", de uma abertura, que, de alguma forma, os une. Essa "fissura" não é apenas uma evidência que distingue o idoso Scalfari, a necessária inquietação que acompanha o encontro com a morte. A fissura é nele uma "fratura", que o marca ao longo do tempo.

Para além da esquerda secular e da direita católica, aliados em sua luta, situa-se o espaço do encontro entre um Pontífice e um intelectual laico inquietado, apesar de tudo, pelo mistério da vida

Em seu livro de 1995, "Alla ricerca della morale perduta" (Em busca da moral perdida), Scalfari já mostrava optar por Pascal  em um confronto a distância com o "seu" Voltaire. "Não cause estranheza, portanto, - ele escrevia - se o ateu que eu sou sente-se mais próximo [...] ao solitário de Port-Royal do que ao príncipe dos iluministas. A moral de Voltaire é um sucedâneo da felicidade individual, a de Pascal aponta diretamente para o fundamento da questão [...] para Pascal é a graça que torna possível a identificação com Cristo, com a caridade e, portanto, com a inteira humanidade superando a pecadora finitude do si mesmo".

Certamente, Cristo continua para Scalfari apenas uma figura histórica extraordinária, "divina" apenas pelo seu exemplo, distante do dogma da Igreja. O racionalismo iluminista é o legado que o "bloqueia". E, no entanto, é inegável que no jornalista viva, já há tempo, uma tensão, um dissídio, entre a razão "laica" e a alma "religiosa".

Em um artigo de 16 de julho, "A política e o legado perdido da modernidade," a alma "religiosa" de Scalfari vem à luz com evidência total. Aqui, depois de tratar apressadamente do quadro político, Scalfari lembra um de seus livros de 2010 "Per l’alto mare aberto" (Em pleno alto mar), cujo tema é a parábola do moderno. Depois de tratar dos "heróis" do pensamento moderno - Voltaire, Diderot, Rousseau, d'Holbach, etc. - o autor termina seu livro falando de Italo Calvino e de Eugenio Montale

Montale é o poeta de melancolia, de uma tensão religiosa, de uma busca de sentido insatisfeita que transcende as pseudo-certezas do racionalismo moderno. "Montale foi o poeta de uma geração, a minha, a nossa, a última geração dos modernos. É preciso escavar em seus versos, dentro dele e de nós mesmos, para compreender as razões para essa identificação. Principalmente a melancolia. Melancolia pelas oportunidades perdidas, arrependimentos, os "Eldorados" sonhados e jamais alcançados, os cometas e a galáxia, "capa de todo tormento", as "ilhas de ar migrabundo" (migrabondo, neologismo, ndt). E uma oração comovente em busca de ternura:

Il vento che nasce e muore / nell’ora che lenta s’annera  / suonasse te pure stasera / scordato strumento, / cuore.  (O vento que nasce e esmorece/na hora que lenta escurece /soasse para ti esta noite/esquecido instrumento,/coração - em tradução livre)

“A nossa foi uma geração melancólica, bastante consciente de seus deveres e pouco sensível aos direitos; uma geração condicionada por complexos de culpa existencial dos quais nós não dávamos conta, que faziam com que nos sentíssemos devedores de débitos imaginários e ainda assim pesados para suportar".

Que um homem, em um encontro, possa encontrar alento para a ferida que o habita, é uma ideia que vai além da imaginação tanto da esquerda secular, como da direita católica

Para Scalfari, "em Montale a melancolia alinha-se com um estado de espírito, uma sonoridade subjacente que não registra intervalos e se expressa sempre no fio da memória, no gotejar, faíscas de memória, “Adios muchachos, compañeros de mi vidas, Dora Markus, Avrei voluto sentirmi scabro ed essenziale” (Teria gostado de me sentir áspero e essencial, em tradução livre). Aqui está outro motivo de identificação, áspero e essencial. Como o osso de sépia dessecado sobre a areia, corroído pela água salgada na beira da praia. Estávamos saturados de D'Annunzio, de poses heroicas, de coração a ser arremessado sobre o obstáculo. A reação inconsciente para tudo isso foi a poesia de Montale. A melancolia, a memória das oportunidades perdidas, o estilo seco, uma métrica e uma linguagem inovadoras, mesmo que no âmbito do cânone poético tradicional".

Segundo o autor: "Foi dada uma interpretação política a esta cisão entre pensamentos e vida de Montale, mas eu não creio que tenha sido isso, ou melhor, não só isso. Foram as escolhas da alma e do amor, o destino e o acaso, a necessidade e a liberdade da colisão entre elas que constituíram o drama daquela geração que a voz e o canto do poeta interpretou com dramática plenitude e maestria de linguagem.

Sob esse ponto de vista são os versos compostos entre 1928 e 1939 e, depois reunidos sob o título de "Occasioni" que alcançam o clímax nos versos "La casa dei doganieri" (A casa dos aduaneiros): vinte e dois versos divididos em quatro estrofes, em que autobiografia, memória, melancolia , alienação e paisagem, atingem uma fusão que rememora os cantos mais inspirados de Leopardi". 

Entre esses versos Scalfari relembra os seguintes:

Oh/ l’orizzonte in fuga, dove s’accende /rara la luce della petroliera!/Il varco è qui? Ripullula il frangente / ancora sulla balza che scoscende… /Tu non ricordi la casa di questa / mia sera. Ed io non so chi va e chi resta.  (Oh/ o horizonte em fuga, onde se acende/ rara a luz do petroleiro!/A passagem é aqui? Rebenta-se a onda/ ainda sobre a falésia que cai a pico .../ Você não se lembra da casa desta/ minha noite. E eu não sei quem vai e quem fica. Em tradução livre)

"A passagem é aqui?", o ponto extremo da religiosidade de Montale, outro "laico" cuja alma era dividida entre racionalismo e religiosidade, é compartilhado por Scalfari. Aqui está a "fissura", a "fratura" do pensamento único que permite a Scalfari e a Bergoglio se encontrar, discutir, se estimar.

O que impressionou Scalfari foi estar frente a um Papa que não o julga, que o acolhe como é, preocupa-se por sua saúde, não pretende nada. Um modo de ser desconcertante. Como ele relata na conclusão de sua última "entrevista" com o Papa, de 8 de julho, que nada mais é que um relato improvisado:

"Ficou tarde. Francisco trouxe consigo dois livros que contam a sua história na Argentina até o conclave e também seus escritos que são bem numerosos, um volume de várias centenas de páginas. Nós abraçamos novamente. Os livros pesam e ele faz questão de carregá-los. Chegamos pelo elevador até a porta de Santa Marta, ladeada pela Guarda suíça e por seus colaboradores mais próximos. Meu carro está na frente do pórtico. O meu motorista desce para cumprimentar o Papa (apertam as mãos) e tenta me ajudar a entrar no carro. O Papa o convida a retomar a direção e ligar o motor. "Eu o ajudo", fala Francisco. E acontece uma coisa que eu creio jamais tenha acontecido antes: o Papa me sustenta e me ajuda a entrar no carro segurando a porta aberta. Quando estou acomodado, ele me pergunta se fiquei confortável. Eu respondo que sim, ele fecha a porta e dá um passo atrás esperando que o carro arranque, cumprimentando-me até o fim agitando o braço e a mão, enquanto eu - confesso - estou com o rosto sulcado por lágrimas de emoção".

As lágrimas de emoção de Scalfari valem mais do que trinta tratados de teologia

As lágrimas de emoção de Scalfari valem mais do que trinta tratados de teologia. Em um encontro profundo, ditado por uma correspondência da alma, este homem viajado, cético, desiludido em seu racionalismo, reconhece, para além de toda ideologia, o testemunho profundamente humano do Sucessor de Pedro.

Um reconhecimento perigoso. Tanto aos olhos dos laicos intransigentes, como documenta o recente livro de Gian Enrico Rusconi, "La teologia narrativa di Papa Francesco", que acaba de ser publicado pela Laterza; como para os antipapais, presos à ideologia, como os leigos "ortodoxos". Que um homem, em um encontro, possa encontrar alento para a ferida que o habita, é uma ideia que vai além da imaginação tanto da esquerda secular, como da direita católica. Para além desses opostos, aliados em sua luta, situa-se o espaço do encontro entre um Pontífice e um intelectual laico inquietado, apesar de tudo, pelo mistério da vida.

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