Sobre mentes e máquinas: o trans-humanismo e o cristianismo

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11 Setembro 2021

 

Apesar do impasse entre cristianismo e trans-humanismo, os fiéis podem apreciar certas ênfases dentro do movimento. Por exemplo, os trans-humanistas estão preocupados com aqueles que experimentam sofrimentos corporais. Embora os cristãos confiem que o sofrimento não é sem sentido por causa do próprio sofrimento de Cristo por amor à humanidade, eles são chamados, mesmo assim, a cuidar do seu próximo em sofrimento. Muitas tecnologias propostas pelo trans-humanismo poderiam ajudar a fazer exatamente isso.

 

A opinião é de Christopher Brown, diácono casado anglicano da Holy Trinity Anglican Church, em Madison, nos Estados Unidos, e mestre em Teologia pela Beeson Divinity School. Atualmente, leciona Humanidades e Latim no Jackson Classical Homeschool Program, em Brandon.

 

O artigo foi publicado por Ad Fontes, 12-08-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o artigo.

 

Desde o início da história, as pessoas têm usado a tecnologia para superar vários desafios. Lentes bifocais, carros, joelhos artificiais, smartphones: a história da humanidade está repleta de tecnologias projetadas para lidar com as muitas limitações que enfrentamos na nossa vida cotidiana.

 

As últimas décadas nos deram muitas tecnologias novas e surpreendentes, que vão desde os computadores pessoais até próteses aprimoradas para pessoas com deficiência. Por causa desses avanços notáveis, um crescente número de pensadores está começando a se perguntar como as novas tecnologias podem nos ajudar não apenas a superar, mas até mesmo a transcender as nossas limitações físicas.

 

“Os trans-humanistas”, afirma Ian Curran, “acreditam que os desenvolvimentos na ciência e na tecnologia em breve possibilitarão a transcendência radical das limitações humanas biológicas, cognitivas e emocionais, e a evolução de uma raça pós-humana, até mesmo a obtenção da imortalidade” [1].

 

Quer as tecnologias futuras corresponderão ou não aos sonhos desses trans-humanistas, o fato de que estamos cada vez mais olhando para a tecnologia para resolver os problemas da humanidade – e talvez até para nos livrar da mortalidade – justifica um exame cuidadoso do movimento trans-humanista, os seus pressupostos subjacentes e as possíveis consequências das novas tecnologias médicas e cibernéticas emergentes nas próximas décadas.

 

Nos últimos séculos, muitos pensadores ocidentais pregaram uma visão otimista do progresso científico. O filósofo iluminista francês Nicolas de Condorcet, em seu “Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano”, expressou tamanha confiança na capacidade da humanidade de “progresso ilimitado”, a ponto de se perguntar se “a duração do intervalo médio entre o nascimento e a morte” não teria um dia “nenhum limite de tempo” [2].

 

Nas últimas décadas, o surgimento dos computadores, junto com grandes avanços nos campos da biologia humana e da medicina, abriu novos horizontes sobre os quais os otimistas podem lançar suas visões para o futuro da humanidade. Esses avanços proporcionaram novas possibilidades não apenas para o alívio do sofrimento humano, mas também para o aprimoramento da humanidade [3].

 

Por exemplo, recentes inovações em próteses estimularam o debate sobre a perspectiva de um dia substituir os membros humanos funcionais por próteses biônicas aprimoradas [4].

 

Além disso, como os computadores se tornaram cada vez mais complexos [5], tornou-se concebível, até mesmo iminente, que os computadores poderão em breve exceder o cérebro humano em termos de velocidade e de capacidade [6].

 

Singularidade

 

Para os trans-humanistas, a “singularidade” (o termo usado para descrever essa inevitabilidade histórica proposta) possibilitará que os humanos escapem de seus corpos mortais. Como um inovador em tecnologia, filantropo e principal proponente do trans-humanismo, Ray Kurzweil observa:

 

“Não haverá mortalidade no fim do século XXI (...) Até agora, a nossa mortalidade estava ligada à longevidade do nosso hardware. Quando o hardware travava, já era. Para muitos de nossos antepassados, o hardware gradualmente se deteriorava antes de se desintegrar (...) À medida que cruzarmos a divisa para nos personificar na nossa tecnologia computacional, a nossa identidade se baseará no nosso arquivo mental em evolução. Nós seremos software, não hardware” [7].

 

De acordo com Kurzweil e outros, o sonho da imortalidade de De Condorcet se tornará realidade quando os humanos deixarem de estar confinados às limitações corporais e optarem por uma existência “pós-biológica”.

 

Os trans-humanistas também propõem que a existência pós-biológica oferecerá mais do que a imortalidade. À medida que as pessoas se livrarem das limitações biológicas e se integrarem a tecnologias avançadas, elas também ganharão todo um conjunto de habilidades, prazeres e experiências que transcenderão os da existência corporal.

 

Kurzweil, com óbvio zelo, escreve: “A estrada pela qual estamos indo é uma estrada pavimentada com ouro. Está cheia de benefícios aos quais nunca iremos resistir – crescimento contínuo na prosperidade econômica, melhor saúde, comunicação mais intensa, educação mais efetiva, entretenimento mais envolvente, sexo melhor” [8]. Até mesmo as experiências espirituais, proclama Kurzweil, serão capazes de se aprimorar nessa era "pós-humana".

 

Enquanto os cientistas descobrem os “correlatos neurológicos da variedade de experiências espirituais”, Kurzweil tem certeza de que essas experiências também serão intensificadas à medida que os seres humanos alcançarem uma complexidade tecnológica cada vez maior [9].

 

No entanto, apesar do amplo alcance da visão do trans-humanismo sobre a evolução humana, alguns trans-humanistas também estão genuinamente preocupados com as consequências potencialmente negativas dessas tecnologias. O rascunho mais recente da “Declaração Trans-Humanista” reconhece que “a humanidade enfrenta sérios riscos, especialmente com o uso indevido de novas tecnologias” e apela à pesquisa para que “delibere cuidadosamente a melhor forma de reduzir os riscos e agilizar as aplicações benéficas” [10]. Mesmo assim, vale a pena observar algumas das possíveis objeções éticas à visão trans-humanista sobre o futuro.

 

Objeções à visão trans-humanista sobre o futuro

 

As duas objeções mais fortes a serem feitas a essa visão dizem respeito à disponibilidade limitada de tecnologias futuras. A menos que mudanças significativas sejam feitas na economia mundial [11], é quase certo que uma transição para uma existência “pós-humana” será cara, e uma grande parte da humanidade simplesmente não terá acesso a tecnologias pós-biológicas.

 

Como resultado, uma pequena porção de “pós- humanos” superavançados poderia concebivelmente coexistir com uma população maior de pessoas normais e sem aprimoramento. Nesse cenário, os pós-humanos poderiam se tornar potencialmente intolerantes com aqueles que não são aprimorados.

 

Em Beyond Humanity?” [Além da humanidade?], Allen Buchanan observa que, apesar de não haver nenhuma razão lógica para as pessoas aprimoradas se considerarem superiores às não aprimoradas, elas, no entanto, “podem se considerar tão superiores que tratariam as outras (meras) pessoas como se estas tivessem um status moral inferior ao delas” [12].

 

Da mesma forma, Kurzweil adverte que “a tecnologia mais poderosa – a civilização tecnologicamente mais sofisticada – sempre vence” [13]. Dada a história de violência da humanidade contra o seu vizinho, é possível que o surgimento de uma raça pós-humana seria perigoso para aqueles que, quer por necessidade ou por escolha, permanecerem sem aprimoramento.

 

Mesmo que os “pós-humanos” resistissem à intolerância [14], eles poderiam remodelar a sociedade em geral a fim de que ela se adeque à sua capacidade e eficiência aumentadas. Embora tal “supersociedade” possa se provar incrivelmente sofisticada, Buchanan observa que os pós-humanos poderiam projetá-la de tal forma que “os não aprimorados, com efeito, se tornem deficientes: eles são incapazes de participar, ou incapazes de participar de uma forma minimamente competente, de processos econômicos e políticos essenciais” [15].

 

Como a nossa sociedade moderna já tem problemas para incorporar aqueles que têm deficiências físicas e cognitivas, podemos nos perguntar que lugar haverá para as pessoas não aprimoradas que vivam em uma sociedade feita sob medida para os pós-humanos.

 

Impasses entre cristianismo e trans-humanismo

 

Além dessas considerações éticas, o projeto trans-humanista assume certos pressupostos que os cristãos devem abordar. Um pressuposto fatal entre quase todos os trans-humanistas, observada pelo eticista e teólogo Gilbert Meilander, é “um compromisso extremo com o reducionismo materialista[16].

 

Mesmo para pensadores espiritualmente atentos, como Kurzweil, a espiritualidade está ligada meramente à consciência humana [17]. Para um trans-humanista, observa Hayles, a soma da consciência humana é “redutível, em última instância, à atividade cerebral” [18].

 

Por causa disso, escreve Hayles, os “padrões informacionais” do cérebro de uma pessoa têm precedência sobre a sua “instanciação material” dentro do próprio cérebro [19].

 

Em vez de ver o corpo como uma parte fundamental do ser humano, o trans-humanismo se junta ao restante da modernidade ao preferir a mente à matéria [20].

 

O cristianismo, entretanto, tem uma concepção muito mais positiva do corpo. Os humanos foram criados por Deus como criaturas espirituais dotadas de corpo e alma (Gn 2,7.21-22). Além disso, o corpo recebe uma grande dignidade, porque Cristo, na plenitude dos tempos, “se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). Foi o seu corpo humano que foi glorificado na Transfiguração (Mt 17,1-13). Foi em um corpo humano que o Filho de Deus suportou o sofrimento, morreu e foi ressuscitado para a salvação da humanidade (Mt 16,21-28; Mc 8,31-33; Lc 9,22-27; Jo 2,19-22; At 2,36; 1Tm 1,15). Foi Cristo que, em seu corpo humano, ascendeu à direita do Pai na glória, onde agora intercede em prol da sua criação (Lc 24,50-53; At 1,9-11; Hb 7,25).

 

Durante séculos, os fiéis cristãos almejaram e esperaram por uma ressurreição corporal (Rm 6,5; 1Cor 15,12ss; 1Ts 4,13-18; Ap 21,1-22,5). O corpo, apesar das suas falhas e limitações nesta vida, integra a compreensão cristã da personalidade e da salvação. Para o trans-humanista, entretanto, o corpo é apenas mais um obstáculo que a humanidade deve superar.

 

A maior armadilha do trans-humanismo, porém, é o seu equívoco entre liberdade e autonomia – a capacidade de os indivíduos governarem a si mesmos sem limites. No cerne da busca do trans-humanismo pela transcendência corporal reside um desejo maior: a liberdade de estar no controle completo do próprio destino.

 

Como escreve C. S. Lewis em “Aquela fortaleza medonha”: “Os sonhos do futuro destino distante do homem estavam arrastando de sua cova rasa e inquieta o antigo sonho do Homem como Deus” [21]. Apesar dos muitos fins positivos pelos quais o trans-humanismo se esforça (a melhoria da qualidade de vida, a mitigação do sofrimento etc.), a concepção cristã do ser não é estritamente definida como uma vontade pura e autônoma.

 

Em vez disso, como articula William Cavanaugh, “todos os seres participam de Deus, fonte do ser” [22]. Para o cristão, a verdadeira liberdade se encontra no serviço a fins valiosos – fins que encontram o seu cumprimento somente em Deus.

 

Apreciação cristã sobre o trans-humanismo

 

Apesar desse impasse entre o cristianismo e o trans-humanismo, os fiéis podem apreciar certas ênfases dentro do movimento. Por exemplo, os trans-humanistas estão preocupados com aqueles que experimentam sofrimentos corporais. Embora os cristãos confiem que o sofrimento não é sem sentido por causa do próprio sofrimento de Cristo por amor à humanidade, eles são chamados, mesmo assim, a cuidar do seu próximo em sofrimento. Muitas tecnologias propostas pelo trans-humanismo poderiam ajudar a fazer exatamente isso.

 

Mesmo assim, as maneiras pelas quais o cristianismo e o trans-humanismo abordam a questão do sofrimento diferem. Samuel Wells, em sua discussão sobre a clonagem humana, observa que a medicina moderna “tenta aperfeiçoar os corpos individuais e torná-los suficientes para si mesmos” e, ao fazer isso, “contorna a necessidade de cuidado humano substituindo-o pela intervenção tecnológica” [23].

 

Por causa disso, a medicina moderna tem se tornado cada vez mais negligente em relação ao “padrão de cuidado e de relações que torna a vida sustentável diante do sofrimento e da morte” [24]. Os cristãos, no entanto, são chamados a focar a sua atenção na oferta de cuidado e de vínculos comunitários para aqueles que sofrem aqui e agora. Infelizmente, é um chamado que muitos cristãos negligenciam.

 

Assim como os trans-humanistas, os cristãos também olham para o futuro da humanidade. A nossa esperança, no entanto, não reside em uma “evolução” teórica e tecnológica. Pelo contrário, como observa C. S. Lewis em “Cristianismo puro e simples”, “o próximo Passo já foi dado. E é realmente novo. Não é uma mudança de homens cerebrais para homens mais cerebrais ainda: é uma mudança que vai em uma direção totalmente diferente – uma mudança de criaturas de Deus para filhos de Deus” [25].

 

Em Cristo, o Verbo feito carne, o próximo “passo” da humanidade já foi dado, e nós, como cristãos, confiamos que um dia ele voltará. Assim como nosso Senhor Jesus morreu, foi sepultado e ressuscitou em glória, nós confiamos que um dia nós também seremos ressuscitados em corpo e alma.

 

A transcendência, para o cristão, é mais do que uma vida de consciência eterna. É uma eternidade visceral e corporal, em que homens e mulheres vivem em uma terra glorificada com corpos glorificados (Ap 21). Enquanto o trans-humanismo sonha com uma imortalidade desencarnada e mecânica para a humanidade, nós, cristãos – confiando nas promessas seguras e na obra de nosso Senhor Jesus Cristo – ansiamos por uma cidade gloriosa e celestial, onde viveremos e nos regozijaremos eternamente na presença do nosso Deus.

 

Notas:

1. Curran, Ian. Becoming Godlike? The Incarnation and the Challenge of Transhumanism. The Christian Century, 22 nov. 2017, p. 23.

2. De Condorcet, Nicolas. The Future Progress of the Human Mind, disponível aqui; citado em: Meilaender, Gilbert. Should We Live Forever? The Ethical Ambiguities of Aging. Grand Rapids: Eerdmans, 2013, p. 35.

3. Curran, op. cit., 23.

4. Honigsbaum, Mark. The future of robotics: in a transhuman world, the disabled will be the ones without prosthetic limbs. The Guardian, 15 jun. 2013, disponível aqui.

5. Kurzweil, Ray. The Age of Spiritual Machines: When Computers Exceed Human Intelligence. New York: Penguin Books, 2000, pp. 20-25, 102-105.

6. Kurzweil, op. cit., pp. 104-105. Deve-se observar que, desde 2000, as tecnologias computacionais experimentaram um patamar tanto na “velocidade cronológica máxima quanto na potência do projeto térmico”. Para os engenheiros da computação, no entanto, isso é visto como apenas mais uma pequena barreira que a engenhosidade humana logo superará. Cf. Patrick, Mark. Is Moore’s Law still the law?. Electronics Weekly, disponível aqui, 22 set. 2017.

7. Kurzweil, op. cit., p. 129.

8. Ibid, p. 130.

9. Ibid, pp. 152-53.

10. “The Transhumanist Declaration” (2009), Humanity+, disponivel aqui.

11. Allen Buchanan, no último capítulo de “Beyond Humanity?”, propõe uma “solução institucional” para essa distribuição desigual de tecnologia. Nele, ele constrói o Instituto Global para Justiça em Inovação (GIJI, na sigla em inglês), uma organização dedicada a promover “a difusão das inovações existentes com impacto na justiça por meio de um processo de várias etapas”. Entre essas etapas, estaria o incentivo à inovação por meio de incentivos, denunciando publicamente as “empresas que restringissem o acesso a seus produtos” e tendo uma “opção de licenciamento compulsório permanente para direitos de propriedade intelectual cujos proprietários não estivessem promovendo suficientemente a difusão para pessoas desfavorecidas”. Cf. Buchanan, Allen. Beyond Humanity? The Ethics of Biomedical Enhancement. Oxford: Oxford University Press, 2011, pp. 274-275.

12. Buchanan, op. cit., p. 225.

13. Kurzweil, op. cit., p. 129.

14. Buchanan argumenta que tal intolerância por parte dos seres aprimorados não é de forma alguma uma certeza. “Muito dependeria”, diz ele, “do fato de os aprimorados serem meramente mais fortes e mais inteligentes ou também moralmente aprimorados, com uma maior capacidade de empatia, um entendimento mais claro da base real do status moral e poderes mais impressionantes dos que possuímos para resistir à tentação de explorar os outros”. Cf. Buchanan, op. cit., pp. 226-227.

15. Buchanan, op. cit., p. 228.

16. Meilaender, op. cit., p. 28.

17. Kurzweil, op. cit., p. 153.

18. Hayles, N. Katherine. How We Became Posthuman: Virtual Bodies. In Cybernetics, Literature, and Informatics. Chicago and London: University of Chicago Press, 1999, pp. 2-3; citado em: Meilaender, op. cit., p. 24.

19. Idem.

20. Meilaender, op. cit., p. 26-27.

21. Lewis, C. S. That Hideous Strength. 2ª ed. New York: Macmillan Publishing, 1979, p. 203.

22. Cavanaugh, William. Being Consumed: Economics and Christian Desire. Grand Rapids: Eerdmans, 2008, p. 8.

23. Wells, Samuel. Improvisation: The Drama of Christian Ethics. Grand Rapids: Brazos Press, 2004, p. 199.

24. Wells, op. cit., p. 200.

25. Lewis, C. S. Mere Christianity. In: The Complete C. S. Lewis Signature Classics. Nova York: HarperOne, 2007, p. 172.

 

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