O discípulo sempre é livre para ir embora

Foto: Flickr CC/Dean Hochman

20 Agosto 2021

 

Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 21º Domingo do Tempo Comum, 22 de agosto (Jo 6,60-69). A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Chegamos ao fim do sexto capítulo do Evangelho segundo João, e, nestes últimos versículos, é colocado diante de nós todo o choque, o escândalo que as palavras de Jesus causaram não só nas multidões dos judeus, mas também entre os seus discípulos.

Essa crise nas relações entre Jesus e a sua comunidade é testemunhada por todos os quatro Evangelhos no momento de uma palavra decisiva de Pedro que confessava, embora não plenamente, a identidade de Jesus como Messias (cf. Mc 8,29 e par.) e como enviado do Pai como Filho.

Por que essa crise? Porque as palavras de Jesus às vezes eram duras e chocavam também os ouvidos de discípulos que o seguiam com devoção, mas não conseguiam aceitar, considerando-o como uma pretensão, que Jesus tinha “descido do céu” e que na carne de um corpo humano frágil e mortal ele narrava o Deus vivo.

No seu discurso, Jesus tinha dito várias vezes: “Eu sou o pão vivo descido do céu” (Jo 6,51; cf. 6,33.38.41-42.58), mas justamente aqueles que o tinham aclamado como “o grande profeta que vem ao mundo” (Jo 6,14) e que até tinham querido fazê-lo rei (cf. Jo 6,15), diante dessas palavras, sentem-se escandalizados na sua fé.

Profeta, sim. Mas que desceu do céu e é um corpo entregue (verbo paradídomi) até à morte violenta, corpo para comer e sangue para beber (cf. Jo 6,51-56), isso realmente não: são palavras que soam como uma pretensão insuportável, impossíveis de escutar!

Jesus, que conhece essas murmurações dos discípulos contra ele, neste ponto não tem medo de dizer toda a verdade, às custos de causar uma divisão entre os seus e um abandono do seu seguimento. Poderíamos dizer que ele “ataca” os murmuradores: “Isto vos escandaliza? E quando virdes o Filho do Homem subindo para onde estava antes?”. Isto é, “quando vocês estiverem diante da realidade do Filho do homem que, através da elevação na cruz, subirá a Deus, de quem veio (cf. Jo 3,14; 8,28; 12,32); quando se manifestar a minha plena identidade de quem desceu de Deus e que a Deus subiu novamente na sua humanidade assumida como condição carnal, mortal, ‘semelhante à carne do pecado’ (Rm 8,3), então o escândalo será maior!”

Jesus faz esse ataque sofrendo todo o peso da incredulidade, da incompreensão por parte daqueles que, durante anos, estavam envolvidos com ele e eram assíduos à sua palavra. Como é possível esse comportamento deles?

É por isso que ele nada mais faz do que constatar que, na realidade, ninguém pode vir até ele se o Pai não o atrai, se não o concede isso. É preciso esse dom que não é dado arbitrariamente por Deus, mas deve ser buscado, deve ser acolhido como dom que não requer nenhum mérito por parte de quem o recebe. Mas isso também escandaliza as pessoas religiosas, que sempre pretendem que Deus faça dons não só de acordo com os seus desejos, mas também de acordo com aquilo que mereceram e alcançaram.

O que é escandaloso em relação a Jesus é a sua entrega em uma carne frágil e em um corpo mortal a carnes frágeis e corpos mortais, isto é, os humanos. Como é possível que Deus se entregue em um homem, “o filho de José” (Jo 6,42), criatura que pode ser entregue, traída, dada nas mãos dos pecadores, como fará justamente um dos Doze, Judas, um servo do diabo (cf. Jo 6,70)?

Aqui, a fé tropeça no fato de ter que acolher a imagem de um “Deus ao contrário”, de um “enviado divino, um Messias ao contrário”, que é frágil, pobre, fraco e do qual os homens podem fazer aquilo que quiserem... É o escândalo da humanização de Deus, sofrido ao longo dos séculos por muitos cristãos, por muitas Igrejas, pelo próprio Islã e ainda hoje pelos homens religiosos que acusam de não crerem em Deus aqueles que acolhem do Evangelho a mensagem escandalosa de um Deus que real e verdadeiramente se fez homem, carne mortal, em Jesus de Nazaré.

A fé cristã torna-se facilmente docetismo, porque prefere, como todas as religiões, um Deus sempre e somente onipotente, um Deus que não pode se tornar humano.

Por isso, Jesus insiste: “Vós também vos quereis ir embora?”, dirigindo-se àqueles que permaneceram, na realidade, poucos. Jesus não teme, embora sofra, permanecer sozinho, porque tem fé na palavra que o Pai lhe dirigiu, na promessa de Deus que não falhará. Os outros podem ir embora, mas Deus permanece fiel!

Às vezes, eu me pergunto por que, na Igreja, não se tem a coragem de fazer ressoar ainda hoje essas palavras de Jesus, por que sempre se ensina o sucesso, sempre se olha para o número dos fiéis, sempre se fazem esforços visando à grandeza da comunidade cristã e não à qualidade da fé. Somos todos gente de pouca fé!

A crise, por sua vez, que sempre é fracasso, nós a afastamos o máximo possível, a dissimulamos, a calamos, para que não pareça que às vezes perdemos, caímos, fracassamos também nas nossas obras eclesiais e comunitárias mais conformes à vontade do Senhor.

Por outro lado, Jesus usará a imagem da poda da vinha para dizer que há ramos que devem ser podados (cf. Jo 15,2): mas é determinante que a poda seja feita pelo Pai, e não por nós, nem mesmo por aqueles que, na comunidade cristã, presidem ou trabalham nela como operários. Por si só, o Evangelho tem a força de atrair e de deixar cair: basta que ele seja anunciado na sua verdade e com franqueza, sem ser adocicado.

Sim, o Evangelho é a Palavra de vida eterna, como Pedro responde a Jesus, confessando que a fé da Igreja é fé no “Santo de Deus”, isto é, fé de que, em Jesus, está a Shekinah, a Presença de Deus.

Onde está Deus neste mundo? Não no Santo do templo de Jerusalém, mas na humanidade feita carne e sangue de Jesus, o Filho.

Assim termina o discurso de Jesus sobre o pão da vida. No fim, provavelmente, há mais coisas que não entendemos, realidades que não conseguimos perceber, em relação àquilo que compreendemos. Nós também talvez ficamos chocados com essas palavras, talvez não intelectualmente, mas ao acolhê-las para vivê-las. Mas se, como os Doze, não vamos embora, mas permanecemos com as nossas insuficiências junto de Jesus e tentamos ser seus discípulos, isso é suficiente para acolher o dom gratuito e não rejeitá-lo ou não percebê-lo: Jesus, homem como nós, no qual “habita corporalmente toda a plenitude da vida de Deus” (Col 2, 9), Deus mesmo.

 

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