Eleições: A dominação persiste, se a liberdade confiar só na lei

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28 Setembro 2016

"O direito a liberdade, em tempos como os de hoje no Brasil, frequenta quase todo o interesse midiático dominado por um paradoxo: o de ser cada vez mais necessário e urgente privar-se do seu gozo e exercício qualquer brasileira/o suspeita/o de colocar em risco a segurança de alguém, seja indivíduo, grupo, coletividade, ou patrimônio", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.

Eis o artigo.

Trata-se de uma circunstância interessante para se formular um juízo crítico sobre um direito humano fundamental como esse, considerada a sua manifesta dependência do nível de emprego e renda das pessoas, a conhecida e polêmica dependência econômica da liberdade. Em época de eleições, esse juízo pode ser feito sobre as propostas das/os candidatas/os, o grau de conhecimento e compromisso que elas revelem para garanti-la de fato e de direito.

A história do tratamento legal do direito a liberdade no Brasil demonstra como a sua evolução padeceu, comparada com a de outros países. O dia 28 deste setembro relembra duas leis sancionadas no país, a propósito, ainda durante o Império. A de nº 2040, de 1871, denominada lei do ventre livre, e a 3.270, de 1885, denominada do sexagenário. A primeira reconhecia como libertos quem nascesse de escrava a partir da sua promulgação e a segunda o escravo que alcançasse sessenta anos de idade, daí terem sido essas leis identificadas de acordo com o tempo de vida dos seus novos beneficiários.

O que chama a atenção em ambas são as dificuldades opostas à liberdade em tudo aquilo que esse direito possa ameaçar ou diminuir qualquer vantagem alegadamente atribuída ao poder econômico do direito de propriedade alheio. A criança nascida de escrava, pela lei do ventre livre, dava direito ao senhor da mãe, “ou de receber do Estado a indenização de 600$000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos. No primeiro caso, o Governo receberá o menor e lhe dará destino, em conformidade da presente lei. (parágrafo primeiro do primeiro artigo da lei).

A lei do sexagenário -  imagine-se quem poderia chegar nessa idade sob um regime de escravidão e que serviço ainda poderia prestar -  criou um fundo de emancipação destinado a acumular recursos para indenizar os senhores de escravos libertados por força desta idade e, no parágrafo segundo do seu artigo 3º, determinava: “Não será libertado pelo fundo de emancipação o escravo inválido, considerado incapaz de qualquer serviço pela Junta classificadora, com recurso voluntário para o Juiz de Direito. O escravo assim considerado permanecerá na companhia de seu senhor”.

Como se essa “nova” condição fosse vantajosa para o inválido. Iniquidades desse nível, figurando sem qualquer pudor em lei, ainda podem e devem ser recordadas nos dias de hoje? 28 de setembro ainda deve nos servir de aviso guardarem algum resquício de existência atual? – Basta uma visão livre de ingenuidade sobre o verdadeiro poder da lei e da ideologia liberal sobre a liberdade ainda devida a índias/os, quilombolas, sem-terra e sem-teto para se dar uma resposta afirmativa a essas dúvidas.

Preconceitos arraigados, culturas socialmente separadas, o gosto pela posição econômica, aceita como mérito individual dotado de superioridade,  a vaidade do exibicionismo favorecido por dinheiro e posses, o culto fetichista da aparência e da moda, mesmo quando todo esse acúmulo tenha sido viabilizado com exploração do trabalho alheio, não se vencem com previsões legais generosas como as previstas na nossa Constituição Federal sobre direitos humanos fundamentais sociais. Isso não se deve apenas a diferenças morais existentes entre as classes ricas ou de estrato médio contra as pobres, mas de uma alienação nutrida por ignorância ou interesse classista; no primeiro caso quase sempre herdada, as vezes até inconsciente e, no segundo, induzida por um sistema econômico de predomínio do capital, que Milton Santos chamou, com razão, de responsável por uma “pobreza produzida”, feita por uma classe sobre outra, indiferente aos seus injustos efeitos sociais.

As eleições e as propostas das/os candidatas/os oferecem, então, uma oportunidade rara para o eleitorado formar juízo sobre como pretendem se posicionar diante de uma realidade como essa, sem os óculos de sombra do despiste ou do fingimento calculados para não perder votos de quem se sinta incomodado pela crise que ela permanentemente gera. Uma das respostas mais combatidas pelo conservadorismo político-econômico, interessado em manter o poder econômico sobre o poder político e jurídico, como está acontecendo agora no Brasil, desde o golpe contra a presidenta Dilma, continua sendo a do humanismo socialista, mesmo sob as mil faces positivas ou negativas a ele atribuídas, tanto por ideologias de esquerda como de direita.

Em 1965, a Edições 70 publicou em Lisboa uma série de artigos, assinados por Herbert Marcuse, Ernst Bloch, Umberto Cerroni e outros, sob o titulo Humanismo Socialista. Na introdução, Erich Fromm afirmou, com a sua conhecida precisão:

Marx confiou que a classe operária levaria à transformação da sociedade por ser ao mesmo tempo a classe mais desumanizada e alienada e, potencialmente, a mais poderosa, uma vez que o funcionamento da sociedade dela dependia. Não previu o desenvolvimento do capitalismo até ao ponto em que a classe trabalhadora haveria de prosperar materialmente e partilhar do espírito capitalista, enquanto o conjunto da sociedade se alienaria em grau extremo. Jamais suspeitou da alienação da abundância que pode ser tão desumanizada como a alienação da pobreza.

Pode-se discutir se Marx chegou a suspeitar ou não dessas duas alienações, mas a realidade parece indicar que a alienação de toda a sociedade “em grau extremo”, frequentemente refletida nas eleições, é talvez a principal causa dos vícios responsáveis pela crescente desmoralização da democracia representativa, dependente do resultado delas. É que a alienação da abundância, indiferente à da pobreza, impõe a continuidade da sua dominação. Pode até ter sido amenizada, mas jamais foi vencida de todo, mesmo no caso de a lei, como acontece no Brasil, “garantir” o direito a liberdade de todas/os as/os brasileiras/os, independentemente de sua condição econômica.

Não adianta só a palavra gritar a urgência e a necessidade de vencerem-se todas essas alienações. Dar um voto a favor daquela continuidade equivale aceitar como conveniente, política e juridicamente boa e justa, uma alienação de abundância desumanizada, só pelo fato de ela, de acordo com o juízo majoritário e corrente, alienado também em grau extremo, estar amparada pela lei, por mais que essa disponha de modo diferente. Se as próximas eleições conseguirem empoderar, mesmo parcialmente, a mudança desse juízo na maioria do povo, já terão prestado um bom serviço para ele e para o Brasil.

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