Passaporte vacinal: Cacciari, um intelectual “desorgânico”

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03 Agosto 2021

 

O filósofo veneziano encarna um estereótipo do nosso tempo que eu definiria, tomando emprestado o título de um livro de Franco Cardini, como intelectual desorgânico. Narra a condição do pensador que saiu do recinto dos corpos intermediários culturais e políticos em que cresceu historicamente. Tendo perdido o reconhecimento e a contenção dos pertencimentos dissolvidos, ele cede à egolatria do consenso midiático, o único que pode saciar a sua necessidade de confirmação, e o persegue cultivando uma tentação apocalíptica.

A opinião é do jornalista e escritor italiano Alessandro Barbano, em artigo publicado por Huffington Post, 01-08-2021. A tradução é de Anne Ledur Machado.

 

Eis o texto.

 

O que Massimo Cacciari e Giorgia Meloni [política italiana, presidente do Fratelli d’Italia, partido conservador da Itália] têm em comum? Se eu respondesse que ambos hostilizam o green pass [passaporte vacinal] e temem uma “ditadura sanitária”, eu ofenderia a inteligência deles e talvez também a minha. Não é a convergência em uma única medida que autoriza a considerá-los como parte de uma mesma matriz cultural.

Porém, uma mudança quase antropológica, pela radicalidade com que modifica a identidade pública deles, os envolve da mesma forma. E narra o nosso tempo.

Cacciari foi por mais de duas décadas uma das referências de uma esquerda iluminada, que tenta subtrair a densidade do pensamento de uma tentação ideológica e se confronta com a concretude do governo. Há três anos, em um aplaudido discurso na assembleia do Partido Democrático, o filósofo veneziano recordava, contra a sugestão populista de esterilizar o poder, que na democracia o poder se reconhece, se declara e se divide.

Hoje, porém, junto com o colega academicamente mais famoso Giorgio Agamben, ele teme um poder monolítico que, com o terrorismo sanitário, atenta contra as nossas vidas. E, contra esse poder, que Massimo Adinolfi no HuffPost vê tirado de um paradigma teológico, se produz um desafio quixotesco, conduzido nos talk shows com uma veemência provocatória e caricatural.

Na verdade, não menos decisiva é a virada de Giorgia Meloni. Alessandro Campi narra-a no jornal Il Mattino, na passagem do estatismo do Movimento Social Italiano, todo “lei, ordem e disciplina”, à veia anarcolibertária e ultraindividualista do radicalismo conservador estadunidense. No protesto encenado no Parlamento pelos deputados do Fratelli d’Italia, há um traço que remete a uma estética antissistema. É preciso rever o vídeo que retrata o deputado Federico Mollicone, fugindo como um ladrão ou um terrorista entre os funcionários da Câmara que tentam aplacá-lo, enquanto os panfletos contra o green pass voam pelos ares. Ele lembra Alessandro Di Battista na guerrilha de alguns anos atrás contra o Italicum. Porque ambos ocupam e profanam um lugar simbólico que até lhes é próprio, como parlamentares eleitos, mas que sentem a necessidade de declarar estranho, como símbolo de um poder que envolve todos os outros e, portanto, se desconhece em bloco.

Mas Giorgia Meloni lidera nas pesquisas o primeiro partido de uma centro-direita que teria os números para governar sozinha. Onde está, pergunta Alessandro Campi, o ganho político de se colocar na liderança do protesto contra o Estado policial, acusado de comprimir a liberdade de escolha e de movimento dos cidadãos, quando nem mesmo os seus eleitores mais fiéis lhe seguem ao longo desse caminho?

A deriva cultural de Cacciari pode dar algumas respostas para essa questão. O filósofo veneziano encarna um estereótipo do nosso tempo que eu definiria, tomando emprestado o título de um livro de Franco Cardini, como intelectual desorgânico. Narra a condição do pensador que saiu do recinto dos corpos intermediários culturais e políticos em que cresceu historicamente, isto é, daquelas infraestruturas capazes de equilibrar o saber mais ou menos da mesma forma com que a democracia equilibra o poder. Tendo perdido o reconhecimento e a contenção dos pertencimentos dissolvidos, ele cede à egolatria do consenso midiático, o único que pode saciar a sua necessidade de confirmação, e o persegue cultivando uma tentação apocalíptica.

Sua trajetória intelectual narra paralelamente o voo rasante de uma esquerda que se desprende da ideologia, perseguindo o reformismo, e cai no populismo. Assim, Cacciari se descobre ao mesmo tempo como um anárquico como Agamben, especializado na divina arte da refutação, e como uma caricatura televisiva, como um dos tantos aspirantes a primeiro-ministro, desiludidos com a vida, que circulam à noite entre um talk show e outro.

O sinal dessa condição existencial, que é também uma patologia do espírito, exprime-se no fato de colocar a intuição racional a serviço da hipérbole. Com a eclosão da pandemia, o intelectual desorgânico intui, antes dos outros, que as democracias correm o risco de desenvolver anticorpos que, em vez de se dirigirem contra o vírus, podem fazê-las regredir como efeito de uma reação autoimune fora de controle. Ele entrevê esse risco nos decretos do primeiro-ministro que amputam o controle parlamentar, em algumas medidas irrazoáveis do lockdown, em um moralismo desenfreado que as acompanha e que tende a reduzir a vida dos cidadãos à dimensão biológica. Ele não erra ao denunciar essas contradições. Ele erra clamorosamente ao confundir, a ponto de equiparar, as democracias com os regimes.

Seu trágico erro está nesse déficit de medida. Porque é possível defender o direito a não se vacinar e pode-se até assinalar o risco de que a privacidade se submeta às exigências do controle sanitário, mas não se pode sustentar um paralelo entre as medidas dos governos ocidentais – e do governo Draghi entre estes – e as leis raciais contra os judeus.

Essa lacuna perdida coloca a intuição racional e do intelectual além da realidade e faz dela uma hipérbole, porque a entrega à ilimitada amplificação do mundo não espacial das ideias. Só que o paradoxo do pensamento hiperbólico é o de cair na descontextualização típica da cultura tecnológica, à qual também se contrapõe. Ou seja, de ter a mesma desembocadura da desintermediação reivindicada pelo neófito grillino, que monta novamente no seu quebra-cabeça subjetivo peças da história encontradas na rede e se convence de que Auschwitz e o Palácio Chigi [sede do governo italiano] são a mesma coisa. Isso ocorre porque a hipérbole, antes de ser um defeito de medida, é um excesso de técnica do pensamento.

No nível político, esse fenômeno tem consequências relevantes. Se o papel do intelectual orgânico, no desenho de Antonio Gramsci que traçou a sua figura, servia para construir e preservar uma hegemonia cultural, o do intelectual desorgânico, no máximo, codifica identidades e culturas minoritárias, que jamais serão capazes de governar.

Essa é a consonância entre Cacciari e Meloni: ambos cedem à tentação de se redefinir na vertigem da hipérbole e na reverberação midiática que desencadeia, ao preço de uma gigantesca simplificação cultural. A mesma simplificação que entrega o green pass ao armamentário técnico da vigilância totalitária, ignorando que, em vez disso, todo limite, vínculo, proibição se distingue com base na coerência, razoabilidade, proporcionalidade com respeito ao contexto e à compatibilidade com os direitos que a Constituição reconhece e protege.

Depois de derrotar o primeiro avanço do vírus com o instrumento muito oneroso do lockdown, podemos hoje recuperar uma parte da liberdade perdida, aproveitando o espaço de imunidade relativa garantido pelas vacinas. O fato de que o seu guarda-chuva é parcial, ou seja, que cada um de nós está protegido em 70% do contágio, demonstra o contrário do que defende Cacciari: isto é, demonstra que é legítimo reservar nos espaços públicos o contato para quem está munido da cobertura parcial, excluindo aqueles que representam um perigo elevado demais para os outros.

Isso foi entendido por muitos cidadãos que, antecipando a codificação do governo, colocaram a exibição do teste como condição para voltar a se encontrar, para jantar juntos e para festejar nas suas próprias casas. Da mesma forma, isso foi compreendido por comerciantes, donos de restaurantes, agentes de serviços públicos, majoritariamente favoráveis ao green pass. Serão eles, e não os agentes fardados, os primeiros a exigir a exibição do título, da mesma forma que até agora exigiram o uso da máscara.

O fato de que essa é, depois de dois anos de lutos, privações e isolamento, uma estratégia de potencialização da cidadania, e não um panóptico disfarçado, fica mais claro para cidadãos ansiosos por retomar a liberdade perdida do que para filósofos e políticos em evidente crise de identidade.

 

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