Uma evidência da pandemia: ensaio sobre a natureza da entrada das Health Techs no Complexo Econômico-Industrial da Saúde no Brasil

Coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”

16 Agosto 2021

 

“A natureza das Health Techs assume caráter híbrido no descolamento da reprodução social para a produção financeira. A startup de saúde assume característica de mantenedora da lógica da produção flexível na era da informação e também de aceleradora da digitalização e da financeirização, ao alavancar capitais especulativos. Essa tendência é ampliada com a covid-19, que torna a vulnerabilidade do sistema público de saúde ainda mais discrepante com relação ao sistema privado. As Health Techs são dinâmicas e respondem aos processos histórico e estrutural do CEIS, portanto apresentam possibilidades de disrupção da lógica hegemônica, isto é, capacidades de ampliarem inovações para o sistema único de saúde e de regredir sua vulnerabilidade alargada pela pandemia. Todavia, para que essa característica disruptiva das Health Techs saia do campo das ideias, faz-se urgente políticas de saúde e de inovação que recuperem o fôlego perdido”, escreve Tatiana Vasconcelos Fleming Machado em artigo para a coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”, publicada semanalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

Tatiana Vasconcelos Fleming Machado, economista pela Universidade Federal de Juiz de Fora, pós-graduada em Ciência de Dados pela PUC-Rio e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico da Unicamp. Tem experiência com economia industrial e economia da cultura. Ela foi uma das jovens inscrita na Economia de Francisco.

 

Eis o artigo.

 

1. Um panorama do Complexo Econômico-Industrial da Saúde

 

O Complexo Econômico-Industrial da Saúde tem passado por diversas transformações, que foram alavancadas pela pandemia da covid-19. A entrada de Health Techs no CEIS levanta hipóteses acerca da natureza da inserção dessas firmas no mercado, altamente concentrado e internacionalmente financeirizado. O modelo empresa-rede (CHESNAIS, 1994) é seguido no CEIS desde o final do século XX, implicando em separar a inovação da produção, ou seja, como forma de flexibilizar a etapa produtiva e de lidar com as incertezas geradas pelo rápido crescimento da tecnologia, a administração do conhecimento no CEIS fica concentrada em uma grande empresa em um país central, enquanto a transferência de tecnologia cria uma rede de produção com empresas de países periféricos. Essa lógica de desverticalização organizacional via processos de Aquisição e Fusão reduz os custos de transação das empresas líderes do CEIS, porém não separa a empresa da estrutura completa do Estado. Pelo contrário, a grande empresa é dependente da sinergia do sistema de inovação, da articulação de políticas públicas de Ciência e Tecnologia e Inovação do Estado. Por isso, faz-se mister dar relevo ao papel do setor público diante da inserção das Health Techs no CEIS.

Estudos recentes mostram que o número de startups da saúde no Brasil dobrou entre 2018 e 2020, saltando de 248 para 542 empresas (DISTRITO DATAMINER, 2020). Apesar de precisarem de fôlego financeiro e maturidade na fase inicial, e esses serem os fatores principal de suas falências, as Health Techs têm sofrido investimentos de outros atores do CEIS e as associações não ficam restritas às líderes. Vale-se, portanto, um ensaio acerca da coordenação e da gestão da informação final gerada pelas Health Techs. É importante frisar que não há perda de identidade tanto da adquirente quanto da adquirida nesse processo de associação (CHESNAIS, 1994).

Segundo Penrose (1995), as firmas são mais que unidades administrativas, elas são um conjunto de recursos produtivos, cujo arranjo de utilização é determinado por decisões administrativas. Na perspectiva da inserção das Health Techs, os recursos materiais seriam os equipamentos, escritórios e todos os produtos intermediários necessários para a planta da startup, enquanto os recursos humanos ou intangíveis envolvem outra grande parte do valor. Silvia Possas (1995) afirma que os recursos ou ativos intangíveis têm características de serem pouco flexíveis, específicos e raramente transitáveis. As inovações criadas pelos ativos intangíveis colocam a informação no centro da relação com o capital nessa nova configuração e na entrada das Health Techs. Para Possas (1995), os ativos intangíveis podem proporcionar diferentes serviços (ou insumos) inovadores e, por isso, sua articulação dentro da gestão administrativa da empresa é fundamental para aumentar a eficiência de mercado.

Logo, o objetivo do ensaio é abrir diálogos acerca das oportunidades de entrada das Health Techs no Complexo Econômico-Industrial da Saúde brasileiro e traçar caminhos de discussão averca da finalidade dessas startups dentro da lógica hegemônica da financeirização. Sabe-se que a era da informação foi permissiva às finanças na captura da saúde. A partir de um esforço analítico microdinâmico, a conjuntura da pandemia do novo coronavírus torna os dados de entrada de Health Techs no CEIS do Brasil mais evidentes.

 

2. Transformações recentes no CEIS do Brasil

 

A transição da era do industrialismo para a era do “informacionalismo” surge com o objetivo de lidar com as incertezas do acelerado avanço tecnológico, que impacta no despontamento da produção “enxuta” do Complexo Econômico-Industrial da Saúde brasileiro. Ou seja, a nova forma como os conhecimentos são administrados e transferidos ganham destaque central na arquitetura corporativa da saúde, rompendo com a antiga lógica produtiva. As redes informacionais se estendem às relações nacionais e internacionais das grandes empresas, hospitais e operadoras de saúde a partir da transferência de tecnologia com pequenas empresas, identificadas como gestantes de conhecimentos potenciais às estratégias competitivas e de redução de custos (CHESNAIS, 1994).

A empresa-rede é a reestruturação econômica, onde a tendência de mudança da produção em massa para a produção flexível surge para suprir necessidades de diversificação da economia. Outra tendência observada é a crise das grandes empresas verticalmente integradas, que possuíam hierarquias de gerenciamento antes dos anos 1980. Nesse cenário surge o embate entre grandes e pequenas empresas, já que as Pequenas e Médias empresas (PME) são as grandes geradoras de emprego e estão na corrida de adaptação ao sistema flexível de produção da economia informacional e as grandes detêm os controles financeiro, tecnológico e comercial das menores.

Conquanto, ainda há espaço para empresas na era da informação para o mercado da saúde. Pesquisa do McKinsey Global Institute, think-tank interno da consultoria homônima, avaliou que a indústria da saúde tem muita capacidade ociosa para trabalhar na era da informação e, enfim, se digitalizar (LUND, 2021). O Complexo Econômico-Industrial da Saúde é composto por milhares de fluxos de dados que se transformam em informações relevantes diariamente nas tomadas de decisão, porém, muitos desses dados não são digitalizados e expõem as deficiências digitais do CEIS. Cerca de 70% dos hospitais americanos ainda enviam registros dos pacientes pelo meio físico e o CEO de um grande hospital em Madrid relatou não haver praticamente nenhum compartilhamento de registro eletrônico nas regiões da Espanha na primeira onda de covid-19. Confrontados com os desafios, grande parte dos médicos adotou a comunicação digital e os pacientes estão ficando mais confortáveis com o diagnóstico e tratamento remotos assistidos por computador (LUND, 2021).

Ao expor as deficiências digitais dos setores do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, a pandemia estimula uma mudança no CEIS. Devido à característica do gerenciamento adaptado à economia global e ao sistema flexível de produção, o surgimento e desaparecimento de atores se torna dinâmico. Na busca por responder demandas do CEIS e com objetivo de reduzir incertezas, as empresas empreendedoras ou startups de aplicativos de saúde (de hospitais a seguradoras) e as farmácias estão lutando para fornecer esses serviços demandados no Brasil. Em um escopo global, as gigantes da tecnologia como Amazon, Apple e Google também merecem um olhar apurado a esse fenômeno.

O Complexo Econômico-Industrial da Saúde brasileiro necessita de investimentos desde antes da crise da pandemia do novo coronavírus. Tal carência é sentida fortemente no setor público, limitado aos avanços tecnológicos e produtivos do advento da Indústria 4.0 (SARTI; HIRATUKA; FONSECA, 2021), e também no gradual dirimir da esfera de reprodução social feito pela escalada da financeirização na saúde (CORDILHA; LAVINAS, 2018). A crise do covid-19 deu saltos largos aos movimentos em curso, acelerando processos de digitalização e de financeirização, que explicitam a vulnerabilidades do CEIS. Nessa dinâmica de fraqueza do setor público e de aceleração da financeirização, coloca-se em xeque a teleologia dos agentes entrantes, como as Health Techs.

As Health Techs apresentaram crescimento acima de 140% de 2019 para 2020 no Brasil, segundo a pesquisa do Distrito Dataminer (2020), atuando como resposta às demandas de digitalização da saúde, majoritariamente do setor privado. Pela perspectiva das empresas líderes do CEIS, esse crescimento das Health Techs implica em uma estratégia de diversificação, como mostra Penrose (1995). A relativa facilidade de entrada implica em capacidade ociosa de produção digital no mercado da saúde, mas também em barreiras mais baixas para o seu ingresso.

A expansão no mercado de saúde por meio de novos produtos e serviços, oriundos de outras áreas tecnológicas, implica tanto na estratégia de diversificação das empresas líderes do CEIS, quanto em uma nova forma de organizar hierarquias. Em uma era informacional das redes, a norma de sobrevivência no mercado é via dominação de novos ambientes sem compromisso. Como aponta a revista The Economist (2020), a crise do novo coronavírus avançou nas respostas que estavam sendo formuladas frente à preocupação do avanço das empresa-rede, como a adoção ativa de novas tecnologias pelas líderes e o aumento preocupante dos oligopólios bem conectados.

As tecnologias da era informacional tornam possível uma gestão mais eficiente das novas relações por meio das quais as empresas líderes se estabelecem. Isso viabiliza o controle estrito das empresas-rede sob parte das operações das Health Techs, sem precisar absorvê-las. Os efeitos centrípetos da internalização das externalidades positivas das grandes empresas se apoiam nas redes de informação com o objetivo de reduzir custos de transação no mercado (CHESNAIS, 1994). Os acordos de cooperação entre grandes empresas farmacêuticas, por exemplo, e Health Techs decorrem de estratégias de apropriação de recursos abaixo do valor das destas. Conquanto, as Health Techs possuem uma dinâmica diferente das pequenas empresas e dos laboratórios universitários ou públicos, onde as grandes empresas também buscam acordos. O que muda a configuração das Health Techs nesse caso é o fato de estarem inseridas no mercado financeiro desde sua gênese.

A aceleração das Health Techs vem a reboque da captura da esfera da reprodução social pela financeira em todo Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Os produtos das Health Techs surgem para completar os serviços do CEIS, porém o limite entre contribuição produtiva e inchamento financeiro requer maior cuidado analítico. Como não há alteração do núcleo duro das empresas líderes, as dimensões das Health Techs podem ser vistas como agentes facilitadores da nova forma de quase-integração (CHESNAIS, 1994), ou seja, agindo em prol da maximização das possibilidades de redução de custos de transação das grandes empresas.

O mapeamento Distrito Healthtech Report (2020) aponta que das 782 Health Techs brasileiras registradas pelo Distrito (2020), 244 se enquadram na categoria de Gestão e Prontuário Eletrônico do Paciente (PEP), que se divide em três subcategorias: Gestão, Prontuário Eletrônico e Atestados/Laudos/Prescrições. Apesar de ser um setor relativamente “antigo”, remetendo-se ao final dos anos 1980, foi apenas em 2011 que a categoria de Gestão e Prontuário sofreu forte investimento, sendo fundadas 12 Health Techs de Gestão & PEP. O ano de destaque de novas Health Techs da categoria foi 2016, com o surgimento de 38 negócios no país (DISTRITO, 2020).

A segunda categoria com o maior número de Health Tech no Brasil é a de acesso à saúde, já a terceira é a de telemedicina, a quarta de medical devices e a quinta de AI & Big Data. As tecnologias desenvolvidas pelas Health Techs trazem soluções para diversas áreas do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, desde o cuidado preventivo para minimizar efeitos de doenças, passando pela otimização de processos cirúrgicos, até pela gestão e soluções de ensino médico (DISTRITO, 2020).

A entrada das Health Techs no Complexo Econômico-Industrial da Saúde brasileiro se insere no quadro global da internacionalização do capital e da concentração das empresas líderes da saúde, como dito. O deslocamento do produto inovador é característica fundamental para a compreensão da entrada das empresas de tecnologia na área da saúde, perante ampliação da relação entre capital e centralidade da informação. Aponta-se para a vulnerabilidade do SUS, que já vinha em curso, e foi ampliada pela nova dinâmica de acumulação das empresas líderes do CEIS (SARTI; HIRATUKA; FONSECA, 2021). A tendência de aumento nos gastos em P&D das empresas líderes e a elevação das receitas das operadoras de saúde são contrapostas ao insuficiente financiamento público na viabilização do Sistema Único de Saúde (SUS). Como aponta Gadelha (2012) o faturamento do mercado da saúde é superior ao investimento público em saúde no SUS, que beneficia grande parte da população brasileira.

A pandemia da covid-19 alargou ainda mais a vulnerabilidade no CEIS, para tanto, o papel de articulação de agendas de inovação e de saúde do Estado é latente. Desse modo, encontram-se gargalos a serem agenciados pela sistêmica ação de atores público e privado da saúde. A ociosa governabilidade do Estado (BOSCHI, 2016) no Complexo Econômico-Industrial da Saúde lança luz ao passado recente de expansão da capilaridade nos anos 2000, cessada pelos cortes recentes de investimento, que já eram limitados (SARTI; HIRATUKA; FONSECA, 2021).

 

3. Ativos intangíveis das Health Techs e capacidades estatais

 

Silvia Possas (1995) escreve acerca da coleção de recursos produtivos das firmas, e lança luz aos ativos imateriais. A autora defende que, dentre os recursos físicos, humanos, financeiros e intangíveis, estes últimos são os ativos que possuem a maior fonte de economia de expansão devido a sua característica pouco flexível. A dificuldade em se transmitir um ativo intangível ou conhecimento aporta necessidade de criar estratégias de aproveitamento desse recurso às empresas sobreviventes na era do “informacionalismo”. Como a “venda” de conhecimento não necessariamente implica em transferência do saber, o ativo intangível permanece sob controle do vendedor e o comprador precisa estar no momento correto para recebê-lo. As startups de saúde possuem um estoque de ativos intangíveis que interessa às grandes empresas do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, já que vislumbram melhores estratégias de concorrência. Nesse sentido, a valorização do capital e a razão do aumento das Health Techs no mercado da saúde transpassa seu arsenal de conhecimento.

Visando analisar o impacto dos ativos intangíveis das Health Techs, o presente ensaio aponta para três características das startups de saúde no Brasil: disruptiva da lógica do CEIS, mantenedora da financeirização e aceleradora do descolamento da inovação para o mercado financeiro.

A primeira característica enfoca as disrupções no campo inovador das Health Techs, que impactam o sistema produtivo na economia em rede. Ao oferecerem serviços e produtos que agilizam o atendimento médico, as Health Techs garantem a otimização dos recursos do sistema de saúde, que muitas vezes estão em falta ou são subutilizados em um hospital. Outro fator disruptivo é o seu potencial para solucionar desafios enfrentados pelos governantes, ou seja, ao desenvolverem soluções tecnológicas personalizadas a cada demanda de saúde do governo, as Health Techs oferecem escalabilidade e eficiência aos custos do estado. Nesse cenário, as Health Techs buscam soluções para gargalos do sistema público, inovam trazendo produtos e serviços que mitigam o acionamento do sistema de saúde e trazem respostas mais rápidas para um atendimento mais eficiente.

As Deep Techs são um tipo de startups e não despontam como alternativas às Big Techs norte americanas e chinesas, conquanto são empresas que surgem em países periféricos com o objetivo de dar continuidade a tecnologias avançadas. Basicamente, seu ideal é romper com a lógica das startups orientadas a produtos e unir sentido político e filosófico às estratégias dessas empresas. A ideia desse tipo de negócio surge em solo de Países em Desenvolvimento (PED) e busca juntar alta tecnologia com demandas e valores dos países do Sul Global, como mostram a Holonomics e a 1STi. Na era do informacionalismo, os dados da saúde garantem poder não apenas econômico e social, mas ambiental e em toda dinâmica de desenvolvimento (GADELHA, 2012), e as Health Techs podem ser motores de impacto social e de inovação, caso cumpram as diretrizes de serem Deep Techs.

A segunda característica das Health Techs é a de mantenedora da lógica passiva no sistema de empresa-rede. Ou seja, seu papel de coordenada, que alimenta a financeirização do sistema e não altera as instituições impostas pelas empresas líderes. O que justifica esse ponto é o fato de serem empresas pequenas e em estágio inicial de desenvolvimento, como mostra a pesquisa do Distrito Dataminer (2020), 91,7% das Health Techs possuem até 50 funcionários, implicando em uma identidade frágil diante da dinâmica de concentração de poder do CEIS.

O pouco fôlego das Health Techs deixa clara a necessidade por alianças estratégicas no modelo organizacional vigente do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Algumas associações, apesar de serem coordenadas hegemonicamente pelas líderes, também são observadas entre Health Techs e Pequenas e Médias Empresas (PME) (DISTRITO, 2020), o que implicam em uma nova reorganização mais flexível. Essa observação não é tão recorrente, contudo, merece certo destaque e aprofundamento analítico para se compreender esse tipo de relação.

Faz-se mister dar destaque às Health Techs que surgem no bojo das Universidades, principalmente as públicas. A Lei de Inovação Federal de 2004 criou medidas de incentivo à inovação e à pesquisa em ciência e tecnologia nas Universidades e Institutos Federais. O estímulo à autonomia tecnológica foi fundamental para o desenvolvimento de inovações no país até cerca de 2015, em contraponto à baixa liberação de capacidade de crescimento industrial. A grande capacidade ociosa da indústria é vista através das magrezas de estoques e de emprego e pelo ajuste de capacidade produtiva estancado na pandemia. Apesar do cenário industrial em crise e da vulnerabilidade do sistema público de saúde, que se agravam diante da pandemia, a lei federal de 2004 permitiu gestação de compartilhamento de conhecimento dos laboratórios de instituições científicas e tecnológicas (ICTs) por empresas incubadas e por empresas nacionais. Os ICT’s são entidades que fomentam atividades de pesquisa básica e aplicada, de caráter científico e tecnológico, como mostra a Revista de Audiência Pública do Senado Federal (2012), além de serem incubadoras de Health Techs, como a Bioxthica, a Healthbit, a HOOBOX ROBOTICS e a ProHealth. Há também parcerias de Health Techs que não surgiram em incubadoras de ICT’s com Universidades públicas e privadas, como a Sanar Med, Health Tech. Esta última tem parceria com universidade privadas de medicina, com objetivo de ampliar o processo de aprendizagem a partir de tecnologias, como a realidade aumentada.

Para Chesnais (1994), os acordos de cooperação entre pequenas empresas, universidades ou laboratórios públicos com as empresas líderes é uma das estratégias de manutenção da reorganização da produção em redes. Dessa forma, as Health Techs seriam mantenedoras da lógica da internalização dos excedentes para as grandes empresas, garantindo uma produção flexível. Essa orquestração assimétrica se faz a partir dos contratos que remuneram as empresas pequenas abaixo do valor real que elas geram às receitas das grandes.

A terceira característica das Health Techs é a de aceleração ativa na gestação da lógica financeira além da digital, pois algumas formas de captação e de manutenção de suas receitas líquidas estão associadas ao mercado financeiro. Esse fato pode reverberar no descolamento ex post do propósito da inovação para o da financeirização das Health Techs.

Ao analisar o vínculo das Health Techs com os mercados financeiros, pode-se identificar sinais desse fator, visto que o volume de aportes captados por Health Techs é algo relevante. Segundo o Distrito (2020), foram investidos desde 2014 US$ 430 milhões, ao longo de 189 rodadas de Venture Capital. Além de serem empresas que podem nascer no mercado financeiros, como lances de IPO das empresas unicórnio (startups que possuem valor de mercado de mais de 1 bilhão de dólares). Desse modo, a teleologia das Health Techs toma uma característica híbrida no espectro da financeirização, de empresa coordenada do CEIS (mantenedora) ao mesmo tempo de empresa ativa nas gestações financeira e digital (aceleradora).

A teleologia das Health Techs é melhor delineada quando se coloca de pano de fundo o papel do Estado brasileiro na análise do CEIS. Segundo Gadelha (2012), a perspectiva do processo de inovação e de desenvolvimento na saúde requer três fortes articulações: entre a “geração e difusão de tecnologias, a dinâmica institucional e social e a estruturação do Estado e sua relação com o setor privado”. O papel do Estado como regulador e promotor de atividades de inovação na saúde é histórica e estruturalmente fundamental para o desenvolvimento produtivo do CEIS no Brasil, porém o baixo investimento público, se comparado ao tamanho do crescimento do mercado, torna a estrutura produtiva e tecnológica vulnerável.

Logo, sinais indicam que a natureza das Health Techs assume caráter híbrido no descolamento da reprodução social para a produção financeira. A startup de saúde assume característica de mantenedora da lógica da produção flexível na era da informação e também de aceleradora da digitalização e da financeirização, ao alavancar capitais especulativos. Essa tendência é ampliada com a covid-19, que torna a vulnerabilidade do sistema público de saúde ainda mais discrepante com relação ao sistema privado. As Health Techs são dinâmicas e respondem aos processos histórico e estrutural do CEIS, portanto apresentam possibilidades de disrupção da lógica hegemônica, isto é, capacidades de ampliarem inovações para o sistema único de saúde e de regredir sua vulnerabilidade alargada pela pandemia. Todavia, para que essa característica disruptiva das Health Techs saia do campo das ideias, faz-se urgente políticas de saúde e de inovação que recuperem o fôlego perdido.

 

4. Algumas considerações: o que podemos vislumbrar?

 

A estratégia de acumulação das empresas líderes pode se camuflar em diversas formas, e uma delas é na massiva entrada de Health Techs no Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Dessa forma, a assimetria ao acesso à saúde no Brasil é ampliada, e o ensaio aborda duas formas observadas desse alargamento: i) a aceleração das tecnologias 4.0 no setor privado e sua obliteração de investimento escalonada no setor público, tornando-se ponto nevrálgico na pandemia do novo coronavírus; ii) o papel mantenedor da financeirização no CEIS cumprido pelas Health Techs.

O caráter híbrido das Health Techs estabelece uma balança de análise crítica para o ensaio e traz à tona a necessidade de articulação das capacidades estatais como condição sine qua non à regressão do alargamento exponencial da vulnerabilidade do CEIS no Brasil durante a pandemia. Devido ao fato de, ao mesmo tempo em que se observam nas Health Techs algumas parcerias com pequenas e médias empresas e despontamentos desse tipo em universidades, as mesmas são coordenadas pelas grandes líderes do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, que detêm o poder de controle da gestação financeira do sistema. No sentido em que tal coordenação pode ser direta ou indireta e que a natureza das Health Techs aporta capital em mercados especulativos, o papel do Estado é o alicerce agenciador fundamental de sinergia no sistema de Ciência, Tecnologia e Inovação do país.

O ensaio mapeou três características assumidas pelas Health Techs na pandemia e aponta sinais fracos de disrupção e de agenciamento desses ativos intangíveis nas esferas da reprodução social. Contudo, a tendência forte é do híbrido de manutenção do sistema em rede e de aceleração da financeirização. Contrapartidas do Estado brasileiro no passado mostram as boas práticas latentes no potencial estímulo à inovação e à acessibilidade tecnológica, vide a Lei Federal de 2004. Juntamente com o deslanche do número de Health Techs no país, frente à vulnerabilidade do Sistema Único de Saúde escancarada pela pandemia do novo coronavírus, há alargamento expressivo da capacidade ociosa e distanciamento da gestação de processos inovadores nas esferas públicas. Logo, as inovações incrementais das Health Techs na produção nacional e a transferência de tecnologia para inovar demandam administrações em projetos complementares, visando redução da vulnerabilidade do SUS e retomada da produção pública no Complexo Econômico-Industrial da Saúde do Brasil.

 

Referências

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CASTELLS, Manuel et al. A sociedade em rede: do conhecimento à política. A sociedade em rede: do conhecimento à ação política, p. 17-30, 2005.
CHESNAIS, François. A Mundialização do Capital, tradução Silvana Finzi Foá, São Paulo: Xamã, 1996. Título Original: La Mondialisation du Capital, París, Syros, 1994.
CORDILHA, Ana Carolina; LAVINAS, Lena. Transformações dos sistemas de saúde na era da financeirização. Lições da França e do Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 23, p. 2147-2158, 2018.
DISTRITO. Distrito Dataminer 2020. São Paulo: Distrito, 2020. Disponível neste link.
GADELHA, Carlos Augusto Grabois. A dinâmica do sistema produtivo da saúde: inovação e complexo econômico-industrial. Editora Fiocruz, 2012.
LUND, Susan, et al. "The future of work after COVID-19." McKinsey Global Institute 18, 2021.
PENROSE, Edith. The theory of the growth of the firm. Oxford: Oxford University, 1995
POSSAS, Maria Silvia. Notas acerca da lógica de decisão e de expansão da firma capitalista. 1995.
REVISTA DE AUDIÊNCIA PÚBLICA DO SENADO FEDERAL. Em discussão!, ano 3, nº 12, setembro de 2012. Disponível neste link.
SARTI, Fernando; HIRATUKA, Celio; FONSECA, Camila. A crise sanitária da covid-19 e a vulnerabilidade produtiva e tecnológica do Complexo Econômico-Industrial da Saúde no Brasil no contexto da financeirização. Cadernos do Desenvolvimento, p. 129, 2021.
THE ECONOMIST, The coronavirus crisis will change the world of commerce. Disponível neste link.

 

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