A humanidade já está perdendo para as mudanças climáticas. Entrevistas com Paulo Artaxo, José Marengo e Marcos Buckeridge

Cientistas dizem que não há mais como contestar: as transformações no planeta são aceleradas pelas ações humanas e estamos atrasados na tarefa de rever nossos modos de vida

Cheias do Rio Negro, em Manaus, no Amazonas, formam recordes esse ano | Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real

Por: João Vitor Santos | 12 Agosto 2021

 

No início desta semana, a divulgação do 6º Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, o IPCC, causou grande impacto. Mas, no decorrer da semana, o assunto foi lentamente abandonando as manchetes e deixando de causar espanto nas pessoas. Uma lástima segundo os organizadores do documento que, através de uma linguagem clara e contundente, visa justamente mostrar como o aquecimento global diz respeito a todos. Assim, para manter o assunto na pauta do dia, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU procurou cientistas para que discutissem aquilo que acham mais importante no relatório. Mas não houve debate. Há apenas consenso. Como diz Marcos Buckeridge, em entrevista concedida por e-mail ao IHU, “estamos perdendo para o avanço das mudanças climáticas”. Isso porque está mais do que claro que o aquecimento da temperatura do planeta tem acelerado por ação humana. “Nos outros relatórios se discutia se era provável, pouco provável, muito provável, mas agora sim, é um fato comprovado: o ser humano é responsável pelo aquecimento, particularmente por aquele dos últimos 20 anos”, complementa José Marengo, em entrevista concedida via Zoom.

 

O outro consenso entre os especialistas é que a humanidade está atrasada na reação, já não é mais uma questão de gerações. Nossos hábitos devem mudar agora porque nós mesmos temos sofrido com o desequilíbrio que causamos no planeta. “Muitas das mudanças climáticas são irreversíveis. Por exemplo, uma vez que se derretem toneladas e toneladas de gelo da Groenlândia, tudo isso vai para os oceanos e, obviamente, não há como fazer com que esse gelo derretido volte para o local de origem”, observa Paulo Artaxo, em entrevista concedida via áudios de WhatsApp. Com isso, perdemos biodiversidade e eventos climáticos extremos fazem de nossa vida um tormento. Enquanto nas cidades sofremos com alagamentos ou desabastecimento de água potável, no campo já não conseguimos mais produzir tanto. “Basta termos uma ideia, este ano, do quanto o agronegócio brasileiro está perdendo de recursos: são bilhões de dólares por causa da seca que está atingindo uma parte significativa do Brasil”, exemplifica Artaxo.

 

Assim, é elementar a mudança de hábitos. “É preciso convencer a todos de que o Homo sapiens não é o centro, mas sim uma parte do sistema. E que, sem equilíbrio do sistema, a civilização não se sustenta. Este talvez seja o maior dos desafios que temos para enfrentar as mudanças climáticas”, avalia Buckeridge. E esse desafio ainda passa pela cobrança de políticas públicas, e mudanças de posturas de gestores de governos. “Fico com muita pena pelo fato de o relatório não ter tido uma repercussão no governo [brasileiro]. Quando digo repercussão, refiro-me a alguma declaração de algum ministro, dizendo que o país vai assumir os compromissos do Acordo de Paris por causa das mudanças climáticas”, dispara Marengo.

 

Paulo Artaxo é graduado em Física pela Universidade São Paulo - USP, mestre em Física Nuclear e doutor em Física Atmosférica pela USP. Trabalhou na NASA (Estados Unidos), Universidades de Antuérpia (Bélgica), Lund (Suécia) e Harvard (Estados Unidos). Atualmente é professor titular do Departamento de Física Aplicada do Instituto de Física da USP. Ainda é membro do IPCC e atuou na elaboração no Relatório divulgado nesta semana.

 

José Marengo possui graduação em Fisica y Meteorologia e mestrado em Ingenieria de Recursos de Agua y Tierra pela Universidad Nacional Agraria em Lima, Peru, doutorado em Meteorologia pela University of Wisconsin, Madison, nos EUA. Fez pós-doutorado na NASA-GISS e Columbia University em Nova York e na Florida State University, na Flórida, EUA, em modelagem climática. Atualmente é pesquisador titular e Coordenador Geral de Pesquisa e Desenvolvimento no Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais - Cemaden, ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação - MCTI.

 

Marcos Buckeridge é professor titular do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Desde 2008, é diretor do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol - INCT do Bioetanol. Possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade de Guarulhos, em São Paulo, mestrado também em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de São Paulo - Unifesp e doutorado em Biological And Molecular Sciences pela University Of Stirling, na Escócia.

 

Confira as entrevistas.

 

IHU – Diante dos dados apresentados pelo relatório, como mensurar os tipping points [1], os chamados pontos de não retorno, no cenário brasileiro? E o que fazer nesses casos em que a reversão já não é mais possível?

Paulo Artaxo – Muitas das mudanças climáticas são irreversíveis. Por exemplo, uma vez que se derretem toneladas e toneladas de gelo da Groenlândia, tudo isso vai para os oceanos e, obviamente, não há como fazer com que esse gelo derretido volte para o local de origem. A mesma coisa na Antártida. No caso de uma floresta, uma vez derrubada, pelo menos na escala de tempo de alguns séculos dificilmente é possível recuperar a saúde e a biodiversidade originais dessa floresta.

 

Paulo Artaxo (Foto: Unicamp)

 

A questão é que não sabemos ainda onde estão os tipping points no sistema climático, tanto no cenário brasileiro como no global. Há algumas indicações, mas o relatório do IPCC não aponta quais são esses tipping points, por falta de embasamento científico.

 

 

José Marengo – Essa questão de tipping points foi uma hipótese, uma teoria que saiu faz algum tempo. No caso do Brasil, da América do Sul, um tipping point seria a Amazônia, mas existem outros em vários lugares do planeta. No caso da Amazônia, chegando-se a um aquecimento de 4, 4,5 graus ou a um desmatamento de uma área maior do que 40%, ou ainda ao aumento da concentração de CO2 acima de 400, o clima posterior nos levaria ao tipping point e, com isso, o clima passaria a ser diferente.

 

José Marengo (Foto: Fapesp)

 

Essa diferença seria, segundo os modelos, o colapso da Amazônia e a substituição por outro tipo de vegetação, que poderia ser uma savana ou uma floresta secundária. Isso significaria outro ecossistema, outro bioma. Atualmente, a Amazônia funciona como um sumidouro de carbono e, se ultrapassarmos esse tipping point, ela passaria a ser uma fonte de carbono. Como uma fonte de carbono, amplificaria muito mais o aquecimento global. Claro que teríamos impactos na biodiversidade e também no papel que a Amazônia tem como fonte de umidade, como no caso de chuvas em outros lugares como, por exemplo, na Bacia do Prata, no sudeste da América do Sul.

 

 

Alguns pesquisadores dizem que nós já entramos no tipping point, mas é difícil saber, porque a Amazônia tem quase seis milhões de quilômetros quadrados. Talvez a área que já poderia ter entrado em tipping point seria o sudeste amazônico, onde temos o arco de desmatamento e a área que é mais vulnerável a queimadas, como demonstra o estudo da Luciana Gatti, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - Inpe.

 

Artigo referente aos estudos, publicado na revista científica Nature, pode ser acessado aqui

 

Segundo essas observações, nessa região já haveria um comportamento correspondente a uma fonte de carbono. Mas isso são observações iniciais, não há uma generalização de que a Amazônia já passou todo o ponto de inflexão e que o clima já mudou. É apenas uma amostra porque, segundo os modelos, esse tipping point aconteceria em meados deste século, mais ou menos em 2050, 2060 e ainda é relativamente muito cedo. No entanto, o fato é que já existem algumas amostras por aí e já podemos ver que estão aparecendo.

 

Marcos Buckeridge – Estamos perdendo para o avanço das mudanças climáticas. A temperatura do planeta está aumentando muito rápido e vários efeitos já estão se tornando irreversíveis a médio e longo prazo. O aumento no nível do mar, por exemplo, que deriva do degelo principalmente nos polos do planeta, deverá continuar pelo menos até o fim deste século. O aumento médio de temperatura na atmosfera aquece lentamente o mar causando problemas nas regiões costeiras, que sofrerão cada vez mais destruição. Há também um efeito em terra, que é o degelo dos topos de cadeias de montanhas muito altas. Em muitos lugares no mundo – um exemplo são os Andes – cidades próximas obtêm a sua água através de um lento degelo da neve, que fornece a água na intensidade e velocidade certas. Com o degelo rápido, mais água pode gerar alagamentos. Por outro lado, quanto mais o degelo aumenta, menos água ficará disponível para as populações.

 

Marcos Buckeridge (Foto: Arquivo Pessoal)

 

No Brasil, os efeitos da gestão desastrosa da Amazônia se somam ao aumento de temperatura de 10 graus Celsius devido às mudanças climáticas. Com as políticas descabidas do governo federal, diminuindo a vigilância, não aplicando multas e desprezando a ciência sobre o assunto, ensejam e até estimulam mais queimadas. Estamos muito próximos, se é que já não passamos, de um efeito irreversível sobre a Amazônia oriental. Quando se perde uma floresta, mesmo que seja uma parte dela, a recuperação, se houver, pode levar mais de uma centena de anos. Já sabemos que a idade média das árvores no ambiente tropical no mundo é, em média, de 180 anos. Portanto, ao perder árvores, que são os seres que sequestram a maior parte do carbono em seus corpos, teremos que esperar o mesmo tempo para chegar ao mesmo acúmulo de carbono. Considero, portanto, a perda de floresta que estamos vendo na Amazônia brasileira irreversível para este século. Mesmo que iniciemos processos de replantio e recuperação, eles levarão muitas décadas para atingir o patamar que hoje existe.

 

 

Descobrimos recentemente que a mortalidade das árvores deve aumentar drasticamente se a temperatura média em ambiente tropical passar de 25,4 graus Celsius. A má notícia é que em muitas partes dos trópicos já atingimos esta temperatura. A Amazônia já tem a sua mortalidade de árvores aumentada, e com um aumento ainda maior na temperatura do planeta os efeitos podem ser desastrosos nas próximas décadas.

 

 

No Nordeste brasileiro e também no Cerrado, os efeitos podem não ser mais reversíveis para o século XXI. Na Caatinga, de um ambiente semiárido podemos chegar a um deserto. O nosso Cerrado já está se tornando mais seco e mais quente e com isto caminha para se tornar cada vez mais um ambiente semiárido e em alguns casos pode também se aproximar de características de deserto.

Na costa brasileira, ao invés da predominância de bancos de corais, temos um sistema chamado de rodólitos. Eles são como os corais, mas são pequenos pedaços de carbonato de cálcio (como nos corais), mas espalhados pelo fundo do mar na costa. Os rodólitos são sistemas extremamente delicados e sujeitos a desmonte conforme as tempestades se tornam cada vez mais extremas na costa. Com tempestades cada vez mais frequentes, pode ser que não consigam mais se recuperar, gerando perda de biodiversidade.

Há muitos resultados negativos devido a todos esses efeitos, mas dois deles podem ser salientados. Um deles é a perda de biodiversidade e com ela a perda de possibilidades de cura de doenças, descobertas de novos materiais, entre muitas outras consequências. O outro efeito é sobre o próprio clima. Ao afetar os biomas brasileiros, particularmente a Amazônia, a Caatinga e o Cerrado, provocam-se efeitos sobre a estabilidade do clima em toda a região Sudeste, causando secas prolongadas que atingirão em cheio o agronegócio brasileiro.

Assim, olhando somente alguns dos tipping points que afetam o Brasil, podemos concluir que as consequências dos efeitos das mudanças climáticas para os brasileiros têm um potencial terrível e potencialmente devastador. Temos que tomar providências com urgência, pois estamos rapidamente nos aproximando de pontos de não retorno.

 

 

IHU – Quais os impactos sociais e econômicos dessas mudanças climáticas no Brasil e que caminhos se pode construir diante desses cenários?

Paulo Artaxo – Os impactos sociais e econômicos das mudanças climáticas serão enormes. Basta termos uma ideia, este ano, do quanto o agronegócio brasileiro está perdendo de recursos: são bilhões de dólares por causa da seca que está atingindo uma parte significativa do Brasil.

 

 

Esses impactos sociais e econômicos só tendem a aumentar, por exemplo, com o processo de desertificação acelerada do Nordeste brasileiro. Os impactos sociais serão enormes porque o Brasil precisará ter uma estratégia de como realocar milhões de brasileiros que vão viver em regiões onde será difícil haver atividades econômicas no futuro.

 

José Marengo – Temos todos os tipos de impactos esperados, dependendo da região. Se pensarmos na Amazônia, veremos que em 20 anos tivemos três secas extremas e três enchentes extremas. Essa alteração na frequência de extremos tem impactos na população. Já devem ter visto fotos de Manaus inundada recentemente e isso afeta a população e o comércio.

 

 

Uma seca, noutro exemplo, pode aumentar a intensidade e o risco de incêndios e isso indiretamente afeta a população, mesmo a fumaça produzida pela queimada pode agredir a saúde das pessoas e afetar os serviços ecossistêmicos que a floresta oferece. Uma seca pode deixar o rio muito baixo ou uma enchente eleva muito os níveis dos rios e, como nessa região muitas pessoas dependem dos rios porque não há estradas, essas alterações deixam populações isoladas. Em tempos de pandemia é ainda pior, porque a vacina não pode parar de chegar até essas comunidades.

No caso do Nordeste, por exemplo, as secas de 2012 e 2018 mostraram que a pequena agricultura, a agricultura familiar é a mais afetada. A grande agricultura, como no caso de Petrolina, Pernambuco, que produz frutas para exportação, não seria muito afetada, ao contrário da população mais vulnerável socialmente, aquela que mora no interior do semiárido. Já no Centro-Oeste e Sudeste temos a possibilidade de crises hídricas como essa pela qual estamos passando agora ou como a de 2001 ou 2013. No caso do Pantanal, o risco de fogo é muito alto. O Pantanal vem enfrentando secas desde 2009, afetando a população. Na região Sul também há impactos no caso de secas, porque tudo isso afeta a segurança energética, já que precisamos usar as termelétricas que, por sua vez, liberam muitos gases de efeito estufa, além de serem caras.

As cidades costeiras também estariam muito afetadas pela elevação do nível do mar. No caso de cidades do sudeste e sul, além da elevação do nível do mar, há possibilidade de inundações costeiras, consequência das tempestades, que estão ficando mais intensas. Com o nível do mar mais alto essas tempestades estão levando mais águas, as ressacas, para o interior das cidades. Isso já tem acontecido em Santos, no Guarujá, em São Paulo, e em outros lugares.

De diferentes formas, todo o país é afetado. Imagine o agronegócio, por exemplo, na região de Matopiba, centro-oeste do Brasil. Podemos observar que são resilientes, pois como há muito dinheiro investido existem sistemas de irrigação, mas se a temperatura aumenta muito e a precipitação diminui muito, eles podem ser afetados. No caso da soja, que é uma commodity, afetaria o preço do grão, a economia, e se teria todo o tipo de impacto que se possa imaginar, atingindo desde o pequeno agricultor até aquele de grande porte.

 

 

A frequência de chuvas extremas na região Sudeste do Brasil e mesmo no Sul pode gerar uma maior intensidade de desastres naturais, como enchentes e deslizamentos de terras. E vemos que isso acontece a cada verão, ainda que previsões sejam feitas para evacuar toda a população. O Brasil é um país continental e poderíamos esperar todo tipo de impactos, dependendo da região.

 

 

Impactos sobre todos, mas mais pobres são atingidos primeiro

Quando há um desastre natural, um deslizamento de terra, por exemplo, pode afetar tanto a população de alto nível social como os mais pobres. Os desastres naturais são muito democráticos. Podemos ver o que aconteceu na Alemanha este ano, cidades bonitas, que não têm nada de pobres foram inundadas, pessoas morreram afogadas. Isso mostra como qualquer classe social pode ser afetada, mas obviamente os mais pobres serão os primeiros.

 

 

Diante de tudo isso, os impactos na área social aumentariam, como danos à saúde. E a melhor forma de diminuir esses impactos seria reduzir a emissão de gases de efeito estufa, reduzir o desmatamento, tudo aquilo que foi discutido no Acordo de Paris e que, infelizmente, não foi muito respeitado. Assim o aquecimento do planeta possivelmente vai passar dos 2 graus. No Brasil, algumas cidades e estados têm planos de adaptação às mudanças climáticas. A questão é atualizar esses planos e colocá-los em ação, porque um papel, um documento não resolve se não é aplicado e isso é o que tem de ser feito. Precisamos começar a pensar e fazer adaptações agora e não quando for muito tarde, em 2030 ou 2040.

 

Marcos Buckeridge – Há duas formas de enfrentar as mudanças climáticas: a mitigação, que significa evitar a emissão de gases do efeito estufa e a adaptação, que são as providências que temos que tomar depois que o estrago foi feito. Mitigar custa e tem efeitos econômicos e sociais. Temos que desenvolver novas tecnologias e implantá-las para evitar as emissões. Por exemplo, o Brasil investiu por décadas no etanol de cana-de-açúcar como combustível. Esta é uma medida exemplar de mitigação, que custou aos brasileiros, mas que agora dá frutos, já que temos uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo.

Adaptar aos desastres já ocorridos custa muito mais caro do que mitigar emissões. Por isso, mitigar deve ser sempre a primeira opção. Em outras palavras, para um dado impacto, o valor da adaptação é ordens de magnitude maior do que o da mitigação. Além disso o dinheiro, na adaptação, geralmente tem que ser gasto de uma única vez, pois é uma ação de urgência. Comparando o Brasil com a Europa no caso dos combustíveis, vemos que a Europa agora vai gastar muito mais para eletrificar os seus automóveis, enquanto o Brasil já fez a lição de casa desde a década de 1980. A Europa irá gastar muito mais para se livrar do diesel do que o Brasil gastou para desenvolver e implantar o bioetanol. Os EUA também foram eficientes neste aspecto, pois já estão usando mais amplamente o etanol de milho adicionado à gasolina há mais de uma década.

 

 

Impactos sociais

Do ponto de vista social, os impactos das mudanças climáticas sempre afetam e afetarão as camadas mais pobres da população. Isso porque elas são as mais vulneráveis. Quando uma sequência de tempestades, ou mesmo furacões atingem o continente, as populações mais pobres que tenham suas cidades parcialmente destruídas, ficarão sem água, sem energia e serão as últimas a serem restituídas desses serviços, enquanto as mais ricas se recuperarão mais rapidamente. O mesmo se dá com as doenças infecciosas. Com as mudanças climáticas, doenças transmitidas por vetores (Zika, Dengue, etc.) deverão se espalhar mais rápido, atingindo principalmente as populações mais pobres que em muitos lugares vivem na periferia de cidades e têm menos conhecimentos e recursos.

 

Aposta nas novas tecnologias

Sobre as possíveis soluções, elas passam por ações como a implantação de novas tecnologias e as suas distribuições de forma igualitária, a inserção do conceito de sustentabilidade em todas as ações humanas e a melhora da governança. Já temos tecnologias que, com um pouco mais de desenvolvimento poderão ser implantadas. Por exemplo, o uso do bioetanol como combustível, que já temos implantado em todo o Brasil, pode ser acoplado a um sistema de células a hidrogênio e eletrificação dos meios de transporte. Com isso, aumentaríamos ainda mais a eficiência energética. Temos em desenvolvimento métodos de captura e armazenamento de carbono, que se acoplados ao transporte eletrificado movido a etanol, podem levar o Brasil a ser o primeiro país do mundo a atingir emissões zero no setor energético. Isto tudo, claro, em conjunto com a energia eólica, fotovoltaica e outras renováveis.

 

 

As tecnologias agrícolas têm que se tornar cada vez mais “ecológicas”. O agronegócio precisa trabalhar em parceria direta e constante com a preservação e conservação de florestas. Precisamos encontrar cada vez mais soluções para evitar o desperdício na cadeia de produção de alimentos. Hoje, 1/3 dos alimentos em todo o planeta é perdido por desperdício na produção, transporte e consumo. Nisto há uma forma de mitigação de emissões de enorme valor.

A governança é um elemento essencial para encontrarmos meios de driblar os impactos das mudanças climáticas. Precisamos melhorar os sistemas de gestão em todos os níveis (do federal ao municipal). É imperativo que a gestão em todos os níveis seja feita no âmbito dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU. Este é um dos arcabouços mais sofisticados que temos e nossos políticos e gestores precisam incorporar com urgência estes elementos de forma a tornar a nossa governança mais eficiente. Sem ela, os efeitos de novas tecnologias e ações pontuais terão apenas efeito parcial e os custos serão muito altos para a população.

 

 

IHU – O Relatório do IPCC é bem claro e duro quanto à catástrofe que já estamos vivendo. Mas como observa a recepção das pessoas quanto a esses dados? Quais os maiores desafios para tornar a pauta das mudanças climáticas em ações concretas da sociedade de nosso tempo?

Paulo Artaxo – A questão das mudanças climáticas globais hoje já é praticamente um senso comum entre as pessoas. Evidentemente, os governos estão muito, muito atrasados em relação ao entendimento da população em geral por causa dos interesses econômicos e políticos por trás dos achismos sobre a mudança climática global.

 

 

O relatório do IPCC é muito claro sobre os perigos que estamos enfrentando, mas a ciência não faz políticas públicas. Quem faz políticas públicas são os tomadores de decisão, que são pressionados pelas indústrias, pelo sistema econômico em geral e pelo sistema financeiro para não agirem. Numa visão de curto prazo, eles acham que é melhor não fazer nada porque qualquer iniciativa pode custar muito caro e as próximas gerações é que pagarão a conta. Essa filosofia deve mudar rapidamente com a pressão popular.

 

José Marengo – Este ano foi muito didático. Digo didático porque tivemos extremos de ondas de calor nos Estados Unidos. A Califórnia já experimentou ondas de calor e como consequência vêm os incêndios, como acontece agora. Veja o Canadá, por exemplo. Mas aquela região do Canadá não tem histórico de calor e isso chamou muito a atenção. Essa onda de calor também foi sentida no meio oriente, Irã e Iraque, com temperaturas recordes. Também se sentiu na Europa e inclusive no Japão, em plenos Jogos Olímpicos. Ou seja, este ano de 2021 tem todos os extremos que se possa imaginar.

 

 

É claro que os eventos são mais extremos e afetam mais a população do hemisfério Norte porque há mais continente. Mas temos aqui, por exemplo, a crise hídrica nas regiões Centro-Oeste e Sudeste do Brasil, incêndios e secas no Pantanal, as três ondas de frio que afetaram o Brasil e parte da América do Sul.

Neste mesmo ano, tivemos a liberação dos resultados do grupo 1 do IPCC e a Conferência das Partes, a COP 2026. Todo esse contexto traz referências que são brutais. Por exemplo, a primeira-ministra Angela Merkel falou que a Alemanha tem de enfrentar as mudanças climáticas como resposta a grandes enchentes. Se não tivessem acontecido as enchentes, possivelmente Merkel não teria falado nada. Então, já estamos vendo uma amostra do que poderá ser o clima futuro. Os dados mostram isso. Essa realidade do aquecimento global é algo sobre a qual nós cientistas já estamos falando há tempo, desde o terceiro, quarto, quinto e agora o sexto relatório do IPCC.

 

 

O silêncio do governo brasileiro

O curioso é que o relatório foi liberado na segunda-feira [09-08-2021], mas nós já tínhamos começado a dar entrevistas desde sábado. Segunda-feira, o relatório teve uma repercussão muito grande; terça-feira, nem tanto, porque tiveram mais repercussão os tanques andando no Planalto. Eu fico com muita pena pelo fato de o relatório não ter tido uma repercussão no governo. Quando digo repercussão, refiro-me a alguma declaração de algum ministro, dizendo que o país vai assumir os compromissos do Acordo de Paris por causa das mudanças climáticas. Possivelmente, o Brasil esteja negociando internamente para ver que posição vai adotar na COP, mas não vi nenhuma declaração de alguma pessoa importante do governo dizendo que as mudanças climáticas são graves, são um problema e temos que fazer algo. Nem que fosse para mentir, para dizer que estão preocupados. Mas não vimos isso. O que vimos foram presidentes, pesquisadores de ONGs e associações de produtores falando da preocupação com o relatório.

O tema das mudanças climáticas já está sendo discutido há algum tempo e o aquecimento global está aí, mas só se fala nele quando há uma seca, uma queimada, uma onda de frio, mas não como se fosse uma agenda. É um pouco triste ver essa situação. A comunidade científica e a imprensa estão muito ativas, levando o tema para todo mundo, mas falta resposta do governo. Eu trabalho para o governo, mas gostaria de ter visto uma declaração, no Jornal Nacional ou em algum jornal de importância, de algum ministro ou alguém do governo que tenha a ver com o meio ambiente, dizendo que o Brasil está preocupado. Foi isso que faltou.

Claro que sempre tem o ceticismo e o negacionismo, que não vão desaparecer, mas por enquanto eles estão quietos. A realidade está aí e todos enxergam o que está acontecendo com o clima em nível nacional e internacional. Já avisamos, já advertimos, estão acontecendo coisas e as pessoas não escutam. Se estamos no meio de uma crise hídrica, tem que poupar água, por exemplo. Aquela ideia de reciclar o lixo e ir de bicicleta para o trabalho já não funciona mais, infelizmente. Tem que ter pressão da população para que o governo assuma os compromissos ambientais, como assumir o Acordo de Paris, reduzir o desmatamento a zero.

Essas atividades são necessárias porque se o aquecimento global é um processo natural, com essas medidas de mitigação o aquecimento poderia ser menor e os impactos poderiam ser menores, o custo de adaptação também seria menor e perderíamos menos vidas. De outra forma, com um aquecimento acima de 4 graus, poderemos ter o que alguns chamam de mudanças climáticas perigosas, com todos os tipping points ultrapassados. E Deus nos acuda de qual será o clima futuro.

 

 

A íntegra do relatório está disponível no site do IPCC

 

Marcos Buckeridge – Esta dureza que se mostra neste relatório já se via em outros relatórios anteriores do IPCC. Mas a dureza aumenta também porque, com modelagens cada vez mais precisas, estamos confirmando o que já vem sendo dito desde a década de 1990. Não há mais como negar que o ser humano está por trás dos efeitos das mudanças climáticas. Não há mais como negar os impactos. A mensagem agora é: está claro, não há mais dúvidas!

A percepção das pessoas sobre a existência das mudanças climáticas e de sua relação com o ser humano vem aumentando consideravelmente, particularmente na última década. Até mesmo as crianças compreendem melhor o processo, pois aprendem sobre ele na escola. Mas temos grandes desafios ainda. Um deles é a velocidade com que os fenômenos ocorrem. O ser humano, sendo um animal, apresenta um comportamento de fuga – ou seja, entra em ação – somente quando o perigo é iminente. Isto causa dificuldades, pois quando dizemos que os efeitos serão neste século, só sensibilizamos uma parte da população (pais que se importam com o futuro de seus filhos, p. ex.). Porém, os indivíduos muitas vezes se veem como alguém que talvez nem esteja mais neste planeta quando tudo acontecer.

Então, por que agir? É um comportamento natural, como mencionei, mas os seres humanos são mais do que isto. Podem sim aprender que existe a preservação de sua própria espécie e vêm aprendendo que a preservação das demais espécies afeta a preservação da sua própria.

 

Ética socioambiental

Quando examinamos a ética socioambiental, há dois tipos de valores: os intrínsecos e os instrumentais. Quando se usa a ética de valores intrínsecos, se olha o indivíduo, aquela vida em específico. É uma visão que chamamos de antropocêntrica. Já ao usar valores instrumentais, se considera o sistema e os efeitos que as mudanças no sistema como um todo podem causar no indivíduo. A visão dos seres humanos, em lugares desenvolvidos no planeta, vem avançando no sentido de olhar o mundo pela lente da ética de valores instrumentais.

Sei que é uma mudança cultural e que geralmente é lenta, mas temos que tentar acelerar uma mudança em direção à ética instrumental e incluir mais pessoas neste tipo de visão de mundo. Tem havido rupturas e até polarizações importantes neste aspecto. Uma parte da população mundial vem se isolando ainda com uma visão da ética de valores intrínsecos. É preciso convencer a todos de que o Homo sapiens não é o centro, mas sim uma parte do sistema. E que, sem equilíbrio do sistema, a civilização não se sustenta. Este talvez seja o maior dos desafios que temos para enfrentar as mudanças climáticas. Temos que compartilhar com toda a população os conhecimentos que ganhamos com o incrível avanço da ciência, principalmente nos séculos XX e XXI. Só assim, o negacionismo que vemos hoje na sociedade se tornará mínimo ou, melhor ainda, será erradicado.

 

IHU – Que outro ponto do relatório lhe chama atenção? Por quê?

Paulo Artaxo – A linguagem do novo relatório do IPCC é muito mais explícita, muito mais dura, muito mais clara no sentido de que a emergência climática já chegou. Essa emergência climática vai ter impacto socioeconômico enorme em todo o planeta. Então, a mensagem da ciência é muito clara.

Agora, a ciência já fez o seu papel. Daqui para a frente, é com o setor de comunicação, que deve levar essa mensagem ao grande público, e com os tomadores de decisão, que devem tomar as decisões políticas em relação ao enfrentamento das mudanças climáticas globais.

 

José Marengo – A mensagem principal do relatório é que o ser humano tem um papel ativo [no aquecimento global]. Nos anos 1990, quando começou o primeiro relatório, havia a questão sobre a possibilidade de o ser humano interferir no aquecimento global. Nos outros relatórios se discutia se era provável, pouco provável, muito provável, mas agora sim, é um fato comprovado: o ser humano é responsável pelo aquecimento, particularmente por aquele dos últimos 20 anos.

 

 

 

O clima futuro vai ser mais extremo: de temperaturas, de chuvas, secas e extremos na elevação do nível do mar. Todo tipo de informação que o Grupo 1, que é da base científica, oferece, está dado de bandeja para a avaliação do Grupo 2, que é o que trata de impacto, vulnerabilidade e adaptação. Se você me perguntar se o agronegócio do Centro-Oeste será afetado, este relatório não apresenta avaliações desde impactos de agricultura ou água, segurança alimentar ou segurança hídrica, é o Grupo 2 quem vai fazer isso. Porém este relatório mostra que a temperatura aumentou, que as chuvas estão diminuindo, que os extremos climáticos e as secas estão aumentando. Então, oferecemos as evidências científicas para que o setor agrícola e outros setores comecem a se preparar e os governos comecem a agir, porque o IPCC não é prescritivo em forma de política. O IPCC não propõe políticas públicas; ele é uma síntese da ciência, passada para os governos e a comunidade, para cada governo tomar as decisões que acharem relevantes.

 

 

Em governos anteriores, participávamos de audiências na Câmara e no Senado. Mostramos o quinto relatório e os estudos que o painel brasileiro de mudanças climáticas fazia para o Brasil, e nessas ocasiões sempre surgiam questões como “são projeções?”, “vocês têm certeza?”. Bom, todo modelo tem incerteza, por isso se chamam projeções. [Os parlamentares] sempre ficavam na dúvida e depois alguém surgia com a proposta de que era preciso ouvir o outro lado, que são os céticos, para ver o ponto de vista deles. Então, é uma situação de doença já instalada. Colocando em termos médicos, o paciente está doente e já tem a doença cientificada. Alguém que diz que quer ouvir uma segunda opinião está perdendo tempo.

O que falta é que todas essas informações científicas que fornecemos sejam seriamente consideradas. Por isso que Artaxo, eu e outros viramos ativistas, saímos dos escritórios e vamos para audiências públicas, escolas, conferências nacionais e internacionais, conferências de produtores, para apresentar a situação climática, pois ela vai afetar todo mundo. Antes, dizíamos que iria afetar nossos netos, mas agora a situação é que vai afetar nossos filhos. Este é o típico ano em que já começaram os furacões nos EUA e será um ano muito ativo nesse sentido. No ano passado, ocorreram 30, muito além do normal. Esse é um extremo e vemos que se o furacão afeta países pobres da América Latina ou da América Central, como Nicarágua e El Salvador, as pessoas morrem. Nos EUA, em que o sistema de previsão é um pouco mais avançado, as pessoas são evacuadas, mas nem todos os países têm esse sistema. A América Central é uma das mais vulneráveis, se não a mais vulnerável do planeta, em termos de mudanças climáticas.

 

 

Marcos Buckeridge – Temos que ficar atentos aos próximos relatórios que serão divulgados em 2022. O IPCC geralmente lança três, o primeiro é mais sobre o clima e as modelagens, o segundo sobre os impactos e o terceiro sobre as possíveis soluções. Os próximos a serem lançados trarão mais informações relevantes sobre como o clima está afetando os sistemas naturais e humanos e sobre como podemos agir. O IPCC lança este sexto relatório muito proximamente ao lançamento em 2018 do Relatório Especial 1,5ºC, que traz os três aspectos em conjunto. Vale a pena olhar para este relatório anterior também, que foi uma encomenda do encontro de Paris em 2015.

É importante chamar a atenção de que os relatórios do IPCC sempre trazem uma visão mundial e de grandes regiões do planeta. Mas é crucial salientar que as ações locais são também muito importantes. As ações de cada pessoa e de cada governo local são de extrema relevância para o enfrentamento das mudanças climáticas. Não devemos ficar esperando que nossos governos sozinhos resolvam os problemas. Temos que participar, fazer a nossa parte. Mas lembrar que cada parte tem que estar conectada ao todo como numa grande rede interconectada. É curioso como o problema do enfrentamento das mudanças climáticas globais salienta fortemente a importância da democracia no mundo. Com ela, se bem conduzida, enfrentaremos melhor estes problemas do que com qualquer outro sistema de poder que o mundo já viu.

 

 

IHU – Deseja acrescentar algo?

José Marengo – O IPCC tem três grupos: o Base Científica, que é o Grupo 1, cujo relatório foi liberado; Impacto, vulnerabilidade e Adaptação, que é o Grupo 2, que trata dos impactos e propostas de adaptação; e o Grupo 3, que é Mitigação. Dessa vez, o IPCC teve muito cuidado para os três grupos trabalharem em conjunto e não isoladamente. A informação que o Grupo 2 recebe para avaliar impactos hidrológicos, de agricultura e de saúde, vem do Grupo 1. Desde o quinto relatório, esse modo de trabalho é uma novidade.

O IPCC não é somente formado por meteorologistas e climatologistas; tem geógrafos, geólogos, médicos, advogados, historiadores, porque há capítulos de história da ciência. Então, tem todo tipo de informação sobre ciências naturais, ciências físicas, ciências sociais e médicas. Por isso, esse conceito de mudança climática passou a ser substituído pelo conceito de mudança global, que seria o impacto das mudanças climáticas em toda a vida humana. Isso foi muito reforçado no sexto relatório.

 

Nota:

Tipping points: são "pontos de inflexão" no sistema terrestre, que podem levar a mudanças irreversíveis no estado do sistema. Os pontos de inflexão podem ser cruzados com um aumento moderado da temperatura global de 1,5–2 graus celsius em relação aos tempos pré-industriais, devido ao aquecimento global atual. Se o ponto de inflexão em um sistema for cruzado, isso pode levar a uma cascata de outros pontos de inflexão. Uma dessas cascatas poderia levar o mundo a um estado de aumento da temperatura de 4 ou 5 graus celsius acima dos níveis pré-industriais. (Nota do IHU).

 

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