A alimentação que une e separa. Entrevista com Davide Assael

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06 Dezembro 2021

 

O filósofo judeu Davide Assael editou recentemente quatro episódios do programa de rádio Homens e Profetas com o título geral “Não só de pão. A alimentação que une e separa”. Foi entrevistado sobre os alimentos de origem bíblica e da tradição judaica, com particular referência aos movimentos vegetarianos e veganos contemporâneos, no clima de constantes regurgitações de antissemitismo na Europa.

 

Davide Assael, judeu italiano, fundador e presidente da associação lech lechà, é também professor de filosofia e escritor.

 

A entrevista é de Giordano Cavallari, publicada por Settimana News, 01-12-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis a entrevista.

 

Professor Assael, quais são as referências bíblicas da alimentação judaica?

 

O lugar que a nutrição ocupa na história bíblica é realmente relevante. Podemos relembrar momentos famosos da história, agora pertencentes não apenas ao patrimônio cultural judaico e cristão, mas ao de todo o Ocidente. Vou me limitar a três desses, que são essenciais para traçar o caminho.

O primeiro - muito conhecido - é encontrado no início, nos primeiros capítulos do livro do Gênesis. Adão e Eva se alimentam do chamado fruto proibido da árvore do conhecimento do bem e do mal. No gan Eden - no jardim – alimentavam-se, portanto, de frutas, não de carne. Isso é o que se entende da própria narrativa, bem como no judaísmo, de toda a tradição midrashica de comentários. Notamos, no entanto, que o primeiro momento é caracterizado por uma proibição - ou limite - de natureza alimentar.

Obtemos confirmações a partir do segundo momento do percurso: isto é, a partir da passagem - ainda contida no livro do Gênesis - do chamado dilúvio. Pelo texto sabemos que Deus deu a Noé sete princípios - chamados leis de Noé -, ou seja, aqueles princípios éticos universais referentes a toda a humanidade, de todos os tempos. Um deles - também muito conhecido - é de natureza alimentar, uma vez que proíbe comeranimais vivos”. A partir disso, pode-se deduzir que "antes" do chamado dilúvio a dieta era vegetariana. Ao proibir alimentar-se de animais vivos, admite-se implicitamente a possibilidade de comer animais mortos, como uma concessão feita a uma humanidade que demonstra não conseguir conter os impulsos agressivos. A concessão é, portanto, pedagógica e a finalidade claramente ética.

Encontramos o terceiro momento mais adiante no texto bíblico, ou seja, no livro do Levítico. Aqui - em uma passagem bem específica - são inseridas as listas de animais proibidos de alimentação judaica com os critérios relativos, pelo menos aqueles em parte explicitados. Aqui, de fato, encontramos a definição do que ainda hoje é a alimentação judaica, ou seja, kosher.

 

Bíblia e alimentação judaica

 

O que significa kosher?

 

Kosher significa simplesmente 'adequado'. Não é uma explicação referente apenas à cozinha. Mas para qualquer expressão humana que - para o judaísmo - pode ser considerada precisamente 'adequada' ou não 'adequada': kosher ou não kosher.

 

Você pode explicar os critérios bíblicos aos quais se refere a alimentação judaica?

 

Para explicar os critérios básicos, tenho que recorrer à tradição do comentário, uma vez que a Torá apenas nos dá alguns critérios e, acima de tudo, não nos dá as motivações básicas para justificar tais critérios.

Em primeiro lugar, gostaria de dizer que a classificação animal alimentar do judaísmo é de natureza experiencial e, portanto, só pode ser parcialmente sobreposta às atuais taxonomias. Portanto, estamos tratando, por exemplo, de animais que, de acordo com a experiência humana atual, são conhecidos como 'terrestres', e de animais que, de acordo com a experiência atual, são conhecidos como 'aquáticos' ou 'marinhos'. Pois bem, no que diz respeito aos animais 'terrestres', a Torá diz que só podemos nos alimentar de animais que são ruminantes e têm o casco fendido. Se o animal atende a apenas um dos dois critérios bíblicos, não pode ser considerado kosher.

O exemplo mais conhecido é o porco, que tem o casco fendido, mas não é ruminante e, portanto, não faz parte da dieta kosher. No que diz respeito aos animais marinhos, os critérios indicados pela Torá são ainda dois, ou seja, que tenham barbatanas e que tenham escamas. No que diz respeito às aves, a Torá não nos fornece nenhum critério, mas sim uma longa lista de aves que o judeu pode comer e outras que o judeu não pode comer.

Então, por quê? No mundo judaico, desde sempre se discute em busca de critérios mais gerais - básicos - para justificar aqueles expressamente mencionados na Torá, mas nenhum outro critério - seja de natureza higiênico-sanitária, evolutiva ou de orientação dos animais - parece justificar as listas em sua totalidade. Em última análise, devo, portanto, dizer que kosher na culinária judaica é essencialmente o que é choq: termo da Torá que pode ser traduzido como 'mistério'. Com isso, quero dizer que todos os princípios éticos básicos são intuídos, mas não demonstrados. Eles têm a ver precisamente com o mistério. Eles têm a ver com o divino. No início de tudo está Deus, que prepara um percurso ético muito preciso para o seu povo.

 

Então, qual é o sentido do respeito judaico pelas regras alimentares ditadas pela Torá?

 

Em primeiro ligar, preciso dizer que, no judaísmo, a relação do ser humano com Deus, a relação com a natureza e os seres vivos animais e, naturalmente, com os outros seres humanos, são relações que envolvem uns aos outros. Segundo a tradição bíblica, o amor a Deus se demonstra no amor aos outros e a toda a criação. O sentido da alimentação kosher é substancialmente ético, como já disse e repetirei novamente no decorrer desta entrevista. O sentido está na orientação para as boas relações humanas, para uma boa relação com o meio ambiente e com as criaturas que a ele pertencem e, desta forma, para uma boa relação com o próprio Deus.

Acrescento que - de forma coerente - a alimentação kosher atua como um aparato educativo do desejo humano, de seus impulsos humanos que, como bem sabemos, podem se manifestar de formas muito agressivas e destrutivas. Emancipar o desejo, educá-lo, por um percurso ético que tem um princípio e que tem ponto de chegada no shalom, ou seja, na harmonia de todos os seres vivos: este é o sentido das regras alimentares assim como de todas as Mitswót. A distinção entre puro e impuro - presente em todas as regras alimentares, não apenas judaicas - tem, em última análise, esse único sentido ético.

 

Alimento, religião, normas higiênicas

 

Algumas dessas regras parecem gerar alguns problemas à contemporaneidade: pode falar da questão do abate ritual?

Claro. O abate do ritual judaico - praticamente idêntico ao ritual islâmico - está efetivamente sob ataque hoje na Europa. Eu acredito que o seja porque não é compreendido ou porque não se quer compreender. O ataque vem tanto de grupos de direitos dos animais quanto de movimentos e partidos de viés nacionalista. Entre esses grupos - entre si muito diferentes - foi estabelecida uma espécie de aliança hostil ao judaísmo e, certamente, também ao islã.

 

O Supremo Tribunal Europeu, no final de 2020, certificou a possibilidade de abolir o abate ritual islâmico e judeu. O caso começou na Bélgica. De fato, na Bélgica, buscou-se uma fórmula de lei de compromisso que, no entanto, não foi aceita pelo mundo rabínico, porque não poderia ser. Consideramos que o âmbito alimentar é um dos principais âmbitos em que está se jogando a liberdade religiosa na Europa. É uma questão bastante delicada e importante.

 

É a modalidade como o animal é morto que é problemática?

 

O debate efetivamente gira em torno da técnica de matar o animal. O mundo dos direitos dos animais gostaria que o animal fosse atordoado antes do abate. Já a tradição da Torá quer o uso de uma faca bem afiada, sem serrilhas, destinada a acertar um ponto preciso na nuca do animal, por onde os vasos sanguíneos fluem para o cérebro. A operação deve ser realizada com um único golpe e apenas por um rabino experiente. Há uma grande quantidade de literatura rabínica sobre isso. A prática é chamada de Shechita.

O ponto a ser enfatizado é claramente o sofrimento do animal. Todos concordam que isso deve ser contido ao máximo. Também os rabinos, é claro, o apoiam. Segundo a tradição, evitar o sofrimento animal faz parte daqueles princípios éticos tão óbvios que nem precisam ser explicados. O tratamento do animal, o transporte e o correto abate são aspectos implicitamente entendidos a fim de evitar ao máximo o sofrimento.

Mas também deve ser dito que, por si só, a Shechita não foi pensada para diminuir o sofrimento animal, mas para evitar qualquer hemorragia cerebral ao mesmo: isso é o que acontece inevitavelmente com a prática do atordoamento. A Shechita tem a ver com o sangue e a proibição de se alimentar do sangue do animal abatido. Portanto, tem a ver com as categorias éticas de puro e impuro, em última análise, com o choq, com o 'mistério' do qual falei: com o mistério da vida. Portanto, Deus preparou um caminho ético para seu povo.

 

Muita atenção é dada ao sangue - mas também ao leite - nas regras alimentares judaicas: por quê?

 

A proibição de ingestão de sangue é conhecida. Reside precisamente - como eu disse antes - no princípio da Shechita, do abate. O sangue não pode ser comido porque é evidentemente a substância biológica cuja presença torna animal vivo. Eu diria que a proibição do sangue fortalece o senso de respeito do animal: não podemos nos alimentar de sua vida.

Também é conhecida a proibição da cozinha kosher de misturar carne com leite. Lembramos a passagem "Não cozinharás um cabrito no leite de sua mãe", repetida três vezes na Torá. O leite é o alimento que emancipa o filho da mãe. E o judaísmo - como eu disse - é muito atento ao percurso pedagógico de emancipação do filho de sua origem materna: é um percurso caracterizado pela ética. A origem, neste caso, representa um estado de natureza já degradado, no qual a opressão e a violência ocorreram. Misturar carne e leite significa, assim, interromper esse processo ético de emancipação do desejo e regredir a uma condição não ética, não moral. Não por acaso este é o exemplo típico de uma cozinha dita 'regressiva', não kosher, ou seja, não adequada, não correta, desprovida da devida piedade também pelos animais.

 

Um cristianismo substitutivo

 

Qual é a natureza histórica da crítica cristã à alimentação judaica?

 

A relação geral entre o cristianismo e o judaísmo evidentemente também tem repercussões no âmbito alimentar. Como sabemos, várias passagens dos Evangelhos, dos atos e das cartas cristãs mostram uma atitude crítica em relação às regras alimentares judaicas. Se a kosherut é orientada para a construção da fraternidade universal, o que deve prevalecer, a observância do preceito ou a comunhão? O cristianismo enfatiza a ideia de comunhão, ou seja, o sentido universalista já contido na alimentação judaica, mas não levado por ela às suas extremas consequências.

O cristianismo, ao universalizar o princípio da alimentação kosher, a supera. Com isso, o cristianismo se coloca como o verdadeiro judaísmo. Essa é a crítica geral constante do cristianismo ao judaísmo. Mas essa crítica evidentemente não pode ser aceita pelo judaísmo. Para o judaísmo, remover as Mitswót e, portanto, a alimentação kosher significaria regredir à condição degradada e caótica presente logo após a origem.

 

Em relação à era messiânica, o que diz a tradição judaica: ainda vamos comer e o que vamos comer?

 

Este é um grande tema. Como o lobo poderá morar ao lado do cordeiro? O ato alimentar sempre comporta a morte e a destruição de uma criatura, mesmo que seja um vegetal em vez de um animal. Em termos lógicos de respeito, isso significaria não comer mais. Mas isso está em clara contradição com os traços de alegria próprios da era messiânica, representada pela imagem do banquete de ricos alimentos.

Acredito que não exista uma resposta certa e definitiva para essa pergunta. Para tentar responder, agora posso dizer que a era messiânica coincide no judaísmo com o momento da história em que o desejo humano é constantemente satisfeito. Será o retorno e ao mesmo tempo a conquista da condição original do gan Eden: será o retorno ao jardim depois de ter completado aquele percurso ético e humano que mencionei.

Acrescento, portanto, que na era messiânica ainda seremos alimentados, mas sem esforço humano.

 

E quanto ao jejum? Que lugar tem no judaísmo?

 

O jejum tem um lugar importante. O calendário judaico prevê vários jejuns. O mais conhecido e solene é o jejum do Kippúr. Yóm kippúrim - o dia do jejum - é o dia das expiações, o dia em que o judeu acerta as contas consigo mesmo. Não se come ou bebe por 25 horas. Há abstinência de todo trabalho como no dia de Shabat. É um momento que exige uma grande transformação, sempre no sentido de educar a si mesmos e ao próprio desejo, preparando assim a chegada do Messias. O Messias chegará - para nós, judeus - quando nossa humanidade devidamente educada e eticamente emancipada se mostrar à altura de acolhê-lo.

 

Alimentação hoje

 

O que você pode dizer – de um ponto de vista judaico - sobre os movimentos vegetarianos e veganos contemporâneos?

 

O mundo rabínico não tem objeções a tais práticas alimentares. Como eu disse, pelo próprio texto bíblico fica claro que a alimentação humana de animais deve ser entendida como uma 'concessão': portanto, nada impede o judeu de uma prática vegetariana ou mesmo vegana. De acordo com a Torá, a alimentação mais natural - se assim podemos dizer - é, sem dúvida, vegetal.

É verdade que a prática vegetariana nunca foi muito difundida na tradição rabínica. Na extrema pluralidade das figuras deste mundo, algumas delas se declararam explicitamente vegetarianas e substituíram, nas bênçãos, alimentos de origem animal por alimentos de origem vegetal, encontrando as devidas justificativas jurídicas. Mas esses são casos bastante isolados. Isso porque - em minha opinião - a tradição judaica nunca é radical, nem em um sentido nem em outro. Como eu disse, a tradição já se equilibra por si mesma: a pedagogia do desejo nunca força a mão e o bom compromisso é constitutivo de sua identidade.

Percebo que as dietas vegetarianas e veganas são muito difundidas hoje em Israel, muito mais do que na Itália, por exemplo. Gosto de pensar que isso seja coerente com o princípio universalista contido na Torá. E gosto de pensar que a crescente difusão dessas práticas no Ocidente deriva desse mesmo princípio que está na raiz da cultura ocidental. Além disso, isso resulta coerente com as intenções cada vez mais percebidas hoje de salvaguardar o meio ambiente e limitar as mudanças climáticas.

 

Para concluir esta entrevista, professor Assael, o senhor tem uma posição pessoal a expressar sobre o assunto?

 

Eu olho para aqueles que seguem as práticas alimentares vegetarianas com certa admiração. Quando me acontece de comer com pessoas que fazem essa escolha, tento respeitá-las ao sentar à mesma mesa.

No entanto, é importante para mim destacar como as manifestações fundamentalistas podem ocorrer - e de fato ocorrem - justamente por meio das práticas alimentares. Infelizmente - mencionei isso a respeito do abate ritual - a alimentação é um dos canais, nada secundários, do retorno do antissemitismo na Europa. Não quero voltar ao paradoxo - já conhecido com o nazismo - de que se chegue a amar os animais mais do que os seres humanos. Acho que é preciso ficar extremamente atentos.

 

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