Esperar a salvação: a escatologia de Hans Urs Von Balthasar

Foto: Pixabay

04 Novembro 2021

 

"Este livro claro, didático, conciso e acessível possibilita conhecer e dialogar com a escatologia na perspectiva balthasariana", escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul e mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), ao comentar o livro Esperar a salvação: a escatologia de Hans Urs von Balthasar organizado pelo doutor em Teologia, Leomar Antônio Brustolin.

 

Eis o artigo.

 

Hans Urs von Balthasar (1905-1988), importante teólogo católico da Suíça, colaborou de forma única para as reflexões da teologia do século XX. Sua vasta obra teológica, fundamentada especialmente em escritos da Sagrada Escritura e da Patrística, demonstra quanto seu pensamento baseava-se nos alicerces da fé católica, embora dialogasse com a cultura de sua época. Revelou-se interessado, desde o tempo de estudante, pela questão escatológica. Balthasar fundou sua escatologia sobre a Sagrada Escritura e sobre a Tradição da Igreja. Seu ensinamento é rico em análises e observações agudas, especialmente em relação à esperança da salvação para todos, de acordo com a revelação de Deus.

Capa do livro "Esperar a salvação: a escatologia de
Hans Urs von Balthasar", organizado por
Leomar Antônio Brustolin (Foto: Editora Paulus)

Possibilitar uma maior aproximação com o pensamento escatológico balthasariano é o objetivo da obra: Esperar a salvação: a escatologia de Hans Urs von Balthasar (Paulus, 2020, 152 p.). Organizada pelo doutor em Teologia, Leomar Antônio Brustolin -, esta obra é resultado das aulas e das pesquisas realizadas por mestrandos e doutorandos do Programa de Pós-Graduação em Teologia, na disciplina de Antropologia Teológica da PUCRS, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, em 2019.

 

Considerando que a obra balthasarina soma um total de noventa livros, cem traduções e mais de quinhentos escritos menores, o doutor em Teologia, Rafael Martins Fernandes, apresenta no primeiro capítulo a vida e obra de Hans Urs von Balthasar (p. 11-33). Busca responder à duas perguntas: 1) em meio à imensa obra de Balthasar, qual é o fio condutor e a forma de sua teologia?; 2) quais são os elementos teológicos originais de seu pensamento e de que maneira eles ajudam a renovar a teologia contemporânea? Apresentando elementos da vida e formação intelectual de Balthasar (p. 12-13), a influência da médica Adrienne von Speyr, que determinou profundamente os rumos de sua teologia (p. 14-15), Fernandes apresenta um pequeno guia da obra balthasariana: a) primado da graça (p. 16-17); b)redescoberta do sentido alegórico na hermenêutica bíblica (p. 18); c) a meta-antropologia (p. 18-20); d) Trindade e cristologia: núcleo da teologia balthasariana (p. 20-22); e) antropologia dramática (p. 22-25); f) eclesiologia (p. 25-26). Observa que a partir de 1960, identifica-se a etapa mais madura do pensamento balthasariano. É precisamente nesse período que ele inicia a redação de sua obra magna, a Trilogia, projeto que durou 26 longos anos. Está dividida em três partes: Herrlichkeit (glória), Theodramatik (teodramática) e Theologik (teológica), totalizando quinze livros.

 

Seu objetivo era mostrar ao mundo Cristo como o acontecimento insuperavelmente belo e central da história humana, e para uma sociedade europeia que rapidamente perdia o sentido da fé cristã. A obra constitui a tentativa de desenvolver a teologia cristã à luz da tríade transcendental, de completar, isto é, a consideração do verum e do bonum mediante aquela do pulchrum (p. 26-33). A partir disso é possível elencar alguns elementos essenciais de sua teologia: a) uma visão orgânica e unitária da fé cristã, fundada na tradição eclesial, capaz de fazer frente à crescente fragmentação dos saberes e à perda do sentido de vida; b) uma teologia orante feita de joelhos, que, portanto, está intrinsecamente unida à fé cristã na qualidade de servidora; c) uma teologia que ressalta a beleza inigualável da revelação cristã como caminho eficaz de acesso à fé no contexto de um mundo secularizado (p. 33).

 

Vários escritos de Balthasar remetem à escatologia. No segundo capítulo, o doutor em Teologia, Leomar Antônio Brustolin, elenca as obras de Balthasar com referência escatológica, seguidas das datas de publicação original (p. 35-58): 1) A Escatologia do nosso tempo – 1954 e 1955 (p. 36-37); 2) As coisas últimas do homem e do cristianismo – 1955 (p. 37); 3) Morte e pensamento moderno (1956); 4) Os Novíssimos na teologia contemporânea (p. 39); 5) Escatologia: a teologia das últimas coisas – 1959 (p. 39); 6) Só o amor é digno de fé (p. 40-41); 7) Primeiro o Reino de Deus: dois ensaios sobre a parusia bíblica – 1966 (p. 41-43); 8) O homem e a vida eterna - 1972 (p. 44-45); 9) Lineamentos de escatologia – 1974 (p. 45-46); 10) O juízo – 1980 (p. 46); 11) Sobre uma teologia cristã da esperança – 1981 (p. 47); 12) Primícias de um mundo novo – 1983 (p. 48); 13) Os juízos divinos no Apocalipse – 1985 (p. 49-50); 14) A escatologia madura: o último ato - 1983 (p. 50-51); 15) A pequena catequese sobre o inferno – 1984 (p. 52-53); 16) Esperar por todos – 1986 (p. 53-55); 17) Breve discurso sobre o inferno – 1987 (p. 55-57); 18) Apocatástase – 1988 (p. 57-58).

 

No conjunto de escritos balthasarianos, a escatologia é tida como a “doutrina da relação entre o ser humano e seu destino eterno” (p. 35), ou seja, “é o saber em que o espírito concreto encontra-se diante da própria realidade última, que lhe dá plenitude, mas que ainda está escondida sob um véu e que se deve revelar ao ser humano como um apocalipse (revelatio) na atuação de si mesmo” (p. 35). Assim “a leitura dos textos de Balthasar permite observar que ele não queria uma escatologia como um tratado em si mesmo, como que destacado de outros setores da teologia e colocado somente no último ponto dos manuais de dogmática (...), dessa forma, a escatologia está integrada a toda a teologia, sendo capaz de qualificar a esperança cristã de chegar à plenitude na pátria trinitária” (p. 58).

 

A morte de Cristo como referencialidade da morte do ser humano em perspectivas balthasarianas (p. 59-70), é o assunto do terceiro capítulo, escrito pelos mestrandos em Teologia, Édilon Rosales de Lima e Gunnar Nascimento Chaves. Salientam que “o Cristo é tipologicamente o homem pleno, logo sua morte é tipo para a morte humana no tangente à redenção, e que não é possível compreender a ação histórico-salvífica do Verbo se não refletirmos sobre a morte humana a partir da morte de Jesus” (p. 63). Frente a isso “percebe-se que Balthasar, na realidade, não pensa na morte a partir do homem mortal, mas pensa na morte do homem imortal projetada sobre aqueles que se unem ao mistério deste Deus homem. Devemos pensar na morte do homem a partir da morte de Jesus Cristo, que derramou seu sangue por todos. Somente assim é possível haver luz onde só há trevas, visto que é o Redentor quem morre num ‘último ato’, num verdadeiro drama trinitário. Para o cristão, a morte do homem é a vida temporal refletida ante a vida de Deus” (p. 67).

 

Oferecer as bases principais da escatologia balthasariana sobre o juízo é o objetivo do quarto capítulo (p. 71-86), de autoria de Luísa de Lucas e Wellington Cristiano da Silva, mestranda e mestrando em Teologia, respectivamente. Trazem, primeiramente, um breve resgate bíblico sobre o juízo (p. 72-75), seguido de alguns apontamentos históricos do desenvolvimento da escatologia cristã (p. 75-76). Os autores destacam que a contribuição de Balthasar trará luzes para uma hermenêutica fundamentada no mistério de Cristo e da Trindade, daí a questão fundamental refletida centra-se sobre o número de juízos: tratam-se dois juízos, o particular e o universal, ou apenas de um juízo? O teólogo suíço seguindo a linha personalista do juízo (p. 76-79) sustenta que a Bíblia não conhece dois juízos nem dois dias de juízo, mas apenas um. Não são dois juízos diferentes, mais dois aspectos de um único e mesmo acontecimento geral. Será por isso um juízo de amor e no amor (p. 80-83), e, autojuízo do ser humano (p. 84-86).

 

Há esperança pela salvação de todos? A questão polêmica da escatologia de Balthasar (p. 87-103), é a temática desenvolvida no quinto capítulo por Daison Fermino de Sá e Ramon da Silva Sandi, ambos são mestrandos em Teologia. Balthasar enfrentou críticas à sua concepção sobre o inferno. Eis a problemática: “ao escrever sua ‘Pequena catequese sobre o inferno’, fez uma inflexão no que diz respeito à recepção da comunidade católica de seus escritos precedentes. Quando afirmou que se deve ‘esperar que todos se salvem’, a comunidade católica recebeu a ideia com a interpretação de que Balthasar teria sustentado que o inferno ‘está vazio’ e, desse modo, estaria negando a existência dessa realidade escatológica.

 

Hans Urs von Balthasar (Foto: Autor desconhecido | Wikimedia Commons)

 

Sob o argumento de devida interpretação de seu texto, Balthasar escreveu Was dürfen wir hoffen?,  no qual explicita seu pensamento de modo analítico, buscando demonstrar a esperança pela salvação de todos não exclui a possibilidade da existência do inferno, entretanto é esta esperança pela salvação que conduz o ser humano em seu caminho de fé” (p. 88). Diante disso, busca-se analisar a interpretação que Balthasar traz em Was dürfen wir hoffen?, a partir de seu conceito de esperança (p. 88-92) e de salvação (p. 92-99). Neste caminho, esclarecem os autores, é preciso considerar as respostas de Balthasar às críticas direcionadas a sua compreensão soteriológica. E diante da posição do magistério da Igreja, confrontado com o pensamento de Balthasar, procurar compreender quanto o autor suíço afastou-se ou não do ensinamento eclesial (p. 99-103). Elucida-se que o pensamento balthasariano “não se contrapõe à posição do magistério eclesial. A esperança de salvação para todos ‘não esvazia o inferno’, antes relembra que ele não é anúncio da promessa divina, diferente do Reino de Deus, que é promessa de salvação, salvação esta na qual esmo com os pecados da humanidade, cada pessoa pode depositar sua esperança no amor divino” (p. 103).

 

A reflexão sobre a comunhão dos santos na perspectiva balthasariana é a temática do sexto capítulo (p. 105-119), de autoria dos mestrandos em Teologia, Diego Jobim Garcia e Kauê Antonioli Pires. Esclarecem que na teologia de Hans Urs von Balthasar, é importante abordar, preliminarmente, como este artigo do símbolo apostólico desenvolve-se a partir das Escrituras (p. 106-108), da Patrística (p. 108-111) magistério (p. 111-115). No que se refere à comunhão dos santos, Balthasar reafirma a doutrina da Igreja, com sua própria leitura (p. 116-118), ou seja, o teólogo suíço “propicia a compreensão genuína da igreja, tomando o princípio fundamental: a trindade, pois é do mistério de transbordamento trinitário que Balthasar constrói a teologia da comunhão dos santos. Para os primeiros cristãos, essa comunhão era a unidade provinda do próprio Senhor.

 

Para a Igreja primitiva, a comunhão dos santos era a força de Deus dada aos mártires, no decurso do tempo, a comunhão dos santos significou a participação nas ‘coisas santas’, isto é, na ação de Deus através de sua Palavra e sacramentos. O documento conciliar Lumen Gentium apresenta a comunhão dos santos dentro da participação no mistério de Deus, que capacita todo o querer e o agir, mistério de comunhão. Balthasar contempla a Trindade que cria, salva e santifica. A capacidade da essência da igreja vem de Deus, como também a capacidade de resposta do ser humano nasce da abertura conversão, dom e tarefa, que provêm do projeto de Deus ao homem. No mistério da salvação, o ser humano caminha para a configuração da vida, para a participação na vida de deus. Nessa trilha que se realiza, Balthasar faz perceber que comunhão não é distância do mistério, mas proximidade e configuração” (p. 118-119).

 

Por fim, no sétimo capítulo o mestre em Teologia, Diego dos Santos Wingert, reflete sobre a Teologia da história na escatologia de Hans Urs von Balthasar (p. 121-133). O autor considera que: “Teologia da história, de Hans Urs von Balthasar, permite refletir de forma inovadora sobre a expressiva questão escatológica referente à relação da história humana  com a história teológica. Ambas formadas pelos conflitos descritos nas Escrituras, expõe a realidade teológica que envolve o mundo e a Igreja no tempo presente, assim como envolvê-los-á no futuro escatológico” (p. 121). Nesta perspectiva, Wingert, reflete sobre três pontos conceituais: a) a realidade da história humana em sua relação com a batalha cósmica (p. 122-125); b) a importância do papel da Igreja nesse confronto (p. 125-127); c) a história teológica articulada e condensada no relato do livro do Apocalipse (p. 128-131).

 

Hans Urs von Balthasar trouxe uma contribuição ampla e precisa em referência à reconsideração da escatologia católica: a descomologização e a concentração cristológica dos dados escatológicos, ou seja, “ele parte da constatação de que os tempos mudaram e também as concepções do universo e do ser humano não são mas as mesmas do antigo judaísmo, nem mesmo da época medieval. Por isso, ele propõe confrontar a revelação de Deus sob nova perspectiva, sobretudo naquilo que se refere aos acontecimentos escatológicos contidos na revelação. Para ele, é inevitável uma operação hermenêutica capaz de libertar do domínio figurativo as realidades : o que é cosmológico precisa ser revisto a partir dos novos dados” (p. 7). Sobre a concentração dos dados escatológicos: “Balthasar acentua que Deus é o fim último da sua criatura. Para ele se orienta todo ser humano, especialmente para Jesus Cristo, Filho de Deus” (p. 9). Pode-se “concluir que a escatologia de Hans Urs von Balthasar refere-se totalmente a Deus, que é o fim último da criatura. Ele é céu para quem o ganha e o inferno para quem o perde. O juízo para quem é examinado por ele, o purgatório para quem é por ele purificado. Ele é aquele pelo qual tudo que é mortal morre e pelo qual tudo ressuscita” (p. 135).

 

Uma excelente introdução ao pensamento esacatológico de Hans Urs von Balthasar. Este livro claro, didático, conciso e acessível possibilita conhecer e dialogar com a escatologia na perspectiva balthasariana. Abre vastos horizontes, tendo-se em conta que: “mais interessante que se concentrar no que virá – céu, inferno, purgatório -, Balthasar concentra-se em quem virá (eschatói): a pessoa do Verbo de Deus que se fez homem em Jesus Cristo” (p. 9).

 

 

Nota do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

 

Para saber mais sobre a vida e a obra de Hans Urs von Balthasar, pode ser vista e ouvida a última entrevista do teólogo aqui.

A entrevista é concedida em alemão com legendas em inglês.

 

 

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