Uma CPI a serviço do agronegócio

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Por: Cesar Sanson | 29 Abril 2016

"A CPI foi instaurada com o objetivo de impedir a demarcação de terras indígenas, a titulação de territórios quilombolas, bem como para atacar diretamente os direitos constitucionalmente assegurados a esses sujeitos". O comentário é de Fernando Prioste, advogado popular da Terra de Direitos, em artigo publicado por Terra de Direitos, 28-04-2016.

Segundo ele, "um dos seus principais objetivos é inviabilizar a efetivação de direitos a terra para quilombolas e indígenas, atendendo aos interesses de empresas privadas que necessitam de grandes extensões de terras para seus empreendimentos, e que vêm nos direitos quilombolas e indígenas um impedimento a sua expansão".

Eis o artigo.

Quando Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, em 28 de outubro de 2015, instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para “investigar a atuação da Fundação Nacional do Índio – FUNAI e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA na demarcação de terras indígenas e de remanescentes de quilombos” ficou evidente para a sociedade quais os seus reais objetivos políticos.

Não é difícil entender que a CPI foi instaurada com o objetivo de impedir a demarcação de terras indígenas, a titulação de territórios quilombolas, bem como para atacar diretamente os direitos constitucionalmente assegurados a esses sujeitos. Segundo os termos de sua instalação, a CPI pretende investigar:

a) os critérios para demarcação das terras indígenas e titulação dos territórios quilombos;
b) conflitos sociais e fundiários no processo de demarcação de terras indígenas e titulação de territórios quilombolas;
c) o relacionamento da FUNAI e do INCRA com outros órgãos públicos e com organizações não governamentais;
d) apurar denúncias de interesses do setor imobiliário referente à demarcação de áreas de remanescentes de quilombos.

Nessa linha, para justificar a instalação da CPI seus autores sustentam:

a) pretensa fragilidade e a inconstitucionalidade do Decreto Federal 4.887/03, bem como supostas práticas fraudulentas no processo de titulação dos territórios quilombolas;
b) suposta ilegalidade das regras de demarcação das terras indígenas;
c) suposta atuação irregular de órgãos públicos, do Ministério Público Federal e de organizações não governamentais que atuam nos temas indígenas e de quilombos;
d) o processo de demarcação da terra indígena Mato Preto e de titulação dos quilombos Osório e Maquiné – ambos os três situados no Rio Grande do Sul.

É uma CPI contra direitos, contra a Constituição que reconhece esses direitos e, fundamentalmente, contra a possibilidade dos povos indígenas e comunidades quilombolas poderem continuar a viver com dignidade e autonomia conforme seus costumes.

Uma CPI contra a Constituição

A Constituição Federal de 1988 é fruto de intensos debates e mobilizações sociais populares, tendo sido debatida e aprovada no contexto da transição da ditadura militar para um regime de governo que buscava constituir-se como uma democracia presidencialista. Mas, é importante lembrar que essa “Constituição Cidadã”, como então a chamavam, contou com a presença de 23 senadores não eleitos pela população, posto que indicados pela ditadura, bem como por deputados e senadores que apoiavam e sustentavam a ditadura militar.

Mesmo diante desse cenário adverso, povos indígenas e comunidades quilombolas, em função de suas lutas, conquistaram na Constituição o reconhecimento de direitos à terra. Contudo, apesar das históricas conquistas e passados quase 28 anos da promulgação da Constituição, as políticas públicas de titulação de territórios quilombolas e demarcação de terras indígenas andam a passos muito lentos, como é de conhecimento geral.

As políticas públicas, de regularização fundiária, direcionadas a quilombolas e indígenas não avançam por um complexo feixe de fundamentos, os quais têm origens na construção colonial do Estado brasileiro, pautada fundamentalmente em políticas de promoção da produção de commodities agrícolas para exportação deste o século XVI. Do tempo dos engenhos de cana-de-açúcar ao moderno agronegócio, não houve espaço na terra e no Estado para povos indígenas e comunidades quilombolas. Se no passado colonial, indígenas e quilombolas eram escravizados, hoje, mesmo com direitos à terra, assegurados na Constituição, são perseguidos pelo agronegócio, pela classe patronal rural decadente e pela classe política a estes sujeitos ligados.

Os deputados, Alceu Moreira (PMDB/RS – presidente da CPI), Luis Carlos Heinze (PP/RS -1º Vice-Presidente ), Valdir Colatto (PMDB/SC – Sub-Relator), são reconhecidamente atores políticos que atuam em favor de grandes grupos econômicos ligados ao agronegócio. Os referidos deputados receberam financiamento, para campanha eleitoral de 2014, da Friboi, Fibria, Associação Nacional da Indústria de Armas, da Bunge entre outras empresas que têm interesses diretamente opostos à efetivação de direitos à terra de quilombolas e indígenas.

Diante desse quadro, é necessário reconhecer que, a despeito do que consta no documento oficial de instalação da CPI, um dos seus principais objetivos é inviabilizar a efetivação de direitos a terra para quilombolas e indígenas, atendendo aos interesses de empresas privadas que necessitam de grandes extensões de terras para seus empreendimentos, e que vêm nos direitos quilombolas e indígenas um impedimento a sua expansão. Atualmente 1% dos proprietários de terras no Brasil detém 49% do total de propriedades rurais, mas a ganância do agronegócio não quer dar espaço para direitos quilombolas e indígenas.

É por esse motivo que a CPI tem entre seus objetivos investigar critérios para demarcação das terras, ou seja, a Constituição e as leis que reconhecem direitos a indígenas e quilombolas. Assim, não as supostas irregularidades cometidas pelo INCRA e pela FUNAI no processo de reconhecimento desses direitos que são alvos da CPI, mas os direitos em si. As maiores irregularidades cometidas pelo INCRA e pela FUNAI estão mais relacionadas à extrema lentidão nos processos de reconhecimento de direitos territoriais de comunidades quilombolas e povos indígenas. Mas essa questão não será objeto de investigação.

CPI contra a Constituição: quem perde é a democracia

Um CPI montada por deputados que são financiados por empresas que claramente se opõem aos direitos territoriais de indígenas e quilombolas e que, nesse sentido, atuam de forma a limitar a realização desses direitos, ou mesmo retirá-los do ordenamento jurídico, é um verdadeiro ataque à democracia.

A conquista obtida por quilombolas e indígenas em 1988, constitucionalizando direitos à terra para esses povos, não pode ser atacada por empresas do agronegócio e por deputados por elas financiados sem que se ataque, também, a própria democracia. Antes da Constituição de 1988 quilombolas nunca tiveram qualquer direito a terra reconhecido em normas jurídicas, e os povos indígenas tinham direitos que não serviam minimamente para garantir a sobrevivência dos povos por seus próprios costumes. Dessa forma, o ataque ruralista à Constituição é um ataque a uma conquista histórica que não é apenas de quilombolas e indígenas, mas de uma sociedade que busca construir a possibilidade de viabilizar a esses povos, historicamente massacrados pelo Estado e pelos setores ligados à agricultura de exportação de commodities.

Em tempos em que o Governo Federal busca se defender de um golpe de Estado a serviço dos interesses dos mesmos grupos econômicos e da casta política que sistematicamente atacam direitos das comunidades quilombolas e povos indígenas, é evidente a necessidade de enfrentar com força a CPI do agronegócio. Nesse sentido, apesar das valorosas contribuições da deputada Érika Kokay (PT-DF), bem como dos deputados Nilto Tatto (PT-SP), Marcon (PT-RS), Edmilson Rodrigues (Psol-PA), Glauber Braga (Psol-RJ) e Adelmo Carneiro Leão (PT-MG), entre outros, os ruralistas e seus deputados não têm encontrado dificuldades para avançar.

Faz-se necessário que o Governo federal, bem como os partidos políticos que apóiam as causas quilombola e indígena, se posicionem com força política para impedir o avanço ruralista. A defesa firme dos direitos de quilombolas e indígenas, bem como do INCRA e da FUNAI é pressuposto para que os movimentos sociais populares, entre outros setores sociais do campo popular possam atuar com força para garantir a democracia.

Não é apenas a CPI que ataca quilombolas e indígenas

Antes da CPI contra indígenas, quilombolas e seus direitos, o agronegócio e seus deputados já os atacavam. Como exemplos, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239, a PEC 215, o sucateamento institucional do INCRA e da FUNAI, bem como a falta de recursos financeiros para fazer frente às necessidades do referidos órgão para efetivar os direitos à terra. Nesse contexto a CPI do agronegócio tem também a função de reforçar politicamente os demais ataques ruralistas aos direitos dos quilombolas e indígenas.

Até o momento a CPI do agronegócio não trouxe nada de novo no cenário de lutas entre o agronegócio e quilombolas e indígenas. Os depoimentos de Dênis Rosenfield e Edward Luz (expulso da Associação Brasileira de Antropologia em 2013), entre outros convocados pelos deputados ruralistas, só fizeram repetir o que há muito o agronegócio já diz. Atacam o procedimento normativo do INCRA e da FUNAI, questionam o papel da Fundação Cultural Palmares, sustentam a inconstitucionalidade do Decreto Federal 4887/03, bradam contra o direito de autorreconhecimento de identidades coletivas e atacam os laudos antropológicos produzidos por servidores do INCRA e da FUNAI, entre outros ataques.

Essas questões postas na CPI pelos depoimentos de pessoas convocadas pelos ruralistas requentam temas que são debatidos na própria Câmara dos Deputados, no Senado, no Executivo Federal e no Poder Judiciário. As convocações dos ruralistas servem apenas para reforçar tais argumentos, de forma a usar o importante instrumento da CPI para fazer eco ainda maior aos interesses dos grupos econômicos que se opõe aos quilombolas e indígenas. Assim, deixa-se de instalar outras CPIs, a exemplo da necessária investigação que deve ser feita no que diz respeito ‘às empresas privadas de planos de saúde’ que, por financiarem campanhas como a do deputado Eduardo Cunha, não são alvo de investigação na Câmara dos Deputados.

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