Advento: “Voltar ao deserto”

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04 Dezembro 2021

 

"Voltar ao deserto, embora aos nossos olhos mundanos possa parecer a pior das trevas e o total abandono de Deus, corrige Adroaldo Palaoro, 'é a maior graça que Deus pode nos comunicar: conduzir-nos de novo ao deserto, para simplificar, para dialogar, para partilhar... Voltar ao deserto para renunciar as comodidades falsas, para sermos nós mesmos, esvaziar-nos e assim poder viver simplesmente como humanos. É do deserto que surge uma nova 'voz': desafiante, mobilizadora, que nos traz para o essencial; voz que tem forte ressonância em nosso coração'".

 

O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.

 

O "pano de fundo deste tempo litúrgico", conforme explicou o padre jesuíta Adroaldo Palaoro, que semanalmente publica comentários do Evangelho na página eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, "é a experiência bíblica do deserto".

 

O deserto, relembrado na leitura do segundo domingo do Advento, é, ao mesmo tempo, como assinalou Palaoro, "tempo de purificação e de vida em marcha", porque à medida que o Senhor nos purifica, Ele próprio nos coloca a serviço.

 

Entre as várias imagens possíveis para explicar o significado do deserto, Palaoro foi preciso em sua escolha: "O deserto é território da verdade, o lugar onde vivemos do essencial. Ali não há lugar para o supérfluo; ali não podemos viver acumulando coisas sem necessidade; ali não é possível o luxo nem a ostentação. O decisivo é discernir e buscar o melhor caminho para orientar nossa vida em direção à 'Terra Prometida'”. Ele insiste: "Voltar ao deserto: esta é a mensagem chave deste segundo domingo do Advento".

 

 

Voltar ao deserto, embora aos nossos olhos mundanos possa parecer a pior das trevas e o total abandono de Deus, corrige, "é a maior graça que Deus pode nos comunicar: conduzir-nos de novo ao deserto, para simplificar, para dialogar, para partilhar... Voltar ao deserto para renunciar as comodidades falsas, para sermos nós mesmos, esvaziar-nos e assim poder viver simplesmente como humanos. É do deserto que surge uma nova 'voz': desafiante, mobilizadora, que nos traz para o essencial; voz que tem forte ressonância em nosso coração".

 

O deserto também é a experiência da angústia, da tentação, do silêncio e, por que não, da provação, como assinala o jesuíta: "A profundidade da identidade de uma pessoa é testada e experimentada no deserto. O deserto é o grande auditório para ouvir Deus; 'solidão' cheia de presença". Como diz Rilke ao jovem poeta: "é precisamente nas coisas mais profundas e importantes que estamos indizivelmente sós".

 

 

Mas o significado do deserto, como já nos explicou Palaoro em outra ocasião, "não é prioritariamente o penitencial": “'Levá-lo-ei ao deserto e falar-lhe-ei ao coração', tinha dito Oséias (2,16), convertendo o deserto em um lugar privilegiado de encontro pessoal e de escuta da Palavra. Jesus é conduzido ao deserto para acolher a Palavra escutada em seu coração no momento de seu batismo. Ele precisava de tempo para assentar no mais profundo de seu ser uma Palavra que o descentrasse para sempre de si mesmo e o situasse à sombra da ternura incondicional de Alguém maior".

 

 

São João da Cruz não usa meias palavras para descrever o deserto e a aridez da alma em que Deus nos coloca para que possamos ouvir o que Ele quer nos comunicar: ela é "horrenda e espantosa", disse em a "Noite escura". "Muito penosa é esta perturbação, cheia de receios, imaginações e combates, que abriga a alma em si; com a impressão e sentimento das misérias em que se vê, suspeita que está perdida, e igualmente perdidos para sempre todos os seus bens. Donde traz no espírito tão profunda dor e gemido que lhe provoca fortes rugidos e bramidos espirituais, às vezes pronunciados mesmo com a boca, desatando em lágrimas, quando há força e virtude para assim fazer".

 

Se não bastasse tamanha desolação, a alma ainda precisa ser mergulhada na escuridão:

 

"Eis que de repente os mergulha (os principiantes) Deus Nosso Senhor em tanta escuridão que ficam sem saber por onde andar, nem como agir pelo sentido, com a imaginação e o discurso. Não poder dar mais um passo na meditação, como faziam até agora. Submergido o sentido interior nesta noite, deixa-os Deus em tal aridez".

 

Em "A subida do Monte Carmelo: um guia para alcançar o mais alto cume da espiritualidade", o Doctor Mysticus apresenta três sinais para reconhecermos a aridez proveniente da ação de Deus:

 

1. "O primeiro sinal é não poder meditar nem discorrer com a imaginação, nem gostar disso como antes; ao contrário, (o espiritual) só acha secura no que até então o alimentava e lhe ocupava o sentido. Enquanto, porém, tiver facilidade em discorrer e achar sabor na meditação, não a deve deixar, salvo quando a alma estiver na paz e quietação indicadas no terceiro sinal". 

 

2. "O segundo é não ter vontade alguma de pôr a imaginação nem o sentido em outras coisas particulares, quer exteriores, quer interiores. Não me refiro às distrações da imaginação, pois esta, mesmo no maior recolhimento, costuma andar vagueando; digo somente que não há de gostar a alma de fixá-la voluntariamente em outros objetos". 

 

3. "O terceiro sinal, e o mais certo, é gostar a alma de estar a sós com atenção amorosa em Deus, sem particular consideração, em paz interior, quietação e descanso, sem atos e exercícios das potências, memória, entendimento e vontade, ao menos discursivos, que constituem em passar de um a outro; mas só com a notícia e advertência geral e amorosa já mencionada, sem particular inteligência de qualquer coisa determinada".

 

 

É preciso viver a aridez para que o Espírito Santo possa trabalhar:

 

"Se a alma quiser fazer algo com as potências interiores, perturbará os bens que Deus está imprimindo e assentando em seu íntimo, por meio daquela paz e ócio da alma. É como se um pintor estivesse a pintar e a colorir um rosto, e este quisesse mover-se para ajudar em alguma coisa: com isto, não deixaria o pintor trabalhar, perturbando-lhe a obra".

 

Aqui o conselho de Rilke ao jovem poeta é novamente válido:

 

"Mesmo que se engane, o desenvolvimento natural de sua vida interior há de conduzi-lo devagar, e, com o tempo, a outra compreensão. Deixe a seus julgamentos sua própria e silenciosa evolução sem a perturbar; como qualquer progresso, ela deve vir do âmago do seu ser e não pode ser reprimida ou acelerada por coisa alguma. Tudo está em levar a termo e, depois, dar à luz. Deixar amadurecer inteiramente, no âmago de si, nas trevas do indizível, e do inconsciente, do inacessível a seu próprio intelecto, cada impressão e cada germe de sentimento, e aguardar com profunda humildade e paciência a hora do parto de uma nova claridade: só isso é viver artisticamente na compreensão e na criação.

 

 

Aí o tempo não serve de medida: um ano nada vale, dez anos não são nada. Ser artista não significa calcular e contar, mas sim amadurecer como a árvore que não apressa a sua seiva e enfrenta tranquila as tempestades da primavera, sem medo que depois dela não venha nenhum verão. O verão há de vir. Mas virá só para os pacientes, que aguardam num grande silêncio intrépido, como se diante deles estivesse a eternidade. Aprendo-o diariamente, no meio de dores a que sou agradecido: a paciência é tudo".

 

Depois do deserto - e no próprio deserto - vem a consolação e a alegria, anunciada por São João da Cruz em seu poema, "Noite escura", a qual celebraremos igualmente no terceiro domingo do Advento:

 

Essa luz me guiava,
Com mais clareza que a do meio-dia
Aonde me esperava
Quem eu bem conhecia,
Em sítio onde ninguém aparecia.

Oh! noite que me guiaste,
Oh! noite mais amável que a alvorada;
Oh! noite que juntaste
Amado com amada,
Amada já no Amado transformada!

 

 

 

 

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