Há pecado quando o amor é ferido

27 Agosto 2021

 

Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 22º Domingo do Tempo Comum, 29 de agosto de 2021 (Marcos 7,1-8.14-15.21-23). A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Depois dos trechos retirados do capítulo sexto do Evangelho segundo João, a catequese sobre Jesus como “palavra e pão da vida”, voltamos à leitura cursiva do Evangelho segundo Marcos. Nós o havíamos deixado no relato da primeira multiplicação dos pães (cf. Mc 6,30-44) e o reencontramos na leitura de alguns trechos do capítulo sétimo, que recolhe palavras de Jesus que são um eco de controvérsias com os fariseus e escribas.

Trata-se de palavras certamente transmitidas e atualizadas pelas Igrejas, mas que continuam sendo sempre Evangelho de Jesus Cristo e nada mais do que isso. No entanto, deve-se confessar que, diante dessas palavras, que parecem ser uma ruptura com o judaísmo, os comentaristas se dividem entre aqueles que as interpretam como discursos proferidos pela Igreja do fim do primeiro século em polêmica contra os fariseus, o judaísmo mais presente e “combativo”, e aqueles que, pelo contrário, insistem na ruptura radical, no desconhecimento por parte de Jesus da Lei que o precedia.

Não é fácil fazer discernimento sobre essa leitura, mas tentemos tal operação buscando não ser devedores de ideologias judaizantes nem, por outro lado, marcionitas.

O que Jesus quer dizer? Diante de “fariseus e alguns mestres da Lei que vieram de Jerusalém”, portanto, de autoridades oficiais do judaísmo, ele entra em polêmica, chega a atacá-los diretamente, porque julga o olhar deles, a sua espionagem sobre ele e os seus discípulos como um comportamento não conforme à vontade de Deus.

Os discípulos de Jesus, de fato, vão à mesa sem antes terem feito a ablução ritual das mãos, mandato que está na Torá e se dirige apenas aos sacerdotes que devem fazer a oferta, o sacrifício (cf. Ex 30,17-21). No tempo de Jesus, havia movimentos que radicalizavam a Lei, grupos intransigentes e integralistas que pediam que seus membros se comportassem como os sacerdotes oficiantes do templo, que multiplicavam e radicalizavam as prescrições da Lei, com uma obsessão particular pelo tema da pureza.

Entre estes, haviam os chaverim (companheiros, amigos) e os perushim (separados, fariseus) – identificados por alguns como um único movimento – cuja legislação casuística minuciosa levará à formação da Mishná.

Jesus deixava os seus discípulos livres dessas observâncias que não haviam sido pedidas por Deus, mas pelos intérpretes da palavra de Deus, tornando-se “tradições”. E, quando os homens produzem tradições, eles querem que elas sejam “a tradição” e, por isso, dão a ela a mesma autoridade atribuída à palavra de Deus.

Isso ocorria naquela época, assim como ocorre nas Igrejas hoje! Os Evangelhos nos testemunham que, sobre muitos temas, Jesus se expressou contestando essas tradições que alienam os fiéis, que não estão a seu serviço, mas criam uma falta de liberdade e, muitas vezes, acabam erigindo barreiras, para traçar limites e fronteiras entre os seres humanos.

Quanto ao caso em questão nesta página, deve-se reconhecer que a mesa, de lugar de partilha, de comunicação, de exercício do amor, de aliança, havia se tornado no judaísmo progressivamente um lugar de divisão e de excomunhão do outro: o estrangeiro pagão, o pecador, o impuro não podiam participar dela junto com o judeu piedoso.

Assim, a impureza dos alimentos proibidos a Israel impossibilitava aos judeus sentarem-se à mesa junto com quem pertencia aos povos pagãos, porque todo não judeu era considerado koinós, profano, e akáthartos, impuro (cf. At 10,28).

Mas, para Jesus, essas distinções não se sustentam, e quem as faz não conheceu o pensamento do Senhor. Por isso, diante da repreensão dirigida pelos fariseus aos seus discípulos, Jesus responde atacando-os com a própria palavra de Deus contida nos profetas: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos” (Is 29,13).

Jesus veio para libertar daquela religião que é uma fábrica de imagens de Deus e dos seus preceitos que os seres humanos de todas as culturas deram a si mesmos. E atenção: Jesus não quer contradizer a Lei nem a tradição, mas sempre sabe voltar à intenção do Legislador, Deus, como faziam os profetas, para que a Lei seja acolhida no coração, com liberdade e amor.

Jesus acolhe as palavras da aliança de Deus com Moisés, mas não acolhe os 613 preceitos da tradição sem fazer um discernimento, até porque ele sabe muito bem que, se os preceitos se multiplicam, aumentam também as possibilidades de não os observar, portanto se multiplicam as oportunidades de hipocrisia.

Além disso, “a palavra do Senhor permanece para sempre” (Is 40,8; 1Pd 1,24), enquanto a tradição evolui com as mudanças culturais, com as gerações e, embora carregada de venerabilidades por causa da sua antiguidade, continua sendo humana, invólucro e revestimento da palavra do Senhor.

É a tudo a que Jesus se refere quando afirma, dirigindo-se aos seus interlocutores: “Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens”; e logo depois, até mesmo: “Vós anulais a Palavra de Deus com a tradição que transmitis” (Mc 7,13).

Depois, dirigindo-se à multidão, explica: “Escutai todos e entendei em profundidade, refleti, sede inteligentes! Não há nada fora do homem que, ao entrar nele, possa torná-lo impuro. Mas são as coisas que saem do homem que o tornam impuro”.

Os discípulos, porém, não entendem, e então Jesus, impaciente, deve lhes dar mais esclarecimentos: “Não entendeis que tudo o que entra no homem de fora não pode torná-lo impuro, porque não entra no seu coração, mas no seu ventre e vai para a fossa?”.

Desse modo, Jesus “declara puros todos os alimentos”, e pouco importa se tal esclarecimento saiu literalmente da sua boca ou foi gerado pela Igreja a partir do seu ensinamento...

Por fim, Jesus conclui com palavras que deveriam esclarecer a questão de uma vez por todas: “O que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior. Pois é de dentro do coração humano que saem as más intenções, imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, ambições desmedidas, maldades, fraudes, devassidão, inveja, calúnia, orgulho, falta de juízo. Todas estas coisas más saem de dentro, e são elas que tornam impuro o homem”.

Deve-se notar que os pecados enumerados são todos contra o amor, contra o próximo, porque o pecado ocorre apenas nas relações entre cada um de nós e os outros; não por acaso, Jesus disse que seremos julgados somente sobre o amor aos outros (cf. Mt 25,31-46), sobre o coração e sobre a capacidade de relação, misericórdia, pureza, fidelidade.

O mal, a impureza está onde falta o amor e não em outros lugares onde os homens religiosos gostariam de encontrá-lo para manter viva a sua construção. O mal, a impureza não está nas coisas, mas está em nós, na nossa escolha entre o amor e o ódio, entre reconhecer o outro e afirmar apenas a nós mesmos, entre a nossa vontade de comunhão e a nossa vontade de separação.

Não esqueçamos, portanto, que podemos sentar à mesa dos pecadores, porque Jesus se sentou à mesa onde os pecadores eram comensais, a ponto de ser definido como “um comilão e beberrão, amigo dos publicanos e dos pecadores!” (Mt 11,19; Lc 7,34).

Não esqueçamos que para todos os homens e as mulheres a mesa é um lugar de comunhão, de reunião, de face a face, de relação, de celebração da amizade, do amor e do afeto. Por isso, não podemos excluir ninguém da mesa: se o fizermos, seremos excluídos da mesa do Reino!

Quanto à mesa eucarística, não está excluído dela quem é pecador, se se considerar como tal e estender a mão como um mendicante para o corpo do Senhor, enquanto deveriam ser excluídos dela aqueles que não sabem discernir o corpo de Cristo (cf. 1Cor 11,29) no irmão e na irmã, no pobre, no pecador, no último, em quem não tem dignidade.

Infelizmente, porém, é mais fácil fazer a ablução das mãos durante a liturgia eucarística, repetindo um versículo de um salmo, do que reconhecer o próprio pecado e dizer ao Senhor: “Eu não sou digno, mas, por misericórdia, entra na minha casa!”.