Sobre a antropologia das mudanças climáticas. Um diálogo com Thomas Hylland Eriksen

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27 Fevereiro 2016

A literatura tradicional sobre as tendências da globalização não leva suficientemente a sério a singularidade de cada localidade, diz Thomas Hylland Eriksen, antropólogo, professor na Universidade de Oslo, Noruega, e presidente da European Association of Social Anthropologists (EASA).

Descrevendo a sua pesquisa, ele informa: "Somos um grupo de pesquisadores que têm feito um trabalho de campo em muitos locais ao redor do mundo; tentamos produzir material etnográfico que seja comparável para que possamos usá-lo para criar – se é que eu posso ser um pouco pretencioso aqui – uma história antropológica do começo do século XXI. Estamos, portanto, dando duro para criar uma análise da situação global vista a partir debaixo".

E completa: "O que nos interessa é a antropologia das respostas locais às mudanças globais". Ele ilustra: "A metáfora que uso geralmente é a de um cientista social que se senta em um helicóptero com um par de binóculos e observa o mundo. Esse seria o caso de autores como Anthony Giddens e Manuel Castells. Por outro lado, temos pessoas que trabalham com lupas. Estamos tentando aproximar esses dois níveis".

A entrevista é de Dasa Licen, publicada por Eurozine, 08-02-2016. A tradução de Isaque Gomes Correa

Eis a entrevista.

Você tem um blog, um vlog onde fala sobre o seu campo de trabalho. Além disso, escreve artigos e ensaios bastante acessados. Você parece crer que os meios de comunicação são muito importantes para a antropologia.

Eu penso que os antropólogos deveriam estar mais cientes de como eles são percebidos pelo público mais amplo. Infelizmente, há décadas em muitos lugares tem havido um certo afastamento, uma retirada da antropologia da esfera pública. Existem muitas questões candentes, desde mudanças climáticas a políticas identitárias, ou mesmo debates sobre a natureza humana, onde os antropólogos não se fazem presentes como poderiam. Nem sempre foi assim.

Se voltarmos a algumas gerações, há muitos antropólogos que foram também intelectuais no espaço público. Eles eram visíveis, bem conhecidos, escreviam livros que as pessoas liam, participavam de debates políticos, e assim por diante. Lembremos da estudiosa Margaret Mead, lá da década de 1960: as suas pesquisas eram polêmicas, mas ela conseguiu pôr a antropologia no mapa engajando-se em debates importantes. Atualmente, existem discussões relevantes onde os antropólogos teriam muito a oferecer, no entanto eles estão, mais ou menos, ausentes.

Um exemplo óbvio é a política identitária, ou de identidade, mas também podemos pegar os debates sobre a natureza humana. Em muitos países ocidentais, esses temas foram monopolizados pelos biólogos evolucionistas ou psicólogos. As coisas que os antropólogos dizem sobre a natureza humana são bem diferentes, e ainda que sejamos bem bons em criticar a sociobiologia e perspectivas evolucionistas entre nós mesmos, raramente saímos por aí e apresentamos a nossa mensagem nuançada a um público mais amplo.

É um fato surpreendente que o antropólogo mais famoso, hoje, não é antropólogo. Ele é o ornitólogo e fisiologista chamado Jared Diamond, tendo escrito best-sellers sobre de onde viemos e para onde vamos. O seu mais recente livro, chamado “The World until Yesterday”, é uma espécie de tratado antropológico sobre outras culturas, povos tradicionais e sobre o tipo de sabedoria que estes têm a contribuir para com o mundo moderno.

O seu livro não foi muito bem recebido por antropólogos, porque ele toma algumas coisas como certas. Ainda que não tenha a formação de um antropólogo, Diamond emprega fontes antropológicas e se faz o tipo de questionamento que nós nos fazemos. Ele, porém, consegue fazer isso de um jeito que deixa as pessoas querendo ler os seus livros. Deveríamos aprender com exemplos assim.

Todos conhecemos o caso do médico que está caminhando pela rua e enxerga uma pessoa machucada: ele deve oferecer ajuda. Você acha que algo parecido se aplica aos antropólogos diante das crises globais?

Acho que sim. Em meu próprio trabalho, tento abordar dois grandes conjuntos de questões. Um deles é sobre até que ponto podemos aplicar a antropologia como um instrumento para compreender o mundo contemporâneo. É disso o que se trata o meu projeto “Overheating”.

O segundo é uma questão mais ampla: Como é ser humano? Há dois grupos de respostas. Um deles diz: ora, um ser humano é um pequeno galho em um ramo na grande árvore da vida. Essa é a história da evolução e, embora ela gere alguns insights importantes, deixa de fora um conjunto diferente de perguntas sobre a subjetividade e as emoções humanas. Estou falando das complexidades da vida, de todas as lutas existenciais com as quais os seres humanos se defrontam. Essa perspectiva gera um conjunto inteiramente diferente de respostas, as quis são a base do que fazemos como antropólogos. Ao abordá-las, podemos contribuir para uma visão mais nuançada do que é ser um humano.

Não somos apenas homo economicus, criaturas meramente maximizadoras e, embora os instintos possam ser importantes para a compreensão do nosso comportamento, não somos conduzidos por eles, mas estamos imersos em uma rede de aspectos adicionais. Não somos também somente animais sociais... Clifford Geertz insistia que os seres humanos são primariamente animais autodefinidores. Uma tal perspectiva capacita não só para uma melhor compreensão das realidades das vidas humanas como também tem as suas implicações morais.

Quais seriam elas?

Deixe-me lhe dar um exemplo. Um dos meus alunos de doutorado trabalha na zona rural de Serra Leoa. Trata-se de um lugar muito cobiçado, no sentido de que os chineses e outros investidores estrangeiros estão chegando, abrindo minas, novas estradas estão sendo feitas... Para muitos, isso significa oportunidades; para tantos outros significa miséria. O meu aluno pergunta a um morador: “Então, como você explica estas mudanças que estão acontecendo em sua comunidade nos últimos anos?”, ao que a pessoa apenas dá de ombros e diz: “Bem, cara, você sabe, é o global”. Nós temos que tentar descobrir o que exatamente ele quer dizer quando afirma: “é o global”.

Este é o objetivo do projeto Overheating mencionado antes?

O que estamos tentando fazer com o projeto Overheating é preencher uma lacuna na literatura sobre a globalização: estamos tentando dizer algo geral sobre o que chamo o choque das escalas: a dicotomia entre o geral e o local. A grande escala é o mundo do capitalismo global, o meio ambiente e os Estados-nações; por outro lado, existem as vidas das pessoas que vivem em suas próprias comunidades.

Somos um grupo de pesquisadores que têm feito um trabalho de campo em muitos locais ao redor do mundo; tentamos produzir material etnográfico que seja comparável para que possamos usá-lo para criar – se é que eu posso ser um pouco pretencioso aqui – uma história antropológica do começo do século XXI. Estamos, portanto, dando duro para criar uma análise da situação global vista a partir debaixo.

O seu projeto parece tão amplo que quase soa como uma antropologia de tudo...

Nem tanto. É a antropologia da crise global percebida localmente. Digamos que você viva na Austrália e, de repente, uma empresa mineradora chega na vizinhança e altera o ecossistema. Daí você se pergunta: “Quem eu posso culpar e o que posso fazer?” Esse é o tipo de pergunta que muitas pessoas fazem quando se confrontam com as mudanças em grande escala que afetam a sua comunidade local. Os nossos informantes não distinguem entre o meio ambiente, a economia, a identidade já que isso tudo interage e afeta a vida local. O que nos interessa é a antropologia das respostas locais às mudanças globais.

Então, está tentando desenvolver um entendimento antropológico da globalização?

Sim. Eu acho que um dos atalhos da literatura convencional a respeito da globalização é que a singularidade de cada localidade não é levada a sério o suficiente: o local se faz presente em grande parte na forma de anedotas das vidas das pessoas. O problema dos estudos antropológicos da globalização muitas vezes tem sido o contrário: aprofundamo-nos muito em um lugar e negamos a perspectiva mais ampla. Estamos tentando perceber a lacuna em ambas as abordagens. A metáfora que uso geralmente é a de um cientista social que se senta em um helicóptero com um par de binóculos e observa o mundo. Esse seria o caso de autores como Anthony Giddens e Manuel Castells. Por outro lado, temos pessoas que trabalham com lupas. Estamos tentando aproximar esses dois níveis.

A gravidade do aquecimento global vem sendo negada por antropólogos, na verdade ela vem sendo negada por todas as ciências sociais há um bom tempo.

Isso está mudando. A antropologia das mudanças climáticas se tornou numa das grandes atividades de crescimento na academia, assim como foram grandes a etnicidade e o nacionalismo nas décadas de 1970 e 1980. Você é da Eslovênia, e sabe da dissolução da Iugoslávia, que nos pegou de surpresa, conosco precisando entender o que estava acontecendo.

O genocídio de baconteceu por volta do mesmo período; nacionalistas hindus chegaram ao poder na Índia, contradizendo tudo o que pensávamos que sabíamos sobre esse país; polêmicas surgiram em torno da migração, do multiculturalismo, da diversidade, do Islã na Europa ocidental. Depois da virada do milênio, a questão das alterações climáticas veio a ser compreendida como um outro nível no topo dessas problemáticas.

Quando você desenvolveu o interesse pelas mudanças climáticas?

Isso aconteceu há muito muitos atrás, mas demorou alguns anos para que eu tivesse a oportunidade de olhar para essas questões interconectadas de modo mais atencioso. Não somos geofísicos, não sabemos muito sobre CO2, não podemos prever a temperatura do mundo. O que podemos fazer é estudar como as pessoas respondem, como reagem, como falam sobre o tema e o que fazem.

O perigo em torno das mudanças climáticas é que ela possui consequências profundas e, no entanto, é difícil encontrar alguém que possamos culpar. Por exemplo: digamos que você está num pequeno município ou aldeia nos Andes, no Peru, e percebe que tem algo estranho com a água. Ela não está como costumava ser. Você nota que as geleiras estão derretendo e, então, sabe que a empresa mineradora abriu uma unidade de operação ali perto. Pensa que a empresa é que deve ser responsabilizada, porque eles provavelmente bombearam toda a água e desestabilizaram o clima local e, assim, vai até eles dizendo: “Ei, vocês estão tirando a nossa água. Nós queremos uma indenização”, e eles então dizem: “Desculpem, não somos nós, são as mudanças climáticas”. Onde se pode ir para resolver essa questão? Escrever uma carta ao Obama, ou outra para os chineses?

A preocupação com as mudanças no clima pode ser muito grave no sentido de que se cria uma sensação de impotência. Temos apenas de deixar as coisas acontecerem. Por esse motivo, tenho me interessado em ver como o envolvimento ambiental começa com coisas que estão dentro do nosso alcance. Provavelmente eu não possa fazer nada com relação à mudança climática, mas talvez consiga salvar algumas árvores, ou os golfinhos no porto. É assim que se inicia o envolvimento.

Você sente uma tal impotência quando fala sobre o aquecimento global e lhe perguntam: “Então, qual a sua solução?”

Boa pergunta. Acho que nós todos temos de encontrar o melhor jeito de agir onde estamos. Não é como se você ou eu tivesse a responsabilidade de salvar o planeta, ou que você será um fracassado caso não seja capaz de salvá-lo.

Lembro que quando era aluno, tive uma professora cristã devota que fora criada por missionários no Japão. Ser um missionário cristão no Japão pode ser muito difícil porque as pessoas não estão, geralmente, interessadas em evangelização. Essa professora nos falou de um companheiro cristão que havia passado toda a sua vida atuando como missionário naquele país e que tinha tido sucesso em converter uma única pessoa, o que o fez sentir que valeu a pena todo esse tempo. Ele sentiu que salvar uma alma compensou bastante os 50 anos de trabalho duro.

Não devemos ser ambiciosos quanto ao que somos capazes de alcançar. Podemos participar em debates públicos, acrescentar uma gota de complexidade, uma gota de dúvida. Talvez às vezes isso é o suficiente, ou melhor, talvez isso é tudo o que podemos fazer.

Como antropólogo, você não deve sair por aí julgando as pessoas. No entanto, às vezes é extremamente difícil evitar o julgamento quando, por exemplo, somos confrontados com formas obtusas de negação das mudanças climáticas.

Tradicionalmente, os antropólogos não são tão bons em pensar de si mesmos como sujeitos engajados; somos ensinados a não julgar, a apenas apresentar os fatos e dizer: bem, é assim que o mundo se parece e é por essas coisas que ele faz sentido para essas pessoas e não para aquelas outras.

Eu acredito que esse paradigma, esse tipo de paradigma relativo caiu por terra. Uma tal abordagem pode não mais funcionar exatamente pelas razões que eu estava sugerindo: estamos agora todos no mesmo barco. Então, não tem mais motivo para se fazer distinções rígidas entre os estudiosos e o público mais amplo, pois estamos todos encarando os mesmos desafios radicais. Todos nós fazemos parte do mesmo espaço moral e, às vezes, precisamos assumir uma postura ética ou política, qualquer outra coisa seria irresponsabilidade. Temos, porém, de encontrar um equilíbrio entre esse tipo de envolvimento e a nossa credibilidade como pesquisadores.

De volta à sua pergunta: quando pesquiso as pessoas que negam a realidade das mudanças climáticas, preciso levar a sério o ponto de vista delas. Muitas dessas pessoas acreditam no paradigma ou no progresso, no industrialismo e assim por diante. Para mim, este é o dilema fundamental da civilização contemporânea: o crescimento econômico e a sustentabilidade ecológica. Não há motivo algum para que alguém tenha a resposta. Quando me perguntam o que fazer, digo: “Desculpa, mas eu estou tentando descobrir a resposta junto com você. Eu não tenho a resposta”.

Você provavelmente conhece Slavoj Zizek, ele é mais famoso do que a Eslovênia. Zizek tem uma disputa em curso com Dipesh Chakrabarty a respeito de uma questão relacionada: Será que devemos primeiro fazer algo sobre o aquecimento global ou deveríamos nos envolver na luta revolucionária? Zizek crê que as mudanças no clima não podem ser resolvidas do lado de fora da emancipação global. Por outro lado, Chakrabarty insiste na necessidade de se firmar um compromisso histórico em nível global. Qual a sua posição nessa polêmica?

Essa é uma pergunta muito interessante. De um lado, percebo que a maior tensão na civilização contemporânea é que aquele entre o crescimento econômico, que por duzentos anos tem se baseado nos combustíveis fósseis, e a sustentabilidade. Os combustíveis fósseis foram uma bênção para a humanidade. Eles criaram as bases para a vida moderna. No entanto estão agora se transformando em uma catástrofe, uma ameaça à civilização. Fica difícil de ver esse tema a partir do ponto de vista de uma perspectiva progressivista clássica.

Essa problemática liga-se fortemente a uma outra contradição: a tensão entre uma política baseada em classes e a política verde. O que é mais importante, fazer algo a respeito da desigualdade ou salvar o clima mundial? Às vezes simplesmente não se pode buscar os dois objetivos ao mesmo tempo. Trabalhei na Austrália, num lugar onde praticamente todos atuam direta ou indiretamente na indústria. Eles têm uma enorme hidrelétrica, uma enorme fábrica de cimento, um enorme centro industrial. Pouquíssimas pessoas têm algum envolvimento com o meio ambiente para falar a respeito. Não existe nada nos jornais locais sobre mudanças climáticas.

Tudo tem a ver com crescimento industrial e empregabilidade. Ser um ativista ambientalista nesse país é muito difícil porque os vizinhos não vão gostar. Por outro lado, o país tem um movimento de base com ideias socialistas bastante fortes. Onde morei, as pessoas enxergam a política verde como algo que soa como assunto de classe média. Tem um sentimento generalizado de que a política ambientalista é uma hipocrisia.

Onde eu me encontro? Penso que salvar o clima é o principal. Mas ele deve ser buscado junto com uma preocupação com a justiça social. A primeira prioridade tem de ser criar empregos sustentáveis. Se tiramos fora um milhão de empregos, temos de recriá-los em outro lugar. Isso me leva ao que penso poder ser uma resposta, caso Zizek a soubesse, a saber: a escola antropológica chamada economia humana.

Há um antropólogo inglês muito criativo que trabalha na África do Sul chamado Keith Hart. Ele parte dessa perspectiva.

David Graeber está dentro dessa mesma ideia, vendo alternativas econômicas viáveis ao neoliberalismo mundial. Não estamos falando sobre um socialismo estatal aqui: você é da Eslovênia – é jovem demais para se lembrar –, mas o socialismo de Estado não fez as pessoas muito felizes e nem foi bom para o meio ambiente.

O ponto é que precisamos falar sobre a economia em termos de necessidades humanas. O objetivo da economia é satisfazer as necessidades humanas; não só as suas necessidades materiais, mas também a necessidade de fazer algo significativo, de ser útil às pessoas, ver os resultados do que se está fazendo. O objetivo da economia não é somente gerar lucros, mas tentar combater a exclusão.

Você certa vez escreveu que a esquerda carece de um entendimento do multiculturalismo e de conhecimento sobre o meio ambiente, e que ela tende a negligenciar esses dois campos que são extremamente importantes neste momento. Essa afirmação não deveria nos surpreender, dado que, nos países ocidentais, esses temas se tornaram quase sinônimo para movimentos de esquerda?

De fato, as coisas estão mudando. Este é provavelmente um dos motivos por que Slavoj Zizek fica furioso às vezes, pois ele se identifica com a esquerda, mas a esquerda tem abandonado as suas posições. Penso que muitos de nós temos o mesmo sentimento de estar ideologicamente desabrigados.

Durante 200 anos, a esquerda teve sucesso em promover a igualdade e a justiça social, supondo que o crescimento econômico fosse crescer indefinidamente. Então, na década de 1980 surgiu o multiculturalismo. A esquerda tentou se apropriar dele, tentou promover a diversidade, mas não teve sucesso, porque os movimentos esquerdistas eram bons em promover a igualdade, não a diferença.

Em seguida, temas ambientais vieram como um outro fator para complicar o quadro geral. O que se faz quando tem-se que escolher entre a política de classes e a política verde? Provavelmente fica-se do lado da política de classes, mas daí se percebe que ela faz parte do problema, especialmente se se vive em um país rico, como eu, onde a classe trabalhadora voa para o sul da Europa todos os anos, indo de férias, dirigindo carros, comendo carne importada e assim por diante. Aqui existe um grande dilema. De novo, devo insistir que eu não possuo uma resposta final, mas, pelo menos, se identificamos o problema, podemos dar pequenos passos na direção certa.

A propósito, discordo incisivamente do que Zizek diz sobre o multiculturalismo. Sempre que faz brincadeiras nesse sentido, ele produz uma caricatura do multiculturalismo, em vez de uma paródia – o que, com razão, é o seu objetivo. Ele realmente não sabe do que está falando. Ele sabe de muitas coisas, mas o multiculturalismo não é um dos seus pontos fortes.

Zizek desenvolve uma interpretação positiva da tradição judaico-cristã a partir de uma perspectiva de esquerda. Você acha que essa tradição, que enxerga a Terra como, em última análise, condenada, põe um problema para o ambientalismo?

Boa pergunta. Provavelmente existe algo a respeito da forma na qual muitas pessoas falam sobre as mudanças climáticas que se assemelha a estas ideias judaico-cristãs concernentes ao fim dos tempos. Nós estamos nos aproximando do fim, estamos nos aproximando da fase final. Pensemos sobre a popularidade de filmes pós-apocalípticos em ficção científica. Essa onda começou no início da década de 1980 com os filmes de Mad Max, havendo também uma série de Hollywood e de outros cinemas sobre o mundo depois do apocalipse. Há um verdadeiro gosto por este tipo de narrativa. Num texto que estou escrevendo neste momento, cito T.S. Eliot, que escreve que o mundo termina não com uma bomba, mas com um gemido. Não tem um antes e um depois.

Muitos dos revolucionários comunistas mantinham ideias quiliastas semelhantes: as coisas irão piorar cada vez mais, e então, depois da revolução, tudo vai ficar bem. Mas já temos cerca de 200 anos de experiência com revoluções, e sabemos que elas tendem a reproduzir muitos dos problemas que, antes, queriam resolver, e, além de tudo isso, elas criam outros problemas novos. Peguemos por exemplo a Primavera Árabe no Norte da África e no Oriente Médio. Acho que é muito perigoso se comportar como se a história tivesse uma direção.

Isso tem relação com a questão mais ampla do papel da civilização humana na história ambiental do planeta. Você emprega o termo antropoceno, no entanto alguns acham-no inadequado na medida em que ele põe os humanos no centro, não só como a fonte do problema que estamos enfrentando e também como sendo mais importante do que todo o resto sobre o planeta. O que pensa sobre isso?

Alguns cientistas pensam em termos das mudanças que caracterizam o antropoceno e, ao mesmo tempo, enfatizam que os humanos e não humanos estão, realmente, em uma relação simbiótica. Eu não tenho muita paciência para esse tipo de discussão, especialmente se pensamos no estado do mundo em tempos de mudanças climáticas, com enormes empresas extrativistas, com o boom da mineração mundial como consequência das economias chineses e indianas crescentes e com a explosão também do fraturamento hidráulico (o “fracking”), que parece nos ter presenteado com um fornecimento indefinido de combustíveis fósseis.

Penso ser irresponsável questionar a responsabilidade da humanidade. E no entanto, por mais que eu adore o meu gato e reconheça que os humanos e animais domésticos coevoluíram, nós devemos perceber que os seres humanos são especiais. Nem um chimpanzé – e nem o mais inteligente dos golfinhos – é capaz de dizer: “Bem, o meu papai era pobre, mas pelo menos foi honesto”. Somente os seres humanos podem criar essa sentença: o nosso senso de responsabilidade moral é único e devemos viver de acordo com ele.

Por falar em responsabilidade moral: sei que você teve um papel importante na interpretação do ataque terrorista promovido por Breivik [terrorista cristão da extrema-direita norueguesa].

Sim. Eu passei cerca de três semanas depois do ataque praticamente só falando com jornalistas estrangeiros e escrevendo artigos para jornais de fora do país. Eles me contataram não só porque venho escrevendo sobre política de identidade e nacionalismo, mas também porque Breivik não gostava muito de mim. Ele me vê como um símbolo de tudo o que há de errado na Noruega, uma espécie de adorador islâmico covarde multiculturalista de classe média, cosmopolita e efeminado. Vem havendo um endurecimento; a polarização está muito mais forte agora do que o era 20 anos atrás.

Na década de 1990, as pessoas que diziam coisas como eu digo sobre a diversidade cultural talvez seriam acusadas de serem ingênuas, enquanto que nos últimos anos estamos sendo cada vez mais acusados de traidores – o que é diferente. Breivik me citou cerca de quinze vezes em seu manifesto e no seu vídeo no YouTube. Pode-se dizer que ele tinha uma leve obsessão por mim. Eventualmente acabei sendo chamado pela defesa para ser testemunha no julgamento.

Originalmente, os psiquiatras que examinaram Breivik concluíram que ele era louco. Ele deveria ter recebido tratamento psiquiátrico e, assim, não poderia ser punido pelo que fez. É claro, até certo ponto a pessoa tem de ser louca para matar tantos jovens inocentes. Mas as ideias dele não eram o resultado de um transtorno mental; elas são amplamente compartilhadas. Temos sítios eletrônicos na Noruega, com 20 mil visitas por semana, que estão entre os sítios favoritos dele. A defesa quis me chamar como testemunha para testificar que, embora ele possa ser um assassino, as suas ideias são muito comuns, que são compartilhadas por milhares de outras pessoas, o que é verdade. Mas, no fim, não precisei ir porque eles tinham uma longa lista de testemunhas e só usaram algumas delas.

Ficou com medo com esse tipo de exposição?

Não, não fiquei. Mas nas primeiras semanas após o ataque terrorista, quando todos na Noruega estavam em estado de choque, notei que algumas pessoas na universidade, pessoas que eu sabia que raramente viriam até mim, estavam se comportando de uma forma mais polida comigo.

Percebi que elas estavam pensando ser a última vez que poderiam estar me vendo, pois eu provavelmente seria o próximo da lista. Depois as coisas voltaram ao normal. Nunca se consegue se sentir inteiramente seguro. Breivik nos lembra que até mesmo um punhado de gente pode trazer um imenso dano, assim como o ataque terrorista nos Estados Unidos em 2001. Essa situação deixou provavelmente a sociedade um pouco menos confiante, um pouco mais preocupada. Mas eu não penso sobre a minha própria segurança pessoal. Sobre a segurança de minha família, sim, mas não a minha própria. Não se pode fazer isso. Agir assim seria permitir que os outros vençam.

Você diria que a Noruega aprendeu alguma coisa com esta tragédia?

Infelizmente não. Tivemos uma chance para que aprendêssemos algo, e muitos de nós estávamos esperando que um ataque assim nos fizesse compreender que a ideia de pureza étnica é absurda, maluca e não praticável neste século. Esperávamos que poderíamos agora nos reunir para sentar e discutir essas questões de um modo mais comedido, sério e equilibrado, mas isso não aconteceu. Foi preciso apenas algumas semanas para que a polarização política usual voltasse. Pelo contrário, as pessoas que eram contrárias à imigração se tornaram ainda mais agressivas do que antes. Deixamos passar uma oportunidade.

Você está vindo para Liubliana [capital e maior cidade da Eslovênia] para uma convenção que tem um título provocativo: “Por que o mundo precisa de antropólogos”. Não seria um pouco pretencioso sugerir que o mundo precisa de nós afinal?

Essa é uma pergunta excelente. Eu não sei se o mundo precisa de romancistas, mas ele provavelmente não precisa de poetas. O mundo pode facilmente seguir adiante sem eles. E, no entanto, a necessidade humana por significado é simplesmente tão poderosa quanto a necessidade de alimento e abrigo. O tipo de significado que as pessoas sensíveis e inteligentes podem dar é particularmente importante, quando temos de reformular as principais perguntas.

Eu às vezes penso sobre os meus alunos que jamais irão trabalhar como antropólogos. Eles vão encontrar um emprego em outro lugar, mas estudar antropologia os capacita a ler melhor a vida, pois compreendem mais de si mesmos e do mundo. Eu ainda penso que estudar antropologia torna a pessoa melhor: exatamente como ler romances, ela capacita você a se identificar com os outros.

Quando vejo os refugiados no Mediterrâneo, pelos menos sei que poderia ser eu. Pensamos isso porque nos relacionamos com as pessoas de todas as partes do mundo. Acho que o principal tipo de mensagem moral da antropologia talvez seja que toda a vida humana tem valor, não importa o quão estranho a pessoa possa parecer. Então, sim, eu acho que o mundo precisa de antropólogos, tal como ele precisa de romancistas e poetas.

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