Teologia e os LGBT+: perspectiva histórica e desafios contemporâneos

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24 Agosto 2021

 

"O autor, portanto, mostra-nos que o tema da teologia e os LGBT+ está longe de ser uma questão meramente abstrata, mas tem uma incidência visceral e decisiva na vida muitas pessoas (p. 16). A reflexão que ora vem a público não pode temer o fato de que sua autêntica profecia evangélica provocará reações previsíveis dos ortodoxos profissionais, uma vez que expõe os preconceitos instituídos na sociedade e na Igreja e abre para um outro paradigma moral que se encontra em construção desde a Exortação Amoris Laetitia", escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul e mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), ao comentar o livro Teologia e os LGBT+: perspectiva histórica e desafios contemporâneos (Vozes, 2021, 200 p.). O livro é de autoria de Luís Corrêa Lima, padre jesuíta, professor do Departamento de Teologia da PUC-Rio.

 

Eis o artigo.

 

Dr. Luís Corrêa Lima é padre jesuíta e professor do Departamento de Teologia da PUC-Rio. Desenvolve pesquisa sobre a história da Igreja, Modernidade, diversidade sexual e de gênero. Possui diversos textos e artigos publicados sobre estes temas, e realiza apostolado com pessoas LGBT+. É o autor do livro: Teologia e os LGBT+: perspectiva histórica e desafios contemporâneos (Vozes, 2021, 200 p.).

 

A presente obra é resultado do trabalho pastoral do autor junto com o estudo e a publicação de muitos textos e artigos sobre este tema. Longe de ser uma questão meramente abstrata, o tema da teologia e os LGBT+ se lança a uma realidade que diz respeito à vida concreta de muitas pessoas que nem sempre são acolhidas pela comunidade cristã.  Pensar a realidade da população LGBT+, na perspectiva da teologia, exige, antes de tudo, deixar-se sensibilizar por suas dores e conflitos penosos, bem como reconhecer seus talentos, contribuições e possibilidades, superando estigmas que, desde há muito tempo, construíram concepções sexualizadas e jocosas dessa população que, ainda a duras penas alcança maior visibilidade.

 

João Décio Passos, Doutor em Ciências Sociais (PUC-SP), ao prefaciar a obra (p. 13-16), salienta que os sujeitos homoafetivos estão posicionados como os últimos emergentes do fluxo da Modernidade; pagam como os demais sujeitos do passado o preço de suas identidades assumidas e autonomias reivindicadas. E, tanto quanto os do passado sofrem não somente as rejeições de suas legitimidades, como os preconceitos fundados em “teologias naturais”, teologias que naturalizam as discriminações como queridas por Deus e inscritas na própria natureza. Assim sendo, o cristianismo nesse longo processo histórico participou/posicionou-se como agente construtor da contradição e como fundamento mais radical dos preconceitos e das negações de direito. Diante disso, os capítulos que compõe o livro traçam esse percurso, na medida em que oferecem dados da realidade sobre os sujeitos homossexuais, questões de gênero e sujeitos LGBTs, retomam e releem as teologias da sexualidade presentes na tradição católica, oferecem parâmetros éticos para pensar teologicamente a questão, bem como perspectivas para a ação pastoral da Igreja.

 

O livro está estruturado em cinco capítulos. Apresentamos a seguir uma breve visão de cada reflexão.

 

No primeiro capítulo, intitulado “A sexualidade e a tradição judaico-cristã” (p. 17-57), o autor trata da sexualidade e sua relação com a tradição judaico-cristã como o ponto de partida fundamental para se pensar a teologia diante das questões trazidas recentemente pelos estudos de gênero, que abrangem orientação sexual. A tradição judaico-cristã é um conjunto de ideias, valores, práticas e instituições que moldou povos e civilizações no Oriente e no Ocidente. Ela remonta a Jesus Cristo e a seus apóstolos e discípulos, que fundaram a Igreja e compuseram as Sagradas Escrituras, incorporando as Escrituras hebraicas e relendo-as em uma perspectiva própria. Esta tradição atravessa gerações e milênios, sempre se defrontando e se adaptando a novos contextos, tendo uma dialética de conservação e mudança, para que seus conteúdos permaneçam inteligíveis e relevantes. Esta tradição, oriunda de Israel, inseriu-se no mundo greco-romano. Nela se desenvolveu posteriormente a teologia e seu olhar sobre a sexualidade.  A moral cristã nascida do impulso da fé, foi-se formando ao longo da história com elementos do mundo judaico, helenista (greco-romano) e ocidental (p. 19-51). Nesta longa inculturação, pode-se identificar na moral três grandes paradigmas: a razão ascética predominante na época patrística, influenciada pelo estoicismo e pelo platonismo; a razão natural, predominante na Idade Média e na época pós-tridentina e a razão pessoal, a partir do Concílio Vaticano II (p. 51-57).

 

No segundo capítulo, “A emergência das questões de gênero e orientação sexual” (p. 58-90), o autor levando em consideração que uma das características mais notáveis do mundo atual é a visibilização da população dita LGBT, constituída por gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais – identidades relacionadas a gênero e orientação sexual - traz um panorama das questões de orientação sexual e da configuração da cidadania LGBT+. As sexualidades e gêneros diversos têm uma história complexa no Ocidente e na interação com a tradição judaico-cristã, e desde o passado recente são beneficiárias do desenvolvimento e da expansão da Modernidade (p. 60-77). O panorama recente coloca-nos diante de novos dados, novas conquistas, novos problemas e novas questões (p. 77-90).

 

No terceiro capítulo, intitulado “O mundo católico diante das questões de gênero e orientação sexual” (p. 91-125), Corrêa Lima destaca que a mudança de mentalidade e a conquista de direitos da população LGBT se deu em nações com população majoritariamente cristã, católica ou protestante, que foram profundamente transformadas pela cultura moderna. Muitos agentes destas transformações têm motivações seculares, expressas em um registro não religioso. Mas há também religiosos cristãos pioneiros, ainda que minoritários, cuja postura contrastou fortemente com outros cristãos ou mesmo com outros fiéis de suas próprias Igrejas (p. 89-97). Em seguida, destaca-se a posição da cúpula da Igreja Católica, suas resistências e aberturas em nível universal (p. 97-104), o posicionamento das conferências episcopais e suas posições em nível regional (p. 104-107). Por fim, o autor salienta que a relação da Igreja Católica com os LGBT inegavelmente vive um novo momento com o pontificado de Francisco (p. 107-116), merecendo destaque o Sínodo dos Bispos sobre a Família e seus desdobramentos (p. 116-125).

 

No quarto capítulo, “Homossexuais e o acesso ao sacerdócio ministerial” (p. 126-145), o autor observa que o acolhimento de pessoas homossexuais na Igreja Católica também inclui a questão do seu acesso ao sacerdócio ministerial. Aprofundando esta questão as páginas deste capítulo buscam responder como devem ser tratados os sacerdotes e os candidatos ao sacerdócio com esta orientação sexual (p. 126 -138). Neste campo é preciso não associar os escândalos de pedofilia com a homossexualidade ou celibato (p. 139-142). Corrêa Lima conclui este capítulo chamando a atenção para padres gays publicamente assumidos trazendo dois exemplos: Fred Daley e Gregory Greiten: eles apresentam relatos sobre sua realidade com ampla divulgação e questionamentos (p. 142-145).

 

No quinto capítulo, “Novas perspectivas, desafios teológicos e pastorais” (p. 146-169): a) uniões homossexuais e o debate eclesial (p. 146-151); b) gênero e orientação sexual (p. 151-159). Em vista de um cristianismo adulto, o autor destaca que a realidade dos LGBT+ é complexa e delicada, traz apelos urgentes e constitui um desafio à evangelização: a leitura crítica da Sagrada Escritura, a devida atenção aos resultados das ciências, os diversos matizes da moral e a fidelidade à própria consciência, são elementos do ensinamento da Igreja que constituem um conteúdo rico e dinâmico na vida dos fiéis. Estes elementos, aliados à teologia e a à espiritualidade, podem ajudar muito a ação evangelizadora junto àquela população (p. 159-169).

 

Nas "Considerações finais" (p. 171-181) o autor mostra que a relação dos LGBT com a sociedade e com a Igreja, ao longo do tempo, tem certa semelhança com a história do povo judeu na era cristã: nazismo, antissemitismo moderno  (p. 171-173). Por isso, segundo Corrêa Lima a vigilância para se evitar comprometimento com tais degenerações requer uma ampla revisão de práticas, pregações e formulações doutrinárias no mundo cristão (p. 173-181).

 

O autor, portanto, mostra-nos que o tema da teologia e os LGBT+ está longe de ser uma questão meramente abstrata, mas tem uma incidência visceral e decisiva na vida muitas pessoas (p. 16). Concordamos com Dr. João Décio Passos quando diz que a reflexão que ora vem a público não pode temer o fato de que sua autêntica profecia evangélica provocará reações previsíveis dos ortodoxos profissionais, uma vez que expõe os preconceitos instituídos na sociedade e na Igreja e abre para um outro paradigma moral que se encontra em construção desde a Exortação Amoris Laetitia. Diante disso, a presente reflexão do teólogo Luís Corrêa Lima dá sequência à tradição metodológica, eclesial e mística de integração dos excluídos no coração da comunidade cristã e no seio da sociedade. No coração do Evangelho se encontram a práxis de Jesus e a práxis da igreja. É a fonte mais profunda da fé que se elevam as vozes dos excluídos por todos os mecanismos sociais, políticos e morais de ontem e de hoje. Da ética de Jesus ninguém pode ser expurgado em nome de leis, de teorias ou de teologias (cf. p. 11).

 

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