Tortura, modelo exportação. Livro desvenda conexão entre adido militar e os porões da ditadura

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07 Julho 2016

Eram longas e bucólicas cavalgadas, pelos arredores de Brasília, o influente general brasileiro fazendo eventual companhia ao experiente coronel francês, a quem emprestava, aliás, o alazão Comanche, xodó da estrebaria. 

Dialogavam animadamente e temas de conversação é que não lhes faltava, já que os dois militares se interessavam por cavalos, mulheres e tortura – não necessariamente nesta ordem. Até a garçonnière na capital federal o general brasileiro disponibilizava para o sôfrego coronel gaulês. 

A reportagem é de Nirlando Beirão, publicada por CartaCapital, 07-07-2016.

A frutífera convivência prolongou-se de 1973 a 1975, período em que o coronel francês serviu como adido militar na embaixada em Brasília. Seu interlocutor nativo chegaria poucos anos depois, embasado no know-how dos calabouços, à Presidência da República. 

O coronel Paul Aussaresses, veterano do Vietnã e da Argélia, tinha o que ensinar ao seu parceiro de cavalgadas: o general João Figueiredo, à época chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI).

E não apenas ao chefão dos arapongas e torturadores. Protegido atrás da fachada institucional da embaixada, a missão de que Aussaresses veio se desincumbir no Brasil foi a de ensinar aos janízaros da ditadura a mais eficaz, selvagem, violenta tecnologia de interrogatórios e de assassinato a sangue-frio desenvolvida em razão da chamada “guerra contrarrevolucionária”. 

Fez palestras na Escola Nacional de Informação (Esni), em Brasília, mas foi no Centro de Instrução de Guerra na Selva, em Manaus, que pôde dissertar mais sistematicamente sobre sua expertise, já que o CIGS vivia assombrado pelo fantasma de guerrilheiros marxistas-leninistas escondidos na floresta. Profissional dos porões, ainda assim o francês Aussaresses acabou eleito presidente da Associação dos Adidos Militares no Brasil. 

Os franceses desenvolveram a doutrina no confronto contra as colônias sublevadas no pós-Guerra. Primeiro, na Indochina (onde Aussaresses serviu no Grupamento dos Comandos Aerotransportados, sob o comando do tenente-coronel Roger Trinquier, o principal teórico da contrainsurreição). 

Depois, operou na Argélia como braço direito do famigerado general Jacques Massu, que comandou a repressão à guerra de independência (que naquela França ainda ferida em suas suscetibilidades políticas pela derrota militar foi por anos e anos dissimulada pelo eufemismo de “acontecimentos da Argélia”, de “manutenção da ordem”, de “pacificação”).

Todo e qualquer tipo de acobertamento acerca do que se passou no Maghreb ruiu por terra quando Paul Aussaresses, gozando de sua aposentadoria num vilarejo da Alsácia e prestigiado por honrarias como a Legion d’Honneur, a mais nobre comenda da França, e pelo tributo por sua pedagógica passagem pelo Brasil, agraciado que foi com a Ordem do Rio Branco (grau de Comendador) e pela Medalha do Mérito Militar, decidiu sair da sombra e contar a verdade sobre o que passou na Argélia.

Em Service SpéciauxAlgérie 1955-1957, publicado em 2001, o agora general reformado fazia menos um mea-culpa e mais o atestado de sua convicção: a tortura é, sim, uma arma de combate, uma contumaz política de governo, um solerte instrumento do poder.

De todo modo, era primeira vez que um oficial de alta patente reconhecia as barbaridades cometidas na Argélia pelo Exército francês: a tortura sistemática, as execuções sumárias, a matança pelos esquadrões da morte de líderes do Front de Libération Nationale (FLN). 

A escritora e jornalista brasileira Leneide Duarte-Plon, que reside em Paris, passou a se interessar mais ainda por esse enigmático homme de l’ombre – oficial da área de informação – quando, em depoimento ao livro Escadrons de la Mort, L’École Française (Esquadrões da Morte, a Escola Francesa), de Marie-Monique Robin, Paul Aussaresses detalhou a exportação das técnicas de tortura da “guerra contrarrevolucionária”. Em particular, para o Brasil e para os países da América do Sul onde passou a funcionar a franquia de terror apelidada de Operação Condor.

Ali estava comprovada, no livro de Marie-Moniquer Robin, a contribuição da “doutrina francesa”, professada por figuras do porte de um Massu, um Trinquier, um Aussaresses, aos regimes de exceção da América Latina. Leneide Duarte-Plon decidiu, em 2004, perscrutar a alma e a trajetória do ex-adiado em Brasília. Solicitou-lhe uma entrevista. Nada. 

Abordou o general por ocasião do lançamento em Paris de seu segundo livro, assinado com o jornalista Jean-Charles Deniau e arriscadamente intitulado de Je N’Ai Pas Tout Dit (Eu Não Disse Tudo). Aussaresses finalmente acedeu. À medida que falava com seu futuro personagem, Leneide revirava os relatórios antes secretos do então coronel-adido, enviados do Brasil – e hoje arquivados no Château de Vincennes

Teve de conseguir uma autorização especial do Ministério da Defesa. Fuçou outros documentos tão melindrosos que nem permissão de fotografar ou fotocopiar a pesquisadora conseguiu. “Tudo que interessasse deveria ser copiado a lápis, em um caderno, diante dos olhos vigilantes de um funcionário”, conta ela. O resultado está neste A Tortura como Arma de Guerra – Da Argélia ao Brasil, que a Civilização Brasileira lançou esta semana.

No prefácio, Vladimir Safatle constata a maneira simétrica de atuar, seja na Argélia francesa, seja no Brasil. “Até nas formas de esconder assassinatos, os discursos oficiais, os regimes de desaparecimento de corpos são os mesmos. 

Se lembrarmos que, no Brasil, tortura-se mais hoje do que na época da ditadura militar (segundo estudos da socióloga norte-americana Kathryn Sikkink), ficará claro como tal tanatopolítica é base normal de nossos modos de governo mesmo além de situações explícitas de ditadura.”

A França torturava o inimigo externo. O Brasil violenta sua própria população. A França relutou em encarar os abusos do passado – mas foi forçada a isso (Aussaresses, que morreu em dezembro de 2013, aos 95 anos, não chegou a ser condenado, mas perdeu sua Legion d’Honneur). 

O Brasil jogou sua guerra suja para baixo do tapete – quando ela não é, ao contrário, exaltada publicamente pelos brucutus saudosos da ditadura.

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