Os exercícios espirituais de María Antonia de Paz y Figueroa, "mãe" dos jesuítas

Mais Lidos

  • “A destruição das florestas não se deve apenas ao que comemos, mas também ao que vestimos”. Entrevista com Rubens Carvalho

    LER MAIS
  • Povos Indígenas em debate no IHU. Do extermínio à resistência!

    LER MAIS
  • “Quanto sangue palestino deve fluir para lavar a sua culpa pelo Holocausto?”, questiona Varoufakis

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

24 Agosto 2016

No próximo dia 27 de agosto, em Santiago del Estero, será beatificada a serva de Deus argentina María Antonia de Paz y Figueroa (1730-1799), que, como religiosa, escolheu para si o nome de María Antonia de San José. A sua figura é traçada em um artigo publicado na revista La Civiltà Cattolica, de autoria do jesuíta argentino Diego Fares, do qual publicamos aqui um amplo resumo.

O texto foi publicado no jornal L'Osservatore Romano, 23-08-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Podemos dizer que a imagem de María Antonia que passou para a história é a de uma personagem singular. Como episódio anedótico, recorda-se que, depois da expulsão dos jesuítas, ocorrida em 1767, María Antonia se dedicou a difundir os exercícios espirituais. Ela organizou sessões muito lotadas deles, nas quais ocorreram milagres de multiplicação de pães para aqueles que realizavam os exercícios e para os pobres.

É menos conhecido o fato de que as suas cartas e os seus escritos – especialmente o fascículo El estandarte de la mujer fuerte – foram divulgados e traduzidos pelos jesuítas da Companhia suprimida. Recorda-se o seu apelido, "Mama Antula", diminutivo de Antonia, que, tendo já caído em desuso, perdeu a conotação carinhosa com que ressoava aos ouvidos dos seus contemporâneos.

Para contextualizar a figura de María Antonia na sua época, é necessária uma breve reflexão sobre o marco geopolítico e sobre o que a expulsão da Companhia de Jesus significou para os povos latino-americanos.

A expulsão dos 2.630 jesuítas que operavam no território da coroa espanhola na América foi, segundo os documentos oficiais da época, uma operação "perfeita": de fato, ela não vazou e foi realizada simultaneamente em todo aquele imenso território entre a noite do dia 31 de março e do dia 2 de abril de 1767. Esse fato dá uma ideia do que significava ser governado por um poder central, que, há 300 anos, dirigia a vida de grande parte do continente americano. Era um poder muito distante para influir sobre muitos aspectos da vida cotidiana das colônias, que desenvolveram uma vida cultural própria, mas decisivo no momento de dividir um território, de dirigir de modo unitário toda a atividade comercial, de impor ou de remover uma autoridade ou, como no caso dos jesuítas, de cancelar em dois dias um trabalho de 200 anos.

Se observarmos em que contextos María Antonia passou a sua vida, notamos que a sociedade em que ela crescera havia sido protegida, em grande medida, das guerras europeias e organizada em um todo unitário durante os 234 anos de vida do vice-reino do Peru. Essa sociedade se tornaria parte de um vice-reino do Rio da Prata, menor e de breve duração (34 anos) e, depois, participaria nas vicissitudes das guerras de independência e das visões políticas das novas nações.

A cidade de Buenos Aires, em que María Antonia desenvolveria por 19 anos o seu trabalho apostólico, era, na sua chegada, a esplendorosa capital do novo vice-reino. As cidades dos vastos territórios da América do Sul eram pequenas: Buenos Aires contava com 37.679 habitantes (de acordo com o primeiro censo de 1778); Córdoba tinha 40.000; Santiago del Estero, mais ou menos 30.000; Salta, um pouco mais de 10.000. Na segunda metade do século XVIII, a população de todo o território em que María Antonia viveu era de cerca de 400.000 habitantes.

Pois bem, calcula-se que essa mulher organizou exercícios espirituais inacianos para mais de 100.000 pessoas. Nos dez dias de silêncio, oração e humilde serviço recíproco, em grupos de 200 ou até de 400 pessoas, conviviam vice-rei e servidores, bispos, sacerdotes e leigos, que María Antonia, como verdadeira mãe de todos, reunia e cuidava com diligência. Essa convocação, que mobilizava toda uma sociedade em torno de uma prática exigente como a dos exercícios, indicava um povo unido e de forte identidade.

A ruptura política com o passado colonial fez com que, de algum modo, caísse no esquecimento aquela memória que podemos chamar de "cultural". É uma memória que, ao contrário, nunca se deveria perder, porque é uma riqueza que dá identidade a uma sociedade, além das próprias mudanças políticas. María Antonia é uma figura daqueles que servem de ponte entre o passado da "Pátria grande" e o presente da nação Argentina.

No momento da expulsão dos jesuítas, nas províncias de Buenos Aires, Córdoba e Tucumán, a Companhia de Jesus tinha 60 casas, 14 das quais eram colégios; dirigiu 16 reduções no Rio Uruguai, 13 no Paraná, oito no Gran Chaco, 10 entre os índios Chiquitos. Os jesuítas eram 457, dos quais 53 alemães, 17 italianos, 4 ingleses; 81 eram crioulos, e, os restantes, 300 espanhóis.

É difícil avaliar o impacto da expulsão dos jesuítas sobre a sociedade do vice-reino do Rio da Prata. A acolhida recebida pela proposta de María Antonia de fazer os exercícios espirituais de Santo Inácio pode fornecer um indicador valioso – individual e coletivo – de como o povo de Deus apreciava os seus pastores. É preciso dizer que a Pragmática Sanção, com a qual o rei expulsou os jesuítas dos seus territórios, nos artigos 13-19, impunha severos castigos àqueles que se atrevessem a manter relações com eles, mesmo que apenas por correspondência; com isso, se queria "apagar a memória" dos jesuítas. Portanto, afirmamos que a resposta popular à proposta espiritual de María Antonia foi muito significativa, se for lida na chave de "conservar a memória".

O padre Guillermo Furlong, no seu livro Los Jesuitas y la cultura rioplatense, observa que, entre 1586, ano em que os primeiros jesuítas chegaram a Santiago del Estero, e 1767, ano da sua expulsão, naquelas regiões austrais, trabalhavam mais de 1.000 jesuítas, dos quais pelo menos 300, em vida e depois da morte, foram considerados pelo povo como homens santos e de virtudes heroicas. Outros 400 se distinguiram por uma dedicação fora do comum. Esses homens são em sua grande maioria desconhecidos, mas a sua obra de conjunto pode ser reconhecida pelos seus frutos.

Quando são contempladas as Ruínas jesuíticas, sem dúvida, aprecia-se o trabalho de construção e de organização política das reduções do Paraguai, da Argentina e do sul do Brasil. Mas não de menor amplitude foi o trabalho de inculturação que os jesuítas realizaram, aprendendo línguas e costumes dos povos que evangelizavam.

Nos documentos da Companhia, recorda-se a reunião que, em setembro de 1578, em Cuzco, o visitante padre Juan de la Plaza teve com os padres José de Acosta (provincial), Juan de Montoya, Jerónimo Ruiz del Portillo, Alonso de Barzana e Luis López . Naquela ocasião, foi disposto que, nas missões e nos colégios, se facilitasse a aprendizagem das línguas para os jesuítas.

O padre Barzana encorajou a aprendizagem sistemática das línguas em todo o vice-reino. Ele começou o estudo do quéchua em Sevilha, em 1567, enquanto estava esperando para embarcar para Lima, na primeira expedição de jesuítas. Abriu-se-lhe um novo campo de ação nas línguas aymara e puquina, com a fundação de casas na missão de Juli em 1577 e na cidade de La Paz (na atual Bolívia) em 1582. Enviado para Tucumán (atual Argentina) em 1585, lá ele aprendeu as línguas tonocoté e kakana, nas quais deixou notas manuscritas de gramática e de catequese. Destinado a Assunção em 1594, começou a aprender o guarani aos 64 anos de idade.

Por outro lado, podemos imaginar a satisfação de Nicolás Yapuguay, cacique da aldeia de Santa María la Mayor (hoje Misiones, Argentina), considerado o melhor escritor guarani da sua época, quando teve em mãos o primeiro exemplar do seu livro Explicación del catecismo en lengua guaraní (1724), impresso na sua tipografia, que, há 24 anos, estava em funcionamento no território que ele governava (enquanto em Buenos Aires não houve nenhuma até 1780).

Naquela tipografia de fronteira, com caracteres de chumbo em guarani, que imprimia em papel a tradução do catecismo feita por um cacique indígena, se podia reconhecer aquela que hoje chamamos de "inculturação do Evangelho" e "evangelização da cultura". A imagem desse livreto de catecismo se assemelha à de María Antonia, que se dedicava, por sua vez, a outro livreto: o dos Exercícios de Santo Inácio. Livro que, como já foi dito, não se lê, mas se pratica. A representação tradicional de María Antonia a mostra segurando em uma mão o livro dos Exercícios Espirituais e, na outra, a cruz.

É significativo o fato de que todo o espírito que os jesuítas tinham posto nas reduções, nas fazendas, nos colégios e nos templos, nas atividades agrícolas, educacionais, de organização econômica, política, artística e religiosa desapareceu, por assim dizer, em um instante. Todo esse desdobramento de forças não foi retomado pelos seus sucessores. As reduções, transformadas em "famosas" Ruínas, são como que um grito de pedra devorada pela floresta, que mostra a todos que esse espírito deixou de arder nas obras. A imagem silenciosa de uma sociedade inteira que pratica os seus exercícios espirituais é outro grito silencioso, índice de um espírito que havia incendiado o coração do povo fiel.

Os escritos que falam sobre como María Antonia foi aceita em Buenos Aires (1780-1799) – depois das fortes oposições pelo fato de ela ser mulher pobre que organizava coisas que normalmente os jesuítas faziam – retratam-na em tom materno, levando-a em alta consideração. Todo o povo contribui com os exercícios levando esmolas, alimentos e cobertas. Bispos, governadores e vice-reis apoiam María Antonia, concedem-lhe todas as licenças que pede, ajudam-na em todos os sentidos, aplainam o seu caminho... e fazem os exercícios.

As pessoas acorrem em massa àquelas casas, das quais ela é verdadeira mãe, porque ela se preocupa em deixar todos à vontade, para que possam fazer bem os seus exercícios. Todos os sacerdotes fazem os exercícios. As autoridades se misturam com as pessoas comuns. O bispo de Tucumán dizia: "Os jesuítas foram expulsos, mas não o seu espírito. Nunca, como no tempo da "Mama Antula", os exercícios espirituais de Santo Inácio foram o alimento sólido e corroborante das multidões, tanto em Buenos Aires quanto em Montevidéu, em Tucumán, em Santiago del Estero e em Córdoba. Aquela mulher forte, vestida com um hábito semelhante ao dos jesuítas, substituiu a ação dos jesuítas".

O método que a futura bem-aventurada usava consistia em se apresentar, logo que chegasse – caminhando descalça – às autoridades da cidade, para pedir a autorização. Depois, distribuía bilhetes de convite nos bairros; pedia a algum sacerdote para pregar os exercícios (nisso, ela tinha um bom olho e sabia escolher os melhores); buscava uma casa grande, capaz de hospedar muitas pessoas (os grupos ultrapassavam as 100 pessoas, e María Antonia chegou a reunir mais de 400 por vez). Ela também recolhia esmolas e provisões, e se encarregava do necessário para as refeições de todos, para os dez dias de exercícios. Levando em conta aqueles que ajudavam com as esmolas e o número de cursos de exercícios que eram realizados, pode-se afirmar que essa prática envolvia toda a população de cada cidade e contava com o apoio explícito das autoridades civis e religiosas, enquanto o clero local intervinha para as pregações, as missas e as confissões.

Mas a prerrogativa fundamental do modus operandi de María Antonia era o seu afeto materno, que soube se expressar de mil maneiras. A principal característica era sempre a de sair em busca dos seus filhos. E, uma vez que os reunia, María Antonia se preocupava que não lhes faltasse nada. Sem desperdícios, ela fazia com que tudo saísse bem: oferecia uma comida saborosa e, às vezes, um doce para alegrar aqueles que faziam os exercícios; e parte do que era cozinhado sempre ia aos pobres.

Em uma das suas cartas ao padre Gaspar Juárez (1731-1804), ele também nascido em Santiago del Estero e exilado em Roma, com quem manteve uma constante amizade espiritual, María Antonia escrevia sobre a sua missão: "Sobre o início, eu não sei, só Deus sabe como é que essa inspiração entrou em mim tão fortemente". Ela mesma contava isso ao vice-rei Cevallos, em 1777, nestes termos: "Vossa Excelência deve saber que, a partir do mesmo ano em que os padres jesuítas foram expulsos, vendo a carência de ministros evangélicos e de doutrina que havia, e os meios para promover, dediquei-me a deixar o meu retiro e saí – embora mulher de pouca importância, mas com confiança na Providência divina – pelas jurisdições e pelos distritos, com a vênia dos senhores bispos, para recolher esmolas para manter os santos exercícios espirituais do grande Santo Inácio de Loyola, para que não perecesse por completo a sua obra tão útil às almas e de tanta glória para o céu".

Resta-nos a imagem dessa sua força, que María Antonia define como "inspiração que entrou nela tão fortemente" e que encontrou uma resposta tão grande por parte de uma sociedade que vivia um momento de transição para uma nova identidade política.

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Os exercícios espirituais de María Antonia de Paz y Figueroa, "mãe" dos jesuítas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU