O Perdão é a escolha que liberta o futuro

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28 Julho 2017

Também este ano se renova a tradição, dentro do Festival dos Dois Mundos, dos “Sermões em Spoleto". O ciclo, que ocorreu de 1º de julho até o dia 15, foi dedicado “à oração de Jesus: o Pai nosso”.

Prossegue a reflexão sobre as palavras do Pai Nosso, foco central neste ano dos "Sermões de Spoleto": neste dia, a intervenção do padre Ermes Ronchi, docente da Pontifícia Faculdade Teológica "Marianum" sobre "Perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido". Com Tertuliano, escritor do século II d.C., a tradição das Igrejas cristãs identifica nessas palavras um compêndio de todo o Evangelho. Nelas estão contidas as dimensões essenciais da pregação de Jesus. O texto foi publicado por Avvenire, 14-07-2017. A tradução é de Luisa Rabolini

Eis o artigo.

Estamos no quinto pedido do Pai Nosso. Que é a oração em que nunca se fala eu, nunca se fala meu. Mas sempre vosso e nosso. Oração expropriada. Na qual descobrimo-nos como criaturas de vínculos, na qual existir é coexistir. Em primeiro lugar, o vínculo. Aquele vínculo que nos liga a Deus: horizonte último; e o que nos prende ao horizonte penúltimo, os companheiros de escalada. Rezar é abrir-se aos vínculos, abrir a nossa casa, como se abre uma janela ao sol, uma porta ao vento; abrir-se em duas direções: a cotidiana e a eterna; o eterno que se insinua no instante, o instante que se abre ao eterno. Perdoai-nos assim como nós perdoamos os outros. Nós nos colocamos diante de Deus e nos esforçamos para sermos para os outros aquilo que queremos que Deus seja para nós. Queremos o seu perdão, mas estamos empenhados diante de Deus para sermos generosos de perdão. A preocupação com os outros está dentro da oração, é o texto da oração. Na quinta indagação do Pai Nosso acolhemos uma definição do ser humano: definimo-nos todos como devedores. É uma nova e mais leve forma de habitar a terra: passar no mundo como devedores agradecidos aos inúmeros irmãos e à mãe terra, reconhecedores e satisfeitos pela vida, saúde, cultura, bem-estar, ciência, descobertas e serviços; pelos meus mestres, pelo piloto do avião que me trouxe aqui, pela medicina, pelo eletricista que montou o microfone, pelo catador do algodão de que é feita a minha camisa. Vivemos em uma hospitalidade cósmica. Em relação à qual somos devedores, não credores que exigem impiedosamente o que acreditam que lhes cabe por direito ou dever. Devedores não pretendentes. A dívida de existir paga-se somente com a gratidão e o amor: não tenhais com ninguém outra dívida além do amor recíproco. A cola do mundo, o tecido que entrelaça a sociedade, que tem o papel da partícula Xicc++ recém-descoberta no CERN de Genebra, definida como a cola da matéria, pois bem, a cola dos espíritos é a dívida, a gratidão recíproca.

O que mantém o mundo unido e a história conectada não é o resgate dos meus direitos, não é a meritocracia, nem mesmo a verdade (a minha verdade contra a tua verdade é de onde nascem as guerras). É um caminho que Nelson Mandela descreve assim: "O perdão liberta a alma, remove o medo. É por isso que é uma arma poderosa". "O perdão arranca dos círculos viciosos, rompe com a coação em repetir sobre os outros o que foi sofrido sobre si próprio, com a cadeia da culpa e da vingança, rompe a simetria do ódio" (Hannah Arendt). Às ofensas é possível reagir de forma antitética com a vingança ou com o perdão. Aquele que escolhe o primeiro caminho acredita que o mal sofrido possa ser "reparado" com outro mal. Usa o mal como um agente de cicatrização. Mas, então, serão duas feridas, não mais uma, a sangrar: "olho por olho. Se fosse aplicada essa lei, o mundo seria cego" (Kalil Gibran). Com o perdão, ao contrário, aciona-se um mecanismo que pode levar àquele milagre da história que foi a África do Sul de Mandela no final do apartheid, com um comprometimento pela justiça e pela reconciliação. A busca e o reconhecimento da justiça, em primeiro lugar: porque o perdão não deve ser confundido com o sofrimento silencioso frente aos abusos, com a aceitação da injustiça, como infelizmente foi por muito tempo pregado principalmente para os sujeitos mais fracos, fossem eles mulheres ou crianças abusadas, camponeses ou trabalhadores explorados pelos patrões. Justiça antes e, depois, reconciliação.

Somos mais do que a história que nos deu à luz, podemos ir além do episódio que nos feriu. É claro que somos também aquela história e com ela temos que fazer um acerto, não simplesmente colocar uma pedra sobre o passado, esquecer: isso seria remoção, não perdão. Não acertar as contas com nosso passado torna-nos perigosos: as feridas ainda permanecem abertas e somos reféns daquele mal que continua a agir, mesmo que de forma inconsciente. A cura não necessariamente vai sarar a ferida, mas pode nos fazer entender que nem todo o mundo segura uma faca pronta para nos atacar. Existem, sim, mãos que acariciam ao lado de outras que nos golpeiam. Se você não perdoar, vive alimentando seu ressentimento e a vida se torna azeda, você sente que a vida lhe roubou algo e não será capaz de gratidão nem de surpresa. O perdão na Bíblia, como na vida, é um assunto sério.

Não faça como o cãozinho que lambe a mão que antes o bateu. Nem sempre é possível restaurar o relacionamento com quem nos feriu, nem sempre é oportuno fazê-lo. Não é possível pedir a uma vítima de estupro para perdoar seu agressor até se reconciliar com ele. Seria inoportuno. É possível chegar ao perdão, a conceder e receber o perdão, sem que isso comporte o restabelecimento de um relacionamento, de um contato. A própria Bíblia relata histórias onde as feridas são tão graves que não é possível restabelecer uma relação, como quando é envolvido o luto. Se você matar alguém, nunca mais poderá restabelecer a relação. Mas você poderá trilhar um caminho para que as novas relações sejam diferentes. O perdão na Bíblia, como na vida, é um assunto sério. Estamos acostumados a uma imagem banal do perdão, mediada pela espetacularização da dor. Quem já não testemunhou a cena do clássico repórter de televisão que coloca o microfone na frente de um rosto destruído pela dor e profere aquela pergunta obscena, indecente: você perdoa o assassino de seu filho? Isso reduz o perdão a um simples fato emocional, para ser jogado ao espetáculo da audiência, sem respeito pelo sério, longo e complexo processo de perdão, que não se resolve magicamente, não acontece como um fenômeno natural, mas precisa de amadurecimento, implica risco, impõe escolhas.

O perdão não é um sentimento, é uma decisão. Não faz a sua aparição como um moto espontâneo do coração, exige decisão, perseverança e mudança. Perdoar não é uma posição ideológica - se você é um crente, tem que saber perdoar. É, antes, uma sabedoria originada pela vida, um discurso feito a partir da gramática da condição humana. Perdoar o mal recebido como uma tentativa de restabelecer relações que permitam prosseguir, de forma positiva, na vida, de ser feliz - se não totalmente, pelo menos o suficiente - para entender que a vida é um dom e não um fardo, um engodo. Perdoar não é esquecer. É abrir ao futuro. A necessidade de perdão é a necessidade de não carregar para sempre o fardo dos nossos erros, das feridas, dos fracassos, de não encerrar ninguém, nem a si próprio nem aos outros, dentro de prisões perpétuas internas, mas de libertar o futuro.

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