Crise nas livrarias: Insistindo no erro até encontrar o fracasso

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04 Março 2017

"Vamos dar uma volta antes de falar da crise das livrarias? Acho que vale a pena", escreve Haroldo Ceravolo Sereza, jornalista e editor da Alameda Editorial, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo e ex-presidente da Liga Brasileira de Editoras (LIBRE) de 2011 a 2015, em artigo publicado por PublishNews, 02-03-2017.

Eis o artigo.

Essa história é de quando eu trabalhava n’O Estado de S. Paulo, no começo dos anos 2000. Poucos anos antes a direção do Jornal da Tarde implementou um modelo de fazer jornalístico que exigia a figura do “personagem”. No jargão jornalístico, “personagem” é uma pessoa comum que “encarna” a notícia. Por exemplo, se há um crescimento no número de pessoas que estudam japonês na cidade, o “personagem” a ser apresentado é um típico paulistano da Mooca, preferencialmente com sotaque italiano, que gosta de ler mangás originais. Ele vai explicar porque acha importante ler mangá. A notícia ideal nesse modelo não é “cresce o número de escolas de japonês” em São Paulo, mas “Antonio Carcamano está aprendendo japonês para ler mangás”. Se a inflação está crescendo por causa dos hortifrútis, a “personagem” é a dona de casa que está parando de comprar tomates por causa do preço. E por aí vai.

Parece bacana, né? Mas pense num jornal inteiro assim: fica repetitivo, superficial e, quase sempre, preconceituoso.

Bom, o fato é que a direção do Jornal da Tarde aproveitou um momento de crescimento e apostou no modelo. Os mais animados falavam em “new jornalism”, os mais burocratas gritavam aos repórteres: “Cadê a personagem?! Eu quero a personagem”. Passados alguns meses, resolveram fazer uma pesquisa sobre o que pensava o leitor.

E a resposta foi bastante simples: aquela história de personagem estava enchendo o saco: os cadernos que haviam mergulhado no projeto eram os mais mal avaliados.

A direção do jornal não recuou. Insistiu no projeto. O resultado prático? Bom, muita gente vai dizer que foi a internet que acabou com o Jornal da Tarde, outros dirão que o Estadão nunca deixava ele crescer. Mas o fato é que o Jornal da Tarde não existe mais...

Acabou a historinha. Vamos às notícias.

Comecei falando de jornalismo, mas eu queria mesmo é falar da crise que as grandes redes de livraria estão vivendo. Duas notícias de impacto recentes: a Saraiva estaria negociando a aquisição de ações da Cultura (ou fusão com, como preferem alguns) e a Fnac está decidida a deixar o Brasil.

Essa crise é uma bola cantada. Muita gente vai culpar a Amazon, mas vamos pensar os casos isoladamente. As dificuldades da Cultura são, de fato, as mais difíceis de lidar. Isso porque ela é, ainda, um canal importante de venda de livros e está na memória afetiva de todo leitor paulistano. Quem não comprou livros lá certamente desejou isso.

Quem acompanha o mercado há alguns anos sabe que o modelo de crescimento da Cultura baseou-se em um tripé: abertura de lojas em profusão (inclusive com financiamentos do BNDES), imposição de condições cada vez mais duras aos fornecedores (ampliação do desconto e dos prazos de pagamento) e venda de espaços nas lojas.

A venda de espaços começou quando eu ainda era apenas jornalista. Foi adotada por Saraiva, Nobel e Laselva. A Cultura negava. Um dia liguei para a Cultura, porque me chegara por e-mail sobre as condições e preços das vitrines. A Cultura negou tudo. Disse que era mentira, que o e-mail era falso. Deixei o jornal antes de a matéria ser concluída, mas pouco depois a mesma apuração foi feita pela Folha, por outro repórter. Nela, Pedro Herz, o dono do negócio, reconheceu o que dizia que não existia e tratou como algo “normal”.

A reação da Cultura a meu telefonema mostrava que era incerto aquele caminho. A livraria sempre se pautara por ser uma referência não só comercial, mas também cultural. Quando a vitrine passa a ser organizada não de acordo com o interesse cultural ou comercial imediato, mas na lógica do marketing, a aura da Cultura começava a se perder.

Mas isso faz mais de treze anos. O processo de mercantilização da livraria foi lento e progressivo. Em 2010, ajudei a organizar uma Primavera na Cultura, uma exposição de editores independentes associados à Libre (Liga Brasileira de Editoras) na rede.

Foi um trabalho pesado de negociação e a conversa, na verdade, frustrante: não apenas o espaço reservado ficou muito aquém do inicialmente imaginado, como a conversa de um dos diretores com os editores, num dos eventos que organizamos, mostrou que as lojas da rede seriam cada vez menos abertas, na prática, à edição independente. Nunca mais repetimos o evento.

Anos depois, cheguei a discutir, numa reunião em minha editora, quando a Amazon ainda ameaçava entrar no Brasil, um projeto de valorização da bibliodiversidade com representantes da Livraria Cultura. Não avançaram. A cada nova loja que a Cultura abria, mais distante ficavam os compradores dos editores independentes. Mais prazo era exigido e também mais descontos. Havia algo de errado no caminho escolhido.

Uma visita a meia dúzia de lojas da Cultura mostra outro problema da rede formada: ela não é homogênea. O problema da rede é que ela se sustenta como projeto econômico quando a compra é centralizada. Isso reduz os custos da operação e facilita as negociações com margens maiores. O problema desse projeto é que ele exige que a ponta também seja semelhante: o público de uma loja tem de ser parecido com o de outra, para que a compra centralizada seja acompanhada por um resultado de vendas positivo em todas as pontas da rede. Mas basta visitar as lojas dos shoppings Vila Lobos, Iguatemi, Bourbon e Market Place e a livraria do Conjunto Nacional, todas em São Paulo, para perceber que os frequentadores são cultural e socialmente diversos o suficiente para não procurarem os mesmos livros. Imagine então quando estamos no centro do Rio, na livraria do cine Vitória, ou nas lojas de Fortaleza e Porto Alegre...

A Saraiva definitivamente não é minha livraria como consumidor e sequer vende os livros da Alameda (mesmo no site). A rigor, ela não é uma livraria, mas uma loja que vende livros, o que parece a mesma coisa, mas não é. Porém, a seu favor, há uma homogeneidade nas lojas suficiente para que os mesmos livros fiquem bem confortáveis no shopping Higienópolis ou West Plaza. Em Brasília, Rio, Salvador: toda vez que vou a uma Saraiva, sinto que estou num lugar para um público que existe em todos esses lugares; quando vou à Cultura do Iguatemi, eu não consigo imaginar como um espaço tão grande pode render, vendendo livros, o suficiente para se manter.

Especialmente para um público que vai ao shopping para comprar bolsas de milhares de reais – não há livros nesse preço, como sabemos (caro no Brasil é a bolsa Louis Vuitton, registre-se).

Ainda não falei sobre a Fnac, talvez porque seja muito difícil pensar a Fnac hoje como uma livraria. A livraria era apenas um puxadinho num negócio de venda de aparelhos eletrônicos a preços altos e qualidade média. Como livraria, que é o que nos interessa, a Fnac sequer era um negócio: os livros estavam lá talvez por tradição, talvez porque o modelo foi pensado ou adaptado unindo as duas pontas. Mesmo as iniciativas culturais, como o prêmio Fnac-Maison de France, foram escasseando. Assim, a Fnac há muito tempo não era um local de venda a sério de livros.

As dificuldades dessas grandes redes, por outro lado, são uma oportunidade para as livrarias independentes. Isso está acontecendo nos Estados Unidos e pode ocorrer aqui também.

Não se trata, no entanto, de uma tarefa simples. Passa por uma leitura mais refinada do público frequentador e de como incrementá-lo organicamente, da manutenção de um acervo e de uma seleção de livros que seja interessante para o comprador habitual de livros e não apenas para o leitor de best-sellers (muitas vezes a mesma pessoa, diga-se, mas que pende um dia para um lado, outro para o outro) e, sobretudo, pela convicção de que os títulos disponíveis e a informação precisa são mais relevantes do que um bom café ou um giro de capital rápido, mas infiel.

A livraria como um espaço cultural, com sua lógica tradicional, de encontro e de surpresa que a internet não pode proporcionar: esse é o desafio que está posto para quem quer se recuperar e para quem quer se construir como alternativa.

Evidentemente esse assunto não se esgota assim: a crise é uma ótima oportunidade também para repensarmos a urgência da lei do preço único do livro, que as redes tanto bombardearam, criando dificuldades para si mesmas, que agora se mostram tão explícitas.

Mas esse tema fica para um outro texto.

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